Por karilayn.areias

Rio - A vida política brasileira parece ter perdido qualquer noção do ridículo. O fenômeno afeta os três Poderes e os exemplos são muitos. A noite em que a Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff é apontado como o momento em que a chamada ‘cultura do ridículo’ se estabeleceu como uma forma dominante da vida política nacional. Naquela noite, parlamentares que decidiam o futuro do país, no microfone do plenário,mandaram beijos para filhos e sogra e evocaram Deus e o diabo. Um deles, o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) achou por bem dizer a frase: “Se os agricultores não plantam, ninguém almoça nem janta”.

Sessão do impeachment da ex-presidente Dilma na Câmara%3A o ridículo político exposto sem filtrosMarcelo Camargo/Agência Brasil

No dia seguinte, o Brasil parecia ter caído na real, com a descoberta do baixo nível de sua representação. Para a filósofa Marcia Tiburi, no entanto, o espetáculo do ridículo é calculado e gera dividendos eleitorais. “O ridículo político não é ingênuo: ele é uma teia para agarrar moscas tontas, aqueles que perderam tanto o senso de cidadania quanto o amor pelo conhecimento e que seguem repetindo ideias prontas”, diz ela, em seu mais recente livro, O Ridículo político (Ed. Record).

Para Marcia, o ridículo é a “forma visível da crise do político”. “Estamos submersos no que podemos chamar de cultura do ridículo, que passa a ser considerado normal”, diz a filósofa. Nesse sentido, fenômenos como o do deputado Marcelo Aguiar (DEM-SP), que propõe um projeto para reduzir a masturbação, afirmando na justificativa que “a pornografia veio substituir a prática sexual com outra pessoa”, não tem maiores consequências junto ao eleitorado.

“O ridículo cresce numa cultura em que a inteligência diminui. As pessoas vão perdendo a vergonha”, diz Márcia, o que explica como políticos como o deputado Jair Bolsonaro disparem frases inclassificáveis como “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens; a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”, sem maiores consequências junto ao eleitorado, inclusive feminino.

HOMEM SEM VERGONHA

Marcia fala no livro do “homem sem vergonha”, aquele para quem fingir para si mesmo tornou-se regra. “A gente sente vergonha quando vê que o personagem aparenta não sentir vergonha. Se ele sentisse vergonha, a gente poderia sentir compaixão”, diz, admitindo que o discurso em que o presidente Michel Temer diz não ter denunciado o empresário Jessel Batista a depois de ele ter confessado haver “comprado” juízes, em conversa íntima no porão do Palácio do Jaburu a porque o empresário é “um falastrão” cabe no conceito.

Marcia diz que escreveu o livro porque “queria que as pessoas aprendessem a prestar atenção”. “Nossa atenção está muito prejudicada no meio da vida digital. Nós nos transformamos em indivíduos distraídos”. 

Desprezo à verdade tem consequências, adverte Marcia

“Falar merda, falar por falar, praticar a falação, pode parecer algo sem mais consequências, mas prejudica demais a verdade”, adverte Marcia Tiburi, em Ridículo Político.

Um dos maiores faladores da República, atualmente, é o deputado Carlos Marun (PMDB-MS). Parlamentar de primeiro mandato, alçado ao posto de vice-líder do PMDB, ele tem se notabilizado pela defesa de lideranças que balançam no abismo. Primeiro, foi Eduardo Cunha, sobre quem disse, na sessão em que ele foi cassado que “a sociedade não estava contra Cunha” e, ao ver a derrota, ameaçou: “A história vai julgar os senhores”.

Agora, é Michel Temer. Nessa semana, ele soltou declarações originadas em uma realidade paralela. Pela lente de Marun, o julgamento do TSE foi positivo. “O governo sai mais forte, com mais musculatura”, analisou. Ele também comemorou a ‘popularidade’ do governo. “A população não está caindo neste golpe. A conspiração asquerosa fracassou", disse.

Tiburi adverte para o risco desse discurso descompromissado. “Desinteresse pela verdade dá margem a todo tipo de manipulação”.

Marcia TiburiReprodução Facebook

5 MINUTOS COM: MARCIA TIBURI

Você fala em 'vergonha alheia' no livro. Parece que vivemos esse sentimento de forma permanente nos dias atuais.

A gente fica com vergonha alheia quando, como cidadão, se vê diante de um tipo de fala em que percebe o ridículo. Quando vê que o personagem, aparentemente, não sente vergonha, a gente sente a vergonha que ele deveria sentir. Quando, na nossa vida diária, a vemos alguém passando algum vexame, a gente sente pena. Mas isso não se dá por quem vive o vexame e até tem ganho eleitoral com ele, como deputados com discurso homofóbico.

‘Falar merda’ não é um fenômeno tão antigo quanto a fala?

Mas, desde o advento das redes sociais, se tornou uma avalanche.Os meios de comunicação produzem isso de maneira técnica. A população começa a copiar e colar esse discurso, que é institucional. O político capitaliza isso.

Como?
Dentro de uma cultura em que o ridículo se estabelece como normal, o sujeito que seria ridicularizado capitaliza a sua capacidade de falar besteira e começa a ganhar voto com isso. De repente, ele percebe que quanto mais merda fala, mais ganha voto.

Exemplos...
Deputados homofóbicos são casos interessantes. Eles defendem castração química e falam em ‘ditadura gayzista’. Esse tipo de tese que não tem nenhum sentido científico forma o espetáculo da ignorância, que se vende como grande verdade, especialidade de muitos políticos. E tem gente bem formada que curte isso por perversão — e repercute. Sem falar em homossexuais que defendem discursos homofóbicos. É a banalização do ridículo.

E a reação de muitos é o sentimento de ‘nojo da política’ a que você se refere?
As pessoas sentem a dor da perda da confiança na possibilidade da política na forma do nojo, do ódio, que é, no fundo, uma profunda tristeza pela perda da política como promessa. Há um projeto de destruição da força da política, que é totalmente do interesse dos donos do poder.

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