Servidores denunciam alteração do relatório final da Comissão Nacional da Verdade
Ao menos, partes de pelo menos seis páginas foram autorizadas a serem removidas do documento. O objetivo foi retirar um dos nomes da lista de torturadores de Pernambuco
Ex-coronel da PM de PE foi diretor durante anos da Casa de Detenção do Recife, agora, Casa da Cultura, que ainda hoje, é chamada por muitos de "Casa da Tortura" - Reprodução
Ex-coronel da PM de PE foi diretor durante anos da Casa de Detenção do Recife, agora, Casa da Cultura, que ainda hoje, é chamada por muitos de "Casa da Tortura"Reprodução
Rio - Servidores do Arquivo Nacional denunciaram ao DIA uma decisão do juiz federal da 6ª Vara do Tribunal Regional Federal de Pernambuco, Hélio Sílvio Ourem Campos, que altera o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que analisou o período da Ditadura Militar. Ao menos, partes de pelo menos seis páginas foram autorizadas a serem removidas do documento. O objetivo foi retirar um dos nomes da lista de torturadores de Pernambuco.
O julgamento da ação, cujo conteúdo tramita sob segredo de justiça, determinou a retirada de todas as menções publicadas no relatório final da CNV sobre Olinto de Sousa Ferraz, ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco.
Segundo uma das fontes, a sentença foi publicada em 22 de junho do ano passado, porém os servidores só vieram a saber quando a peça já havia transitado em julgado, sem tempo para apelação.
De acordo com o servidor, o Arquivo Nacional começou a tratar do caso em 19 de janeiro deste ano. No Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do AN, é possível visualizar a tramitação da demanda, mas não é possível ter acesso ao processo – que também tramita sob condição de restrição.
"A 'anonimização' determinada pela Justiça – que pode ser interpretada como censura – não apenas afronta a legislação vigente, como também abre um perigoso precedente para o acesso à informação e ao conhecimento histórico no país. Ao determinar que partes de documentos públicos considerados de guarda permanente e de livre acesso sejam tarjadas, o Poder Judiciário não apenas obstrui a acidentada jornada brasileira por memória, verdade e justiça sobre os crimes da ditadura, como dá aval para a disseminação da censura sobre documentos e informações públicas custodiados nos arquivos brasileiros", disse a fonte.
"É uma sentença contra a Comissão Nacional da Verdade, e um processo contra a União Federal. E, estranhamente a Advocacia-Geral da União (AGU), que tinha a obrigação de defender o relatório, não o fez. A Comissão Nacional da Verdade foi o resultado de um longo e criterioso trabalho de um órgão da República, um órgão do Estado brasileiro", afirmou outra fonte.
De acordo com Edival Nunes Cajá, ex-preso político, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa e coordenador do Comitê Memória, Verdade e Justiça para Democracia-PE (CMVJD-PE), aos ex-presos políticos e familiares dos mortos e desaparecidos políticos, a informação só foi divulgada quando a sentença foi encaminhada para ser cumprida pelo Arquivo Nacional.
"Tal sentença negacionista é um atentado contra a memória histórica da nação, contra a justiça de transição, sem ter ouvido nenhum dos ilustres e inatacáveis membros da CNV. É uma medida, uma sentença muito grave, perigosa, absurda que, na prática, visa adulterar a história, negar o terrível passado pelo qual passamos no decorrer dos 21 anos de ditadura militar cujos crimes continuam impunes, até hoje", afirmou ele.
Com essa decisão, Cajá acredita que se abrirá uma brecha para futuros nomes serem retirados do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. "Querem obter jurisprudência para pouco a pouco retirarem outros nomes das pessoas envolvidas no genocídio, que foi o processo de eliminação dos opositores daquele regime fascista. Inclusive, que levou os próprios agentes do Estado encarregados da custódia de cidadãos já presos e sentenciado pela justiça", destacou ele.
Procurado pelo O DIA, o Arquivo Nacional informou que recebeu solicitação para cumprimento do processo judicial. A ação diz que estabeleceu que "a decisão proferida possui executoriedade imediata, pois estão presentes todos os requisitos para cumprimento da obrigação de fazer que incumbe à União".
Como determinado, a decisão foi cumprida, e as alterações foram implementadas no documento que pode ser visualizado no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Sian), plataforma de acesso online aos documentos de arquivo custodiados. "Não obstante, o Arquivo Nacional vê com preocupação decisões judiciais que vão de encontro às recomendações – nacionais e internacionais – da área de arquivos, e ao direito de acesso à informação consagrado na Lei n.º 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação)", analisou o Arquivo Nacional.
"O Arquivo Nacional trabalha, incansavelmente, pela abertura de todo e qualquer conjunto de documentos públicos que esteja sob sua custódia. Para tanto, busca seguir parâmetros mundiais de transparência, dados abertos e Governo Aberto, e está constantemente em transformação para atender as demandas de interesse público relativas aos documentos do acervo e às informações neles contidas.
Diante dessa decisão, o movimento organizado pelo direito do povo à memória, à verdade e à Justiça para Democracia através de comitês, como o CMVJD-PE e outras entidades estão se organizando para tratar nacionalmente sobre o assunto", finaliza a nota.
Ex-coronel de Pernambuco
As páginas que retiradas do relatório final trazem a documentação sobre as práticas do ex-coronel da PM de Pernambuco. Olinto foi diretor durante anos da Casa de Detenção do Recife, agora, Casa da Cultura, que ainda hoje, é chamada por muitos de 'Casa da Tortura'.
Olinto dirigia o local quando Amaro Luiz de Carvalho (1931-1971), militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR), foi morto no cárcere. À época, a Secretaria de Segurança de Pernambuco divulgou que Amaro havia sido envenenado por seus próprios companheiros de cela. No entanto, a versão foi contestada pela perícia do caso. De acordo com levantamento feito pelo portal Memórias da Ditadura, o atestado de óbito do militante assassinado registra que sua morte se deu por "hemorragia pulmonar decorrente de traumatismo de tórax por instrumento cortante".
A CNV, que investigou os crimes da última ditadura civil-militar entre 2011 e 2014, concluiu que a morte de Amaro foi em decorrência de ação cometida por agentes do Estado brasileiro. Além disso, a CNV recomendou a continuidade das investigações sobre as circunstâncias da morte e a identificação e responsabilização dos agentes envolvidos no assassinato.
Um dos trechos do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que sistematiza os casos de morte e desaparição durante o período investigado, apresenta o ex-coronel como integrante da "cadeia de comando do órgão envolvido com a morte" de Amaro. Em uma das páginas, o nome do ex-coronel da PM de Pernambuco também é mencionado como um dos "agentes de graves violações de direitos humanos".
No entanto, a partir de agora, as tais menções só podem ser consultadas nas versões do relatório disponibilizadas pela imprensa. Como resultado do julgamento da ação promovida, nos documentos digitais disponibilizados pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), as nominações ao ex-coronel aparecem tarjadas em preto:
"A morte do compatriota e revolucionário Amaro Luiz de Carvalho ocorrida, no pátio do presídio sob sua responsabilidade, e sem qualquer punição pelo cometimento daquele crime, é um fato irrefutável, é um libelo acusatório, que ainda clama por justiça, não é uma hipótese, uma invenção da esquerda", afirmou Cajá.
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