Não é apenas o governo que está em julgamento. Decisões do Legislativo e do Judiciário também contribuem para abalar a popularidade do Estado brasileiro
Arte coluna Nuno_ 02 março 2025_artigo online - Arte Paulo Márcio
Arte coluna Nuno_ 02 março 2025_artigo onlineArte Paulo Márcio
Muita gente acredita — e em alguns países do mundo isso até pode ser verdade — que o Estado existe para servir à sociedade. Dia após dia, no entanto, fica cada vez mais claro que esse princípio não se aplica a todos os lugares. No Brasil, por exemplo, a sociedade é que parece existir para servir ao Estado. A impressão que se tem é a de que as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sempre encontram uma maneira de tirar um pouco mais dos cidadãos e não estão nem aí para os efeitos das decisões que tomam em seu próprio benefício.
Isso mesmo. Uma demonstração eloquente nesse sentido é uma tentativa de acordo que vem evoluindo a passos acelerados na Câmara dos Deputados e que, teoricamente, se destina a atender a uma exigência do Supremo Tribunal Federal. A situação é a seguinte: em agosto de 2023, o STF, atendendo a uma solicitação do estado do Pará, determinou que a Câmara, para as eleições de 2026, redistribua o número de assentos no plenário levanto em conta a proporcionalidade da população de cada estado medida pelo Censo Demográfico de 2022. Isso acarretaria a alteração do número de representantes de algumas bancadas. Algumas perderiam. Outras, ganhariam deputados. No final, a Casa permaneceria com os mesmos 513 parlamentares.
MODELO DA DITADURA — Antes de falar da nova distribuição de cadeiras, convém tecer alguns comentários sobre o tamanho atual das bancadas. Ele se origina dos critérios enviesados de proporcionalidade impostos pelo governo militar no Pacote de Abril de 1977 — quando o general Ernesto Geisel, preocupado com o avanço eleitoral da oposição nos estados mais desenvolvidos, inventou uma maneira de garantir, na marra, a maioria da Arena, partido de sustentação do governo militar no parlamento. Além de criar os senadores biônicos, eleitos por via indireta, impôs uma fórmula de preenchimento das 420 vagas que a Câmara tinha na época simplesmente reduzindo a representação dos estados do Sudeste, onde a tendência oposicionista era mais acentuada, e aumentando as bancadas dos pequenos estados — sempre mais fiéis ao governo de ocasião.
Por conveniência da maioria dos parlamentares (e não da sociedade brasileira), o modelo sobreviveu à redemocratização. E o número de deputados foi sendo ampliado até parar, já nos anos 1990, nos atuais 513 parlamentares. A distorção básica foi mantida e o voto do eleitor dos estados menores permaneceu valendo muito mais do que o do cidadão dos estados maiores.
Veja essa conta básica, com base no número de eleitores de cada unidade da Federação e no tamanho das bancadas na eleição passada, de 2022: enquanto foram necessários 366 mil paulistas e 205 mil fluminenses para formar o coeficiente que elegeu um único deputado federal, esse número foi de 54 mil eleitores no Amapá e apenas 37 mil em Roraima. Isso faz com que, numa conta rasa, o voto de um eleitor em Roraima valha cerca de dez vezes mais do que valeria se o título desse mesmo eleitor fosse de São Paulo. Uma democracia que zela pelo nome que carrega e leva ao pé da letra o princípio de que todos são iguais perante a lei, jamais permitiria uma distorção como essa. A resposta a quem ousa apontar esse tipo de distorção deixa claro o populismo que orienta a política brasileira. Quem defende o modelo imposto pela ditadura militar atribui ao cálculo que dá mais peso aos estados de menor densidade populacional a função de reduzir as desigualdades regionais. Pura balela! Por definição, a Casa encarregada de defender os interesses das unidades da Federação e cuidar do equilíbrio entre os estados é o Senado. Ali, cada estado e mais o Distrito Federal, independentemente do tamanho da população, conta com três representantes. À Câmara, a princípio, cabe representar o povo — e, para fazer isso direito, o voto de um eleitor do Rio de Janeiro deveria ter o mesmo peso de um eleitor do Acre, do Amapá, de Roraima ou de qualquer outro dos estados beneficiados pela legislação.
527 DEPUTADOS FEDERAIS — Seja como for, e sem se preocupar com a necessidade de corrigir essa distorção, o STF exigiu que a Câmara se adequasse à realidade populacional do último censo. Pelo novo critério, o Estado que mais perderia cadeiras seria o do Rio de Janeiro — que veria sua bancada se reduzir dos atuais 46 para 42 deputados. Os que mais ganhariam seriam o Pará, que iria de 17 para 21 e Santa Catarina, que pularia de 16 para 20 parlamentares.
Acontece que os deputados, criativos como sempre, tiveram uma ideia que, para eles, deve ter parecido genial! Ao invés de tirar de uns e dar cadeiras para outros, resolveram alcançar o equilíbrio pelo aumento da quantidade de deputados. Isso mesmo! O novo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), assim que o carnaval passar, tentará encaminhar um acordo para cumprir a decisão do STF. Ao invés de redistribuir as bancadas pelos mesmos 513 assentos previstos na lei atual, ele pretende ampliar para 527 a quantidade de representantes na Casa.
Apenas a título de comparação: os Estados Unidos têm uma população de mais ou menos 350 milhões de habitantes — enquanto a do Brasil é de pouco mais de 200 milhões. Enquanto o Estado norte-americano conta com 50 estados, o Brasil tem 27 unidades, contando o Distrito Federal (no caso dos Estados Unidos, a capital, Washington D.C. não tem representantes e é governada pelo Congresso). Ainda assim, e enquanto o Brasil fala em aumentar a bancada para 527 deputadas e deputados, os Estados Unidos seguem firmes com seus 435 representantes. (outro detalhe: enquanto, por lá, cada estado conta com dois senadores, o Brasil tem três para cada unidade da Federação!)
REALOCAÇÃO DE GASTOS — Os defensores do aumento do número de cadeiras insistem numa linha de argumentação que insulta a inteligência de qualquer cidadão que se preocupe com o peso do Estado gastador nas costas da sociedade contribuinte. Para começo de conversa, eles juram de pés juntos que os novos 14 parlamentares que terão lugar na Casa não terão qualquer impacto sobre os gastos públicos.
Segundo Suas Excelências, o Orçamento do Poder Legislativo cobrirá os salários dos novos deputados e de seus assessores, bancará a gasolina de seus carros, pagará as passagens aéreas que eles usam para “retornar as suas bases” e quitará as despesas que os parlamentares sempre dão um jeito de inventar. Para eles, não haverá aumento; apenas a realocação de gastos que já estavam previstos.
Antes de cair na gargalhada com essa anedota de gosto duvidoso, basta fazer uma conta simples para constatar que esse argumento não se sustenta. Cada um dos 14 novos deputados terá, assim como os 513 atuais, o direito de apresentar emendas individuais impositivas. São aquelas de pagamento obrigatório pela Caixa Federal, sem qualquer discussão ou fiscalização, no valor de R$ 37,9 milhões por ano — ou mais de R$ 150 milhões ao longo do mandato. Esse dinheiro, como se sabe, não sai do orçamento do Legislativo, mas da parte do Orçamento da União destinada a investimentos. Portanto...
Seja como for, os deputados não parecem preocupados com os efeitos das decisões que tomam sobre a imagem do poder que exercem. Fechados numa bolha que os isola do mundo, dentro da qual as decisões são tomadas com os olhos voltados para os próprios interesses — e não para os da população que, por definição, deveriam representar —, eles agem como se a população não enxergasse as manobras que executam para aumentar seu acesso ao dinheiro público.
Em defesa do Poder Legislativo, diga-se que os senhores deputados não são os únicos que não demonstram preocupação diante dos efeitos das decisões que tomam sobre o erário e sobre a imagem do poder que exercem. Nem com sua reputação perante o cidadão que, no final das contas, é quem financia os benefícios dos quais eles desfrutam. O mesmo vale, por exemplo, para o Poder Judiciário.
Na terça-feira passada, o ministro José Antonio Dias Toffoli, do STF, derrubou uma decisão do Tribunal de Contas da União, que havia proibido a regalia que confere aos magistrados brasileiros aumentos de 5% sobre os salários a cada cinco anos de serviço — o chamado quinquênio. Atenção: o quinquênio não é prêmio por produtividade nem bônus por desempenho! Trata-se única e simplesmente de um acréscimo automático sobre os salários, que os juízes, por decisão da própria categoria, resolveram se atribuir em determinado momento.
Numa decisão tomada em 2006 com a intenção de pôr um freio a essa regalia, o Conselho Nacional de Justiça proibiu o quinquênio. No ano passado, voltou atrás e liberou o benefício — com efeito retroativo. O TCU entrou em cena e proibiu o pagamento. Toffoli, então, derrubou a decisão e autorizou a retomada dos quinquênios, que, pelo valor acumulado, custarão aos cofres públicos mais de R$ 870 milhões apenas no âmbito da Justiça Federal.
O que se discute, aqui, não é a legalidade da decisão nem o impacto negativo de medidas como essa sobre a imagem do Poder Judiciário — mas a sobrecarga que despesas como essa impõem à sociedade. Num país em que a maioria das pessoas sofre com a redução do poder de compra do dinheiro no momento em que voltam a ver seu salário perder a corrida desleal contra a inflação (que tem entre suas causas justamente o aumento dos gastos públicos), decisões como essa têm um efeito devastador sobre o ânimo das pessoas. E faz com que um número cada vez maior de cidadãos (e, portanto, de eleitores) veja o Estado não como um ente que zela por seus interesses, mas como um fardo que todos precisam suportar em troca de serviços públicos de qualidade sofrível.
APOIADOR DE TERRORISTAS — O efeito de medidas como essas é devastador e o desânimo diante delas, inevitável. As pessoas que não têm acesso a esse tipo de privilégio acabam se sentindo abandonadas justamente por aqueles que têm, ou deveriam ter, o poder de tomar decisões que dizem respeito a seus direitos. Não se trata, é bom insistir, de discutir a legalidade das medidas. Mas, sim, de avaliar o impacto dessas atitudes sobre a confiança que a sociedade deposita nas instituições — que abrangem o Legislativo, o Judiciário e, também, o Executivo. Que, assim como os outros dois poderes, não tem conseguido convencer o país de que está preocupado com o impacto de suas decisões sobre o ânimo da população. Mas a verdade é que o povo não tem reagido bem às medidas do governo em relação à gastança de dinheiro e a um monte de outras coisas. Prova disso são os índices decrescentes de popularidade do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, enquanto Brasília buscava inverter sua queda de prestígio com ações de marketing e substituição de ministros, uma pesquisa do instituto Quaest indicava que a desaprovação do governo supera 60% nos estados maiores (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). E que o percentual de aprovação vem despencando em redutos lulistas tradicionais, como a Bahia e Pernambuco.
O governo precisa ficar atento! Num cenário de inflação em alta, gastos desnecessários e popularidade em queda, todos os integrantes do governo deveriam evitar deslizes capazes de piorar ainda mais a situação. Pois foi justamente isso — ou seja, prejudicar a imagem do governo — que fez a ministra dos Direitos Humanos Macaé Evaristo. Em um evento sobre Direitos Humanos realizado em São Paulo no dia 20 de fevereiro, Macaé recebeu das mãos de um cidadão chamado Mohamad El-Kadri um Keffieh — aquele lenço quadriculado que compõe a indumentária típica dos palestinos. El-Kadri comanda uma ONG chamada Fórum Latino-Palestino, que zela pelos interesses do Hamas no Brasil. Ao lado do sorridente defensor de terroristas, a ministra do governo brasileiro, tão sorridente quanto ele, posou para fotos que circularam pelas redes sociais. Naquele mesmo dia, em Gaza, os estupradores, infanticidas e sequestradores do Hamas encenavam o espetáculo macabro da devolução dos corpos de reféns mortos em suas masmorras depois de arrancados de forma covarde de suas casas no dia 7 de outubro de 2023.
A crueldade da cena ficou ainda mais evidente depois de Israel revelar que o caixão que deveria conter o cadáver de Shiri Bibas — mãe das crianças Ariel, de quatro anos, e Kfir, de oito meses, também trucidadas de forma covarde — continha o corpo de outra mulher. A revelação só fez aumentar a repulsa aos terroristas. Enquanto o mundo reagia indignado a essa covardia, a ministra Macaé agia como se continuar apoiando o Hamas fosse uma atitude inocente e sem consequências. No campo privado, Macaé pode posar para fotografias ao lado de quem quiser — e o fato de apoiar estupradores e sequestradores passa a ser um problema apenas dela e de sua consciência. Como ministra, porém, deveria pensar duas vezes antes de se expor a esse tipo de situação. Se deixar fotografar ao lado de El-Kadri — como também já fez o assessor de assuntos internacionais da Presidência, Celso Amorim —, num momento como o atual, pode não ajudar a piorar a situação fiscal do país. Mas também não contribui para melhorar a reputação que o governo vê cair a cada dia.
Será que ninguém em Brasília parou para avaliar que parte da erosão do prestígio do governo se deve justamente a essa falta de sintonia com o sentimento da população? Será que o apoio aos estupradores do Hamas, assim como a falta de combate aos criminosos que mantêm a sociedade brasileira sob ameaça permanente, também não ajuda a empurrar a popularidade do governo ladeira abaixo? São questões que deveriam ser avaliadas com urgência, caso Brasília realmente pretenda recuperar a popularidade perdida, não é mesmo?
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