Especialistas acreditam que o PL 490 tenta alterar a responsabilidade de quem tem competência de demarcar, tirando do Poder Executivo e levando para o LegislativoMarcello Casal Jr/Agência Brasil

Há duas semanas, indígenas de diferentes etnias têm realizado protestos em Brasília, no Distrito Federal, contra o Projeto de Lei 490, de 2007, que altera a legislação da demarcação das terras e dos acessos a povos isolados. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), da Câmara dos Deputados, aprovou o projeto nesta quarta-feira, 23, por 40 votos favoráveis e 21 contrários. Com a liberação, altera-se o Estatuto do Índio definido na Constituição de 1988.

De acordo com especialistas, o PL prevê uma série de ataques aos povos indígenas no Brasil. O principal deles é a criação de um "marco temporal" que define que para a demarcação de terras os indígenas devem estar ocupando ou usando o local desde 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal, restringindo assim novas demarcações.
Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), acredita que o projeto tenta alterar a responsabilidade de quem tem competência de demarcar, tirando do Poder Executivo e levando para o Legislativo. Além disso, vai dificultar e paralisar, de uma vez por todas, as demarcações das terras indígenas.
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“Esse projeto de lei é um pacote de maldades. Inicialmente, foi pensado para dialogar o estatuto do índio, porém foram realizadas várias substituições e trouxeram debates que não competem ser regulamentados dentro de um PL. Incluído nisso, há termos que são exclusivamente constitucionais, como a questão do marco temporal”, disse Tuxá.
Flávio de Araújo, doutor e professor de Geografia da Faculdade Anhanguera de Niterói, diz que esse marco temporal é considerado um dos maiores retrocessos do governo atual. “Entregar, em pleno século XXI, esse tipo de proposta só sobrepõe a ideia de colonizar, explorar e abusar ainda mais dessas pessoas", afirma ele. 
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Ainda de acordo com Araújo, a proposta é totalmente na direção oposta na qual os povos indígenas deveriam receber de direitos. "Compreender que não estamos mais na mentalidade dos séculos XV e XVI já é um avanço. Deveríamos estar falando em  promover ações que incluam os grupos indígenas, respeitando suas características, culturais e religiosidade. Não precisamos 'catequizar' nenhum deles e muito menos impor os modos de vida da sociedade de consumo”, diz o especialista.
De acordo com o jurídico do Conselho Indigenista Missionário, os povos indígenas só teriam direito à demarcação daquelas terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988. "E isso é muito sério, pois demonstra a total falta de preocupação com os indígenas deste país. Se não bastasse tudo que já passaram desde a colonização, aos trabalhos escravos e tantos outros absurdos por séculos”, conclui o professor.
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Relator do projeto 
De acordo com Arthur Maia (DEM-BA), relator do projeto, o marco temporal de 1988 já tem jurisprudência do Supremo Tribunal Fereral (STF) e tomou como base o julgamento da demarcação da terra indígena Raposo Serra do Sol, em Roraima. O relator deu entendimento de renitente esbulho, como conflito possessório. O texto apresentado por Maia torna obrigatória a participação de estados e municípios nos procedimentos de demarcação em que se localize a área determinada e das comunidades interessadas.

Segundo o projeto, o processo será aberto a manifestantes interessados e a entidades da sociedade civil, do início do processo administrativo demarcatório. A proposta abre espaço para exploração, em terras indígenas, e permite a retomada de áreas reservadas destinadas aos índios, em razão da alteração dos traços culturais ou por decurso do tempo.
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Impacto nacional
Atualmente, no Brasil, há cerca de 800 mil indígenas, que ocupam cerca de 13% do Brasil. A maioria do território ocupado por eles fica na Amazônia Legal. Entretanto, suas terras são constantemente ameaçadas e invadidas, comprometendo assim, a sua sobrevivência, já que as atividades indígenas são tradicionalmente vinculadas à terra.
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Karibuxi, idealizadora do ProIndígenas e coidealizadora do Boletim IndígenasCovid, considera a proposta uma continuidade de um projeto colonial que se estende há 521 anos.
“Esse PL visa os anseios da bancada ruralista, da bancada evangélica e da bancada da bala, pois abre passagem, não somente para a invasão dos territórios pelo agronegócio, grileiros, madeireiros, narcotráfico, garimpeiros, mas também aos missionários que a todo custo tentam catequizar e alcançar os povos em isolamento voluntário, levando sério risco de genocídio para estas populações", afirma. 
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Ainda segundo Karibuxi, o PL fere a constituição federal e os tratados internacionais que o Brasil é signatário, como a OIT 169, que garante autonomia e autodeterminação dos povos. "É um PL inconstitucional. Os não indígenas acham que este PL irá afetar somente os povos indígenas, mas ele afetará a todos, seja ele residente em cidade pequena ou grande, pois são os povos indígenas que protegem 80% da biodiversidade do planeta”, afirmou Karibuxi.
A violência e as invasões se devem ao fato de que áreas indígenas impedem a exploração dos recursos naturais pelo setor privado, o que gera conflitos. É importante ressaltar que, no Brasil, a apropriação das terras indígenas por fazendeiros e empresários já destruiu diversas comunidades.
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Desde 2010, os conflitos já causaram a morte de mais de 350 indígenas. Na maioria das vezes, são causadas por fazendeiros e empresas de exploração de madeira ou minério.
O relator Maia justificou a proposta afirmando que pretende conceder aos indígenas as condições jurídicas em diferentes graus de interação com a sociedade. “Exercendo os mais diversos labores, dentro e fora de suas terras, sem que, é claro, deixem de ser indígenas”, alegou.
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“Tratar da questão indígena requer muita responsabilidade política. Uma porção de terra pode ser economicamente muito ambicionada, seja pelo possível preço de sua comercialização, seja pela possibilidade de uso e extração de recursos naturais diversos, como por meio do garimpo e da mineração. Mas lembremos que o mesmo território para uma comunidade tradicional indígena é um espaço culturalmente histórico e sagrado, em seus rios, vegetação e formações do relevo”, afirma Leandro Dias de Oliveira, pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana e professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Dias ainda pontua as tradições e o impacto cultural do projeto para os povos indígenas. “Além da gigantesca importância cultural e do necessário respeito às tradições dos grupos indígenas, também devemos levar em conta a seguinte questão: tais povos têm sabido viver de forma mais harmônica com a natureza. Em meio às propostas de retirar, dificultar, alterar e restringir a demarcação das terras indígenas, há um claro projeto de desenvolvimento avassalador, social e economicamente excludente e destruidor do meio ambiente”, conclui o pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana.
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*Estagiários sob supervisão de Marina Cardoso