Num país em que os políticos nunca descem do palanque, o calendário oficial se aproxima do início de uma campanha eleitoral que, na prática, está nas ruas desde 2021
Começou em 30 de junho, e vai até o próximo dia 5 de agosto o prazo para que os partidos políticos oficializem as chapas com as quais disputarão as eleições municipais deste ano. Cumprida essa formalidade, começa a contagem de um novo prazo, para que os postulantes às prefeituras e às câmaras de vereadores dos 5.570 municípios brasileiros registrem suas candidaturas na Justiça Eleitoral. Só depois do dia 16 de agosto, data marcada para o início da campanha no calendário eleitoral, é que terá início oficialmente a disputa pela preferência do eleitor.
Oficialmente. Esse advérbio faz toda diferença. A campanha para os cargos municipais começará “oficialmente” daqui a duas semanas, mas, na prática, ela já está nas ruas desde o dia 1º de janeiro de 2021. Explica-se: na tradição democrática, campanhas eleitorais são os momentos em que os postulantes a cargos públicos abordam os eleitores para convencê-los de que suas propostas são melhores do que as dos adversários. Os que são mais eficazes nesse trabalho, ganham as eleições e o direito de governar.
No Brasil, acontece o contrário. Os políticos governam para ganhar eleições. Assim como as Escolas de Samba começam a se preparar para o próximo carnaval já na Quarta-Feira de Cinzas, é possível dizer que os políticos brasileiros nem se dão ao trabalho de descer do palanque. Eles começam a pensar na próxima eleição assim que a Justiça Eleitoral proclama o resultado do pleito que acabou de acontecer. Os eleitos já assumem pensando no pleito seguinte. E, em nome desse propósito, os maiores absurdos são cometidos. Tudo é permitido, até mesmo fazer, no exercício do mandato, exatamente o oposto daquilo que foi prometido ao eleitor durante a campanha.
Tem sido assim desde que a possibilidade de reeleição levou os políticos a estarem o tempo todo com os olhos voltados exclusivamente para os benefícios eleitorais que suas decisões podem render. Em nome desse princípio, ainda que tenham sido eleitos com a promessa, por exemplo, de evitar gastos desnecessários do dinheiro público e de tratar o contribuinte com respeito, os políticos são os primeiros a pôr o pé no acelerador e não fazer economias quando assumem o mandato. Por mais evidente que seja a necessidade de medidas de austeridade, são raros os que têm coragem e disposição para tomar qualquer decisão que possa vir a prejudicar os interesses das corporações mais poderosas e barulhentas que vivem à custa do Estado.
PIRÂMIDE POLÍTICA — Isso, claro, é uma generalização — e, como toda regra, esta tem suas exceções. Outro ponto a observar: isso não é uma exclusividade do município do Rio de Janeiro. É assim que as coisas acontecem em Brasília, em todas as 27 unidades da Federação e na enorme maioria dos municípios do país. Seja como for, o fato é que no Rio, como de resto em qualquer outro município do estado e do país, a campanha para as eleições municipais começou muito antes de ter sido formalmente autorizada pela Justiça Eleitoral.
Só quem vive no mundo da lua não sabe que o prefeito Eduardo Paes (PSD) é candidato à reeleição e lidera as pesquisas de intenção de voto, enquanto o deputado e professor Tarcísio Motta (PSOL) será um de seus adversários. Também é público e evidente que o ex-diretor da Agência Brasileira de Informações (ABIN), Alexandre Ramagem (PL) medirá força com eles nas urnas. Outros nomes já estão definidos e nenhuma pessoa que acompanhe a política com um mínimo de atenção tem o direito de alegar que não sabe quem disputará o comando da prefeitura do Rio para os próximos quatro anos. Mas há um outro ponto, tão importante quanto esse, que nem sempre é mencionado quando se fala nas eleições que estão por vir. Trata-se do Legislativo municipal.
Isso mesmo. Também estarão em disputa as vagas de vereadores e esse cargo, embora seja visto por muitos como a base da pirâmide política brasileira, confere a seu ocupante uma influência considerável no processo de tomada de decisões. Quem reparar direito, notará que o vereador tem mais poder do que parece. E dispõe de uma possibilidade de interferir na vida da população muito mais efetiva do que a de um deputado estadual ou de um deputado federal.
É bom deixar claro: ninguém está dizendo que vereador é mais importante do que deputado. O que está sendo dito é que, sobretudo numa cidade como o Rio, o cargo de vereador proporciona a seu detentor uma possibilidade considerável de trabalhar pela sociedade. Suas atribuições incluem o poder de tomar decisões que levem à melhora ou a piora do transporte público. E que podem ter reflexos na qualidade dos serviços de iluminação das ruas, na qualidade da pavimentação, na melhoria das posturas urbanas, na melhoria dos serviços de coleta de resíduos sólidos e limpeza das ruas e em mais um monte de tarefas que estão a cargo da administração municipal e interferem diretamente na qualidade de vida da população.
Nenhuma mudança nessas políticas acontece sem passar pela Câmara Municipal. Por essa razão, o voto dado ao candidato a vereador tem tanta importância quando o voto para prefeito. Essa já seria uma razão suficiente para que os partidos assumissem a obrigação de agir com muito mais critério do que normalmente agem na hora de escolher os nomes que oferecem à escolha do eleitor.
PESO E COMPLEXIDADE — A verdade, porém, é que critério é algo que parece não existir nessa hora e a escolha dos nomes que disputam é feita muito mais com base na capacidade de atrair votos do que na competência para formular políticas que produzam melhorias para a população. Para deixar bem claro o que se pretende dizer: na hora de formar uma chapa, comunicadores ou influenciadores digitais têm preferência diante de pessoas mais bem preparadas para lidar com as políticas públicas sob responsabilidade do cargo.
Uma prova de que os critérios para a escolha dos candidatos são extremamente flexíveis é a quantidade enorme de nomes que disputam o cargo de vereador. A impressão que se tem é a de que há candidato demais para as vagas disponíveis. Nas eleições passadas, em 2020, 1788 candidatos disputaram os 51 assentos no plenário do Palácio Pedro Ernesto — que abriga o Poder Legislativo do município do Rio de Janeiro. A previsão é de que o número este ano seja ainda maior.
Aqui é bom chamar a atenção para um ponto importante: a Câmara reflete o peso e a complexidade do município e, a começar pela quantidade de vagas que oferece, a do Rio é uma das mais destacadas do Brasil. Para se ter uma ideia de seu destaque, apenas seis das 27 Assembleias Legislativas existentes no país têm mais cadeiras do que as 51 que são preenchidas a cada quatro anos no legislativo municipal carioca. São elas a de São Paulo (com 94 deputados estaduais), de Minas Gerais (77), do próprio estado do Rio (70), da Bahia (63), de Rio Grande do Sul (55) e do Paraná (54). Todos os outros 20 estados e mais o Distrito Federal têm em suas Assembleias Legislativas menos representantes do que a Câmara do Rio.
Os partidos, portanto, deveriam assumir a obrigação de facilitar o trabalho do eleitor, oferecendo a eles uma chapa formada por candidatos pré-selecionados e em condição de enfrentar os desafios do cargo que pleiteiam. Se isso acontecesse, os nomes escolhidos pelo eleitor seriam mais capacitados para dialogar com o próximo prefeito — seja ele Paes, Motta, Ramagem ou qualquer outro — com vistas à implementação das políticas públicas propostas durante a campanha. Na mesma medida, o prefeito será mais cobrado e fiscalizado com mais rigor caso se afaste dos interesses da sociedade.
PRESTAÇÃO DE CONTAS — Esse é o ponto que interessa. Por mais ingênua que possa parecer qualquer ideia no sentido de melhorar a qualidade dos políticos brasileiro, é obrigatório reconhecer que tudo deveria começar pela seleção criteriosa, por parte dos partidos, dos nomes a serem levados à escolha do eleitor. Esse é um ponto que, por sinal, já foi defendido neste espaço mais uma vez.
É sempre importante voltar a esse ponto: para que os partidos brasileiros comecem a ser levados a sério pelo eleitor, eles precisam adotar princípios mais rígidos de relacionamento com seus filiados. Financiados, como são, pelo dinheiro do povo, eles não têm o direito de continuar agindo como se não tivessem contas a prestar a quem quer que seja.
Assim como acontece com o sistema financeiro, onde os bancos são responsáveis pela conduta dos clientes e estão sujeitos a punições caso fique comprovado que o dinheiro dos depósitos que recebem é proveniente de atividades ilícitas, os partidos deveriam responder por quaisquer desvio de conduta dos filiados que, em seu nome, se dirigem ao eleitor em busca de votos.
Todos sairiam ganhando se a legislação eleitoral obrigasse o partido a vasculhar a vida dos candidatos interessados em disputar uma eleição por sua legenda e se certificar que não pesa contra eles qualquer conduta desabonadora. Além disso, essas organizações deveriam ser as primeiras a fazer uma prestação de contas pormenorizada, que não permitisse sombra de dúvida em relação ao uso correto dos bilhões de reais que recebem para gastar em suas campanhas eleitorais.
Como diria John Lennon, “you may say I’m a dreamer”. Ou, você pode dizer que eu sou um sonhador. Mas sempre insistirei em cobrar dos partidos políticos o princípio que valia para a mulher de César: não basta que sejam honestos; têm que parecer honestos. A realidade, no entanto, tem sido inversa a essa. Na semana passada, esta coluna dedicou todo seu espaço à crítica da anistia que a Câmara dos Deputados concedeu aos partidos políticos que foram multados por descumprimento da lei eleitoral no que se refere às destinação de uma parte do fundo eleitoral para as campanhas de mulheres e de pessoas pretas. Na Proposta de Emenda Constitucional que concedeu o perdão, dois aspectos chamaram atenção.
O primeiro foi a desfaçatez com que os deputados tomaram, em benefício próprio, uma medida que não conta com qualquer apoio fora do mundo político e que os afasta ainda mais da sociedade que eles, por definição histórica, representam. O segundo é a amplitude do “espectro ideológico” (para usar uma expressão tão a gosto dos políticos) dos deputados que tomaram a medida. Praticamente todos os partidos com representantes na casa participaram da farra. Gente que se desentende por qualquer motivo e nunca está do mesmo lado nas votações, se uniu para se livrar de uma conta que, conforme um cálculo que não foi desmentido nem pela Justiça Eleitoral nem pelas próprias agremiações, ultrapassa os R$ 20 bilhões.
CACIQUES PARTIDÁRIOS — É bom não se esquecer disso neste momento em que os partidos estão prestes a se lançar a uma nova campanha. A PEC aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado (onde, certamente, será acolhida com todo carinho por Suas Excelências), ao contrário do que o eleitor gostaria que acontecesse, propõe regras ainda mais frouxas para a aplicação dos recursos destinados às campanhas de pessoas pretas. A obrigação de destinar pelo menos 30% do Fundo Eleitoral às campanhas dos candidatos que preencham tal requisito permanece de pé. Mas o gasto, agora, será feito, conforme diz o texto da lei, “nas circunstâncias que melhor atendam aos interesses e estratégias partidárias”.
Não é preciso ser especialista em leis para saber que esse dispositivo só foi incluído na PEC para permitir que os caciques partidários continuem gastando os bilhões que tiram do contribuinte para se financiar da maneira que julgarem mais conveniente — sem ter que prestar contas a ninguém, nem mesmo à Justiça Eleitoral. Num momento em que artimanhas como essa maculam ainda mais a reputação dos partidos junto à sociedade, seria muito bom se o período de convenções partidárias fosse aproveitado para tentar melhorar sua imagem junto ao eleitor.
O mínimo que os partidos deveriam fazer agora, já na largada do processo eleitoral de 2024, seria assumir o compromisso de seguir ao pé da letra o que diz a legislação eleitoral e gastar os recursos que recebem do contribuinte de acordo o critério de divisão que decorre do sistema de cotas que eles mesmos propuseram anos atrás. Melhor ainda seria se todos os lados envolvidos na disputa se comprometessem, uma vez eleitos, a orientar seus mandatos de acordo com os compromissos que vierem a assumir em suas campanhas.
É preciso, finalmente, que os candidatos não se esqueçam de que os cargos em disputa neste momento são os de prefeito e vereador — e que não tem o menor cabimento trazer para o debate temas sem relação direta com os problemas que o Rio ou qualquer outro município do país tem para resolver. Isso mesmo. “Nacionalizar” a campanha municipal, como defendem os setores interessados na continuação da polarização entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro, não faz o menor sentido. Isso apenas adia a solução dos problemas que há décadas afetam a vida do carioca.
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