Neste ano, principal política pública brasileira para redução da desigualdade de acesso ao ensino superior, completa 10 anosPixabay/foto ilustrativa
A pesquisa combinou metodologias qualitativas e quantitativas, focando na comparação entre dois grupos: cotistas/beneficiários: pessoas que acessaram universidades federais utilizando as vagas reservadas pela lei 12.711; e elegíveis: pessoas que cumpriam os requisitos da lei, mas ingressaram no ensino superior por outros caminhos. Como abordagem quantitativa, foi realizada uma survey a partir de um questionário online enviado exclusivamente para a rede da Empodera, que reúne mais de 70 mil pessoas em todo o país. Esta etapa tinha como objetivo mapear aspectos gerais ligados ao perfil destes 2 grupos de interesse, e recebeu um total de 632 respostas. Já na etapa qualitativa da pesquisa, foram entrevistadas, individualmente, 20 pessoas – cotistas e elegíveis –, a partir de um roteiro estruturado, o que rendeu dezenas de horas com um aprofundamento denso em suas trajetórias antes, durante e depois da passagem pelo ensino superior.
"Através desse estudo, descobrimos que as ações afirmativas transformam a realidade dos estudantes não só de forma individual, como também coletiva, antes mesmo da chegada à universidade”, comenta Gabriel Milanez, vice-presidente e estrategista da Box1824. "Saber que as cotas existem motiva os elegíveis a se dedicarem mais aos processos seletivos; dentro de uma instituição federal, os cotistas acessam novos conhecimentos, atividades extracurriculares e uma rede qualificada de contatos que fazem diferença na transição para o mercado de trabalho. Essa primeira geração de cotistas da lei federal está conquistando trabalhos e rendimentos inéditos dentro de suas famílias, tornando-se referências dentro dos seus círculos próximos e motivando outras pessoas a tentarem seguir caminhos semelhantes".
Em síntese, o estudo visa compreender, pelo contraste das informações e narrativas de pessoas beneficiárias e as elegíveis à Lei de cotas, quais os principais impactos – objetivos e subjetivos – das ações afirmativas em suas trajetórias. Além disso, apresenta um panorama histórico das ações afirmativas no Brasil, apontando os marcos da luta política que culminou na criação da política, e mencionando evidências de outros trabalhos sobre o tema e apresenta propostas de futuro destinadas a diferentes setores, para que possam se engajar de forma prática e ativa no movimento de inclusão, seja na educação, no mercado de trabalho, na política, ou no cotidiano de forma geral.
Dados do IBGE, mostram que apenas 21% dos brasileiros, entre 25 e 34 anos, têm Ensino Superior completo e 90% dos brasileiros têm renda inferior a R $3,5 mil por mês. Para Leizer Pereira, CEO da Empodera, é importante mostrar os impactos da Lei de cotas no Brasil. “A Lei de Cotas já transformou a vida de milhares de pessoas e é importante que esse processo abra caminhos para inclusão de mais jovens'', diz ele.
1 - O impacto das ações afirmativas começa antes mesmo do vestibular. 78% dos cotistas concordam com a frase “antes de saber sobre as ações afirmativas, eu não cogitava ir para o ensino superior”. Em contraponto, 31% dos elegíveis que não usaram nem as cotas, nem nenhuma outra política afirmativa, acreditam até hoje que não se encaixam nos critérios da lei. É urgente que se tenha mais comunicação pública sobre as cotas em linguagem objetiva e convidativa, não apenas para informar, mas também para motivar pessoas elegíveis.
2 - As universidades federais representam um espaço inédito para muitas famílias. Dos cotistas entrevistados, 95% afirmam que o ingresso foi motivo de orgulho para a família e 46% declararam que foram as primeiras pessoas da família a cursar o ensino superior, materializando sonhos de várias gerações. Ainda assim, por viverem um momento de calibração de uma política recente, enfrentam uma série de dificuldades emocionais e financeiras. A política de cotas trata do acesso ao ensino superior, mas não pode ficar restrita a ele, afinal sua maior lacuna hoje é ligada à permanência. Todo apoio nesse sentido é crucial, sejam políticas públicas ou programas e auxílios de outros setores da sociedade que garantam a permanência qualificada na universidade.
3 - As conexões feitas na universidade ampliam visões de mundo e oportunidades futuras. 75% dos cotistas disseram que aumentaram muito o seu ciclo de amizades e contatos profissionais, e esse contato com pessoas de diferentes realidades e origens foi descrito como o maior ganho do ensino superior, pois implicaram em uma expansão das suas perspectivas pessoais. Criar espaços de circulação de oportunidades e de troca sobre outras realidades pode ajudar a fortalecer esse movimento atualmente orgânico.
4 - Os cotistas vivem em uma corrida contra suas próprias histórias e fazem esforços constantes para compensar uma vida inteira de desigualdades. Identificamos que os cotistas tendem a realizar um grande número de atividades extracurriculares ao longo da graduação de forma simultânea, motivados principalmente pelo desejo de: (i) compensar lacunas na formação, (ii) retribuir para a sociedade o que receberam e (iii) acumular experiências no currículo. É necessário, então, ampliar o leque de oportunidades disponíveis tanto durante a graduação quanto nos anos anteriores a ela, através de cursos livres, idiomas, tecnologia, habilidades técnicas para sua área, preparação para processos seletivos, estágios.
5- O custo de estar em um espaço de prestígio é alto e coloca os cotistas em uma constante pressão, tanto do mundo de origem quanto neste novo. Transitar entre realidades muitas vezes contrastantes faz com que os cotistas precisem responder a uma série de demandas e expectativas de suas famílias, de professores, colegas de turma, amigos, parentes etc. Pressionados para terem bom desempenho e apresentarem rapidamente os frutos do investimento na educação, vivem em constante tensão e preocupados com seu futuro profissional. Para contornar isso, é importante mais oferta de atendimento psicoemocional dentro das universidades, mas também fora delas.
6- Depois de tanto investimento, os cotistas tendem a ter uma boa autoestima e reconhecem o valor de seus diplomas. Conscientes do prestígio e qualidade da formação que tiveram, tendem a construir grandes expectativas sobre seus futuros profissionais, mas isso nem sempre acontece quando vão para o mercado de trabalho. É imprescindível que o mercado de trabalho passe a enxergar toda a potência dos cotistas, adequando processos de seleção para não perder pessoas que não se encaixam em pré-requisitos excludentes.
7- A formação universitária permite o acesso a trabalhos menos precarizados e a uma estabilidade financeira muitas vezes inédita para suas famílias. Após o término da graduação, 73% dos cotistas entrevistados declararam que estão trabalhando, destes, 80% são CLT. Além disso, observamos saltos de renda individual que chegavam a multiplicar em 10x os ganhos obtidos durante a universidade, o que permite que esses indivíduos possam oferecer melhores condições de vida para suas famílias. As experiências na área de trabalho são fortes alavancas para isso, então é crucial abrir mais oportunidades para perfis diversos em posições que viabilizem o contato antecipado com a prática profissional, como estágio, iniciação científica, empresas júnior etc.
8 - Após a graduação, os cotistas enfrentam novas experiências de exclusão: o ingresso na área de formação, uma permanência que não seja adoecedora e, principalmente, a ascensão profissional. Devido ao tabu sobre ações afirmativas no mercado, jovens profissionais altamente qualificados precisam migrar para outras áreas ou aceitar a estagnação em cargos de assistência. O mercado pode se inspirar mais em políticas públicas de inclusão bem-sucedidas, para tornar-se mais eficaz na sua recente busca pela diversidade.
9 - A vivência universitária alimenta o desejo de seguir investindo na educação. Novos sonhos, que até então pareciam distantes ou impensados, passam a parecer possíveis. Neste rastro, emerge a demanda por políticas públicas e privadas de inclusão na pós-graduação.
10 - Cada cotista carrega o potencial de multiplicar a inclusão vivida através do seu próprio exemplo. 83% dos cotistas entrevistados afirmaram que influenciaram amigos e familiares a estudarem mais ou voltarem a estudar. Isso significa que, muito além dos diplomas individuais, as ações afirmativas têm a capacidade de produzir novas referências e romper com processos de exclusão que se acumulam de geração em geração. Disseminar histórias causa identificação e motiva novas gerações. Portanto, podem e devem estar mais presentes na pauta pública brasileira.
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