Agora, Érika Hilton quer porque quer reduzir a jornada máxima. Mas já deixou claro que não aceita reduzir os salários na mesma proporção! Isso, nem pensar!Arte Paulo Márcio

Como se já não houvesse um monte de problemas que entravam o desenvolvimento do Brasil sem que o governo se dê ao trabalho de tentar resolvê-los, volta e meia surge uma autoridade — aparentemente sem qualquer ideia mais útil com que ocupar o próprio tempo — com disposição para tornar o cenário ainda mais confuso. E essas autoridades, quando falam o que pretendem fazer, parecem possuídas pelas mais nobres das intenções. O triste, porém, é que, por atrás de suas ideias aparentemente inocentes e generosas, costuma haver propostas que, embora pareçam ter brotado da cabeça de uma ovelha inofensiva, causam mais danos do que uma matilha de lobos.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) assinada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), e que propõe a redução da jornada de trabalho no país, é um caso exemplar dessa situação. O objetivo da iniciativa é uma redução obrigatória na jornada de todos os trabalhadores do Brasil. Pela lei atual, ninguém pode ser contratado para uma jornada que exceda o limite de oito horas por dia e 44 horas por semana. É isso que consta da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — legislação de inspiração fascista que desde o dia 1º de maio de 1943 impossibilita o avanço das relações entre empregados e patrões no país.
Observe que a lei estabelece a jornada máxima — e atingiria mesmo aqueles que, hoje, têm jornadas de 40 ou 38 horas. Ninguém está impedido de qualquer contrato com previsão de escala menor, definida por conveniência dos empregados e dos empregadores, ou pelas características de algumas categorias profissionais. Bancários, por exemplo, têm uma jornada definida em lei de seis horas por dia. Jornalistas, de cinco. Algumas categorias, como as dos trabalhadores em hotéis, dos motoristas, dos comerciários e diversas outras seguem as 44 horas e o regime de seis dias de trabalho por um de descanso que prevê a legislação.
Agora, Érika Hilton quer porque quer reduzir a jornada máxima. Mas já deixou claro que não aceita reduzir os salários na mesma proporção! Isso, nem pensar! Desde janeiro, a deputada — uma mulher trans que cumpre seu primeiro mandato na Câmara — tem se dedicado a recolher assinaturas para o projeto. Na quarta-feira passada, já havia, segundo ela, conseguido a adesão de quase 200 parlamentares. Para a PEC ter um relator designado e começar a tramitar eram necessárias 171 assinaturas de parlamentares. Para ser aprovada e passar a constar da Constituição, o número é de pelo menos 308 votos na Câmara e 49 no Senado. Com dois turnos em cada casa.

APELO POPULISTA — O caminho, como se vê, é difícil e, pelos danos que uma alteração como essa pode causar às empresas e ao serviço público no país, dificilmente seria aprovado se vivêssemos em um país em que os parlamentares tivessem que responder pelas consequências das medidas que aprovam. Acontece que estamos no Brasil, onde o Parlamento toma decisões sem pensar nas implicações para a sociedade e, quando tudo dá errado, fica por isso mesmo! A própria Erika Hilton já admitiu, em entrevista sobre a PEC de sua autoria, que não tem a menor ideia e, pelo visto, não está nem aí para o impacto da redução da jornada sobre as empresas e sobre as contas públicas.
Pela lógica, a PEC tem tudo para ser rejeitada ainda nas Comissões encarregadas de analisá-la antes de ir a plenário. O problema é que o Congresso brasileiro demonstra uma tendência incontrolável de ceder a todo e qualquer tipo de apelo populista. Não importa se a proposta vem da esquerda ou da direita! Falou que é populista, o parlamento a trata como se fosse a medida mais séria do mundo. Portanto, é bom ficar preparado para a confusão que acontecerá no país caso a jornada de trabalho máxima permitida em lei seja reduzida para as 36 horas semanais pretendidas pela deputada. O trabalhador não poderá, conforme está escrito, ter uma jornada superior a quatro dias por semana por três de descanso (o regime 4 X 3), com oito horas de serviço em cada um deles.
Ops! Tem algo errado aí! Multiplique-se o número máximo de dias a serem trabalhados (quatro) pelo máximo de horas de cada jornada (oito) e chega-se — veja só! — ao resultado de 32, e não das 36 horas anunciadas no projeto! Trata-se de um erro primário, lamentável e indesculpável num texto que pode virar o país de pernas para o ar. Mas ninguém — com a louvável exceção do jovem deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) — teve coragem de denunciar essa barbaridade aritmética e fazer dela o ponto de partida de uma crítica que exponha a falta de qualidade, o amadorismo e o descaso do projeto de Erika Hilton.
CUSTOS E BENEFÍCIOS — Antes de aprofundar nas críticas, porém, convém fazer uma pausa para reflexão. Ninguém, em sã consciência, pode criticar qualquer iniciativa que tenha como objetivo melhorar as condições de vida do trabalhador. Essa é uma discussão que vem crescendo sobretudo na Europa — mas que, ao contrário do desinteresse demonstrado na PEC, sempre vem acompanhada de cálculos que apontam os custos e os benefícios.
Na Alemanha, a adesão das empresas ao projeto é voluntária e pode ser revertida. No Reino Unido, as empresas que implantaram o modelo como teste recebem financiamento do governo e são fiscalizadas de perto. Na Holanda, as empresas optam pelo modelo de forma voluntária e individualizada, como forma de reter os trabalhadores mais talentosos. Em Portugal estão sendo desenvolvidos alguns testes em situação real para medir o impacto da medida na produtividade, nos custos das empresas e na qualidade de vida do trabalhador.
Um detalhe: todos os países onde a medida está em discussão encontram-se em um estágio do sistema capitalista muito mais avançado do que o brasileiro. Na Suécia, um exemplo sempre citado quando se trata de direitos e bem-estar, o debate está em andamento. Ali, a jornada máxima de trabalho, pela lei, é de 40 horas — mas a maioria dos trabalhadores cumpre escala de 38 horas semanais. As condições de férias são tão privilegiadas que fazem o regime de trabalho de qualquer outro país parecer duro demais quando comparado com o deles. Mesmo com tanta ampliação de direitos, a adoção da escala 4 x 3 é vista com ressalvas pelas autoridades suecas e o obstáculo tem sido juntamente o custo elevado da redução da jornada para a economia do país.
É o caso de se realçar as diferenças entre as duas realidades. Ao contrário do brasileiro, o Estado sueco é muito bem gerido. A taxa de juros é inferior a 2% ao ano e a inflação deverá fechar 2024 em 1,6%. A carga de impostos, embora figure entre os mais elevados do mundo, é utilizada para suprir as necessidades básicas dos cidadãos — e não para financiar privilégios estatais. O primeiro-ministro Ulf Kristersson costuma andar a pé pelas ruas da capital, Estocolmo, e o parlamento, se comparado ao brasileiro, mais parece o ambiente austero de um convento trapista posto ao lado do fuzuê de uma corte nababesca!
Moral da história: na Suécia e em outros país com jornadas laborais mais flexíveis e mais tempo livre para o trabalhador — como é o caso da minúscula Islândia — essa discussão vem evoluindo porque a economia atingiu um ponto de maturidade que gera benefícios para as empresas e para os trabalhadores. A indústria e os serviços conquistaram um nível elevado de produtividade que muitos empregadores conseguem oferecer a seus trabalhadores uma jornada mais flexível sem que isso comprometa sua competitividade.

MAIS VALIA — Os benefícios trabalhistas são generosos porque as empresas são sólidas e produtivas e a discussão da redução da jornada de trabalho é feita com os olhos voltados para o Século 22. No Brasil, não é assim. Muita gente por aqui ainda considera que todas as relações sociais são pautadas pela luta de classes descrita por Karl Marx e seu parceiro Friedrich Engels e, por causa disso, o país ainda vive com a cabeça voltada para valores do Século 19.
A própria argumentação da deputada Hilton na justificativa do projeto de redução da jornada exala o ranço ideológico que sempre trata o trabalhador como um pobrezinho e indefeso. E o patrão, como o desalmado que esfola seus empregados em troca de lucro para extrair a tal da “mais valia”. Erika Hilton defende “uma redução legal da jornada de trabalho de 44 para 36 horas semanais, que abranja a todos os trabalhadores, pois todos necessitam ter mais tempo para a família, para se qualificar diante da crescente demanda patronal por maior qualificação, para ter uma vida melhor, com menos problemas de saúde e acidentes de trabalho – e mais dignidade”.
O projeto apresentado pela deputada do PSOL baseia-se numa proposta de Rick Azevedo, que trabalhou como balconista de uma rede de farmácias do Rio de Janeiro antes de liderar, na plataforma Tik Tok, um movimento chamado Vida Além do Trabalho (VAT). A proposta do movimento é eliminar a jornada 6 X 1. “É uma escravidão moderna. Se a gente não se revoltar, colocar a boca no mundo, meter o pé na porta, as coisas não vão mudar”, disse Rick em uma de suas postagens — que se alastraram nas redes sociais e ganharam o apoio de atrizes, influencers e outras celebridades.
As argumentações do VAT, com todo o respeito ao poeta, lembram os versos do pernambucano Ascenso Ferreira, no poema Filosofia: “Hora de comer — comer; Hora de dormir — dormir; Hora de vadiar — vadiar; Hora de trabalhar? Pernas para o ar que ninguém é de ferro!”. De acordo com Rick, o ápice de seu esgotamento se deu ao receber, em um dia de folga, um telefonema da supervisora da rede de farmácias em que trabalhava pedindo que ele chegasse mais cedo no dia seguinte — o que, segundo ele, reduziria seu tempo de descanso.
Sem considerar neste debate se um telefonema da chefe seria razão suficiente para se rebelar contra um regime que já estava claro no momento em que ele aceitou o contrato de trabalho, Rick, como defende que os outros façam, pôs a boca do mundo. E, em nome de sua revolta conquistou um emprego onde sua última preocupação será a extensão da jornada de trabalho...
Com o prestígio conquistado como porta-voz dos que desejam trabalhar menos em troca do mesmo salário que recebem pela jornada 6 x 1, ele conseguiu um emprego em que a jornada semanal já está além dos quatro dias de trabalho por três de descanso que ele defende. Rick foi eleito vereador pelo PSOL do Rio nas eleições deste ano e passará a um regime de trabalho que começa no 3 x 4, passa pelo 2 X 5, pelo 1 X6 e, se bobear, vai até o 0 x 7.
DINHEIRO DO POVO — Anedotas à parte, até aqui, tudo parece o relato de uma jornada virtuosa, em que pessoas abnegadas e preocupadas com a qualidade de vida do pobre empregado explorado tentam exigir do patrão condições dignas de trabalho. Mas, como se disse nos primeiros parágrafos deste texto, o problema nem é tanto a ideia da redução, mas as consequências que pode haver sobre a economia caso a PEC de Erika Hilton tramite, vá a plenário e seja aprovada.
A primeira e mais previsível consequência da aprovação de uma medida como essa é o aumento dos níveis de desemprego — pois empresário nenhum conseguirá arcar com uma medida que, de uma hora para outra poderá ter um impacto de até 20% em seus custos com mão de obra. A segunda consequência é que, em nome de uma suposta ampliação de direitos, haverá um aumento absurdo do número de trabalhadores empurrados para o mercado informal — onde não há qualquer direito trabalhista. A terceira será o desestímulo aos investimentos privados no Brasil, com a interrupção de um ciclo de crescimento que ainda nem conseguiu superar o desastre da recessão que teve início no governo Dilma Rousseff.
Uma outra consequência — embora pouca gente tenha falado disso até agora — será a pressão sobre as contas públicas. A PEC de Erika Hilton não faz distinção entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada. Sua aprovação, portanto, exigirá o aumento, numa conta superficial, de mais ou menos 20% nos quadros de trabalhadores federais, estaduais e municipais.
Sem querer prolongar ainda mais essa discussão, é o caso de dizer que, mesmo que venha a ser rejeitada, a PEC da redução da jornada já causará prejuízos. Ninguém deverá se espantar se, por exemplo, os deputados deixarem a proposta ir adiante e, na hora agá da votação, cobrarem favores do governo em troca da rejeição da medida. Um parlamento que parece mais preocupado em ampliar o acesso de seus integrantes ao dinheiro do povo do que em levar adiante propostas que resolvam os problemas da sociedade é um terreno fértil para propostas como a da deputada Erika Hilton. E os maiores prejudicados por ela serão justamente aqueles que a PEC se propõe a defender: os trabalhadores brasileiros.