De um lado, a Lei Orçamentária é a mais necessária: precisa prever todas as despesas federais. Do outro, é a mais inútil: ninguém crê que seja cumprida ao pé da letra
Arte coluna Nuno 23 março 2025 - Arte Paulo Márcio
Dependendo do ângulo que se olhe, a Lei Orçamentária Anual para 2025, aprovada pelo Congresso Nacional na noite de quinta-feira passada, pode ser vista de duas formas distintas e contraditórias. Por um lado, ela é absolutamente necessária. Sem o Orçamento, até segunda ordem, o dinheiro público não pode ser distribuído entre os ministérios e a administração federal fica desnorteada. Por outro lado, a Lei é completamente inútil. A possibilidade do texto aprovado pelos parlamentares resistir aos meses que faltam para o ano terminar e não chegar a dezembro completamente desfigurada é zero.
Pode apostar: mais dia, menos dia, surgirá alguém com ares de salvador da Pátria para defender que se mexa no texto aprovado, que se aperte daqui e se arroche de lá para fazer surgir o dinheiro que financiará algum programa multimilionário — como o prometido Pé-de-Meia, que financiará estudantes da rede pública, que ficou fora do orçamento. Com a popularidade do governo em baixa e as movimentações com vistas às eleições do próximo ano ganhando velocidade, a tentação de se abrir o cofre para cobrir despesas populistas é praticamente irresistível — e quem sofrerá com isso, mais uma vez, será o equilíbrio fiscal que desde 2023 vem sendo prometido e não entregue pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad.
Seja como for, a Lei Orçamentária está aí e detalha, tim-tim por tim-tim, como deverão ser gastos os R$ 5,8 trilhões que manterão a máquina federal em operação. E, por menos que se possa levar essa previsão a sério, promete chegar ao final do ano não com o déficit zero prometido por Haddad, mas com um superávit de R$ 15 bilhões — algo em que nem as emas que circulam pelo gramado do Palácio da Alvorada seriam capazes de acreditar. A verdade é que pouca gente no Brasil parece levar o Orçamento a sério. E a principal razão na descrença em relação a um documento tão importante vem da maneira pela qual ele é tratado pelos responsáveis por sua elaboração.
JEITINHO BRASILEIRO — Pela importância que tem para o governo e para a sociedade, a Lei Orçamentária deveria ocupar o topo das prioridades do Congresso Nacional. Só que não. A não ser pelo fato de conter a previsão dos RS 50 bilhões que deverão ser destinados às tais emendas parlamentares, a impressão que se tem é que as senhoras e os senhores congressistas não deram a mínima importância para ela.
Caso tivessem dado, não teriam permitido que o ano avançasse tanto sem eles que se dessem ao trabalho de votar a matéria. Note-se: pelo regimento, a previsão de receitas e despesas para este ano já deveria ter sido aprovada em 2024. Acontece, porém, que ela só veio a se transformar em lei 78 dias depois do início de 2025. Não é pouca coisa: janeiro passou, fevereiro foi embora e março já estava para além da metade no momento em que Suas Excelências resolveram se mexer e aprovar aquilo que tinham a obrigação de apreciar no ano passado. Em tempo: esses 78 dias de atraso representam pouco mais de 21% dos 365 dias do ano.
O texto foi aprovado em votação simbólica — sem a necessidade de manifestação individual pelo placar eletrônico. E o texto só saiu porque um acordo, negociado pela ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, estabeleceu um cronograma para o pagamento das emendas parlamentares. E mais: também ficou acertado que deputados e senadores terão o poder de indicar onde deverão ser investidos R$ 11,2 bilhões da verba destinada a programas do governo. Mesmo diante de circunstâncias como essas, os senadores e deputados fizeram questão de reagir, no final da história, como se estivessem participando de um momento histórico. Ao invés de demonstrar constrangimento e se desculpar perante a sociedade pelo atraso vergonhoso de um trabalho que, conforme o regimento, deveria ter sido entregue há um tempão, eles comemoraram a aprovação do orçamento como se tivessem realizado um ato heroico!
Em um país sério, o atraso de quase três meses na aprovação do orçamento teria paralisado a máquina pública e impedido que o governo gastasse um único centavo. Não haveria dinheiro para nada! Nem para o pagamento dos salários dos servidores, nem para o pagamento das contas de luz dos prédios da administração, nem para a compra de remédios para os hospitais públicos nem para o cafezinho servido nas repartições.
Entretanto, no Brasil tudo se resolve na base do jeitinho. E, diante dos atrasos que se tornaram habituais para a aprovação do Orçamento, inventaram uma maneira do governo seguir tocando a vida. O Executivo pode seguir gastando normalmente, desde que a conta não ultrapasse o total de 1/12 das despesas previstas no orçamento do ano anterior.
PIRRAÇA E TEIMOSIA — A julgar pelo início da história, pode-se dizer que a novela em torno da aprovação do orçamento deste ano teve um final inesperado. No começo, tudo parecia andar às mil maravilhas. Tanto assim que o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, documento que antecede à elaboração do orçamento, foi encaminhado pela ministra do Planejamento, Simone Tebet ao Congresso no dia 19 de fevereiro de 2024 (isso mesmo, 19 de fevereiro!).
Os meses foram passando e o texto ficou por lá, quieto como um urso em hibernação, sem que nenhuma alma responsável se encarregasse de pô-lo para andar. No final das contas, a Lei de Diretrizes Orçamentárias só foi votada na Comissão Mista de Orçamento no dia 17 de dezembro. Ou seja, no apagar das luzes do exercício. No dia 18 de dezembro, na véspera de completar dez meses de sua chegada ao Congresso, a Casa Legislativa se dignou a aprovar a LDO. Só no dia 30, ou seja, véspera do réveillon, a Lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A razão para essa lerdeza toda é tão óbvia que parece estar pichada em letras garrafais nas paredes do Congresso Nacional. Os senhores parlamentares resolveram fazer birra, pirraça, teimosia, ou seja lá o qual for o nome que se dê a isso, porque o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, endureceu o jogo em relação a um grupo especialmente suspeito de emendas parlamentares. O alvo de Dino eram aquelas emendas que são propostas, negociadas, tramitam e recebem são pagas com dinheiro público sem estarem sujeitas a qualquer controle ou possibilidade de rastreamento.
Como Dino mandou suspender a farra, Suas Excelências insurgiram-se. E prometeram não votar o orçamento de 2025 enquanto não recebessem uma garantia de que poderiam seguir dispondo do dinheiro do povo da forma que bem entendessem, sem que ninguém os molestasse. No final, os parlamentares alteraram o procedimento para execução dessas emendas para que pudessem seguir fazendo exatamente o mesmo que já faziam desde os governos de Dilma Rousseff e de Jair Bolsonaro: gastar dinheiro público a rodo sem dar satisfação a ninguém.
SUSHI E SAQUÊ — Antes que o texto fosse levado a votação, começou a circular em Brasília a notícia de que o documento, embora praticamente pronto para ir a plenário, só deveria ser votado no início do mês de abril. A razão para isso era para lá de prosaica. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União/AC), e o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos/PB) estavam com viagem marcada para o Japão e o Vietnã, na comitiva do presidente Lula. Sendo assim, deixariam o Orçamento de lado e só voltariam a se preocupar com ele quando retornassem ao Brasil. Afinal, quem já esperou tanto tempo pela conclusão do Orçamento, poderia perfeitamente esperar mais duas ou três semanas, não é mesmo?
A história pegou mal. Muito mal. Além de Alcolumbre e Motta nada terem a fazer em Tóquio, a não ser comer sushi e tomar umas doses de saquê, eles ainda estavam pensando em deixar para depois da volta um trabalho que deveria estar concluído há muito tempo. Aliás, eles nem tinham que estar na comitiva. A viagem de Lula tem caráter comercial e se destina a abrir as portas do bilionário mercado japonês e do emergente mercado vietnamita para a carne da JBS, os aviões da Embraer, o minério da Vale e a soja do Centro-Oeste — tarefas com as quais, convenhamos, os parlamentares não podem nem devem se envolver diretamente. Diante das reações negativas e das críticas que começaram a pipocar, os dois mudaram de ideia. Não desistiram de embarcar na caravana, mas pelo menos resolveram viajar sem deixar para trás uma pendência que já estava se tornando incômoda.
DESPESAS OBRIGATÓRIAS — Quem lê o texto elaborado pelo relator da matéria, senador Ângelo Coronel (PSD/BA), fica com a impressão de estar diante de um documento irrepreensível. O texto demonstra atenção com questões minuciosas e se mostra atento aos interesses dos parlamentares, de todos os partidos e de todas as regiões do país. O documento, porém, se tornaria mais realista se trouxesse aquela advertência que, de vez em quando, aparece em filmes inspirados em fatos reais. “Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência”.
Pelo que tem sido observado nos últimos exercícios, é natural que o orçamento seja desfigurado ao longo do ano. Muitas das despesas previstas deixam de ser pagas. Outras, que não estavam previstas, vão sendo criadas. Além disso, há um grupo importante de compromissos de execução obrigatória, que independem da intenção do Executivo ou do jogo de forças no Legislativo. Trata-se das despesas obrigatórias.
Elas são lideradas pelos repasses constitucionais para os entes federativos e os demais poderes, pelas despesas com pessoal, pelos encargos sociais e pelos benefícios da previdência social. O problema é que, de acordo com a legislação brasileira e com a falta de interesse em zelar pelo interesse público, as despesas obrigatórias crescem por si só, sem que o governo ou quem quer que seja consiga evitar que elas subam.
CURRAIS ELEITORAIS — A situação não é fácil, e a pressão dos gastos obrigatórios sobre as contas públicas é permanente — e a consequência do estouro dessa meta é a inflação, que a todo instante tem ameaçado fugir do controle. O problema é que nem o governo atual nem os outros que vieram antes dele moveram uma palha para alterar esse cenário. Nenhuma autoridade do país, até hoje, parou para discutir seriamente o impacto sobre os gastos públicos dos privilégios absurdos que o Poder Judiciário, que custará ao país R$ 59,9 bilhões em 2025, concede a seus integrantes. Um levantamento publicado pelo portal UOL na sexta-feira passada revela que dez juízes ligados ao Tribunal de Justiça do estado de Rondônia tiveram no ano passado vencimentos anuais que variaram entre R$ 2 milhões e R$ 2,5 milhões. Oito desses dez meritíssimos já estão aposentados e carregarão por toda vida os privilégios que tinham na ativa.
Esses e outros pontos já foram mencionados aqui e em outros lugares — mas há um outro aspecto cada vez mais preocupante que não pode ficar de fora. O orçamento aprovado na quinta-feira prevê nada menos do que R$ 1,7 trilhão (ou seja, quase 30% de tudo que sairá do caixa do governo) para a rolagem da dívida pública. Essa necessidade, é evidente, seria muito menor se a gastança e a falta de seriedade na destinação do dinheiro público não tivessem imposto ao Brasil a taxa de juros mais elevada do mundo.
Elevada pelo Copom, do Banco Central, para 14,25% ao ano na reunião da semana passada, a taxa Selic deve chegar a 15% em maio. Essa é, no final das contas, a consequência da falta de seriedade e da atenção exclusiva aos próprios interesses com que a maioria do Congresso trata as finanças públicas. E o povo? Ora, cada vez fica mais claro que o povo, em meio a toda essa história, é apenas um detalhe...
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