Bolsonaristas retirados de acampamento do QG do Exército, em Brasília, são levados para ginásio da PFJosé Vianna/TV Globo

Há um ano, 8 de janeiro de 2023, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiam e depredavam os prédios públicos dos Três Poderes, em uma tentativa de golpe de Estado. O episódio gerou uma série de de desdobramentos e consequências para os envolvidos nas invasões. Mais de duas mil pessoas foram presas, 30 já foram condenadas e 66 seguem detidas. O ataque a democracia também foi investigado pela Polícia Federal (PF), que desenvolveu mais de 22 fases de uma operação intitulada "Lesa Pátria". Parlamentares ainda instauraram uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que acabou com a apresentação de dois relatórios, um governista e outro da oposição, com pedidos de indiciamentos.
No mesmo dia dos ataques, 243 pessoas foram presas dentro dos prédios públicos e na Praça dos Três Poderes, durante ação da polícia para retomar o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo.
Já na madrugada de 9 de janeiro, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou o afastamento do governador Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, por omissões diante dos atos de vandalismo. O magistrado também determinou o encerramento, em 24h, dos acampamentos realizados nas imediações de unidades militares, e a apreensão de ônibus que levaram os vândalos para Brasília.
Durante a manhã, os órgãos públicos começam o processo de identificar os danos causados pelos golpistas e limpar os estragos. No Supremo, no Planalto e no Congresso Nacional, o rastro de destruição era nítido.
Em paralelo, oficiais da Polícia Militar, Exército e da Força Nacional começaram a operação para retirar os bolsonaristas acampados em frente ao QG do Exército. O processo avançou por boa parte da manhã, já que muitos dos vândalos que participaram das invasões voltaram ao local.
Cerca de 40 ônibus lotados, com 1.927 extremistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro foram levados para a sede da Polícia Federal (PF). Desses, 775 foram liberados (idosos e mães de crianças menores, entre outros), e 1.152 permaneceram presos. Após exame dos flagrantes (audiências de custódia), 938 permaneceram presas.
Homens e mulheres detidos no presídio da Papuda e na Colmeia chegaram a reclamar das condições das penitenciárias, principalmente da comida e da superlotação das celas.
A advogados, presos reclamaram que as celas são "muito pequenas". Eles narram situações em que havia oito colchões para dez ou 11 pessoas. Ainda expõem questões de higiene, porque as celas possuem um único banheiro. A maioria, no entanto, afirmou ter sido tratada com respeito por agentes penitenciários, apesar de um ou outro ser mais "curto e grosso", conforme relatou a defesa de detentos.
Dois dias após os atos, o ministro Moraes ainda decretou a prisão do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres, que estava nos EUA, e do ex-comandante da PM Fábio Vieira.
Ao revistar a casa de Torres, agentes encontram a minuta de um decreto presidencial de Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O texto estipulava que uma comissão a ser formada teria poderes para revisar o resultado da eleição na qual Bolsonaro foi derrotado.
O ex-ministro disse que se tratava de "uma pilha de documentos para descarte". Desde então, o documento ficou conhecido como a "minuta do golpe". O ex-ministro da Justiça foi preso do dia 14 de janeiro, em Brasília, ao desembarcar de um voo vindo de Miami.
O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, afirmou que propostas semelhantes circulavam no entorno do presidente Jair Bolsonaro após a derrota nas eleições e que outras pessoas também tinham uma cópia do documento. "Aquela proposta que tinha na casa do ministro da Justiça, isso tinha na casa de todo mundo", afirmou Valdemar.
Até o momento, o Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos denunciou 1.413 pessoas, divididos em 1.156 incitadores, 248 executores, 8 agentes públicos e um financiador.
Pedro Luis Kurunczi, de Londrina (PR), foi a primeira pessoa a ser denunciada sob a acusação de financiar os atos criminosos de 8 de janeiro. A denúncia foi apresentada em dezembro. O processo tramita sob sigilo e, por esse motivo, o nome de Kurunczi foi omitido quando a PGR divulgou a notícia no final do ano. A identidade do empresário foi revelada pelo jornal "Folha de São Paulo".
A denúncia aponta que Kurunczi "gastou R$ 59,2 mil para fretar quatro ônibus e levar 108 pessoas a Brasília". De acordo com a PGR, além de financiar os deslocamentos, Kurunczi participou da organização e arregimentação de pessoas para a prática dos atos.
Kurunczi vai responder pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas podem passar de 30 anos de reclusão.

A denúncia ainda diz que, entre outubro de 2022 e o dia 8 de janeiro de 2023, Kurunczi teria participado ativamente de grupos de mensagens com teor golpista com o objetivo de incitar a população e as Forças Armadas para não só contestar o resultado das eleições como destituir o presidente Lula.
Lesa Pátria
As investigações sobre os atos golpistas geraram uma série de etapas da operação da PF com o nome de Lesa Pátria. Já foram realizadas mais de 22 fases da ação com o objetivo de cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão contra suspeitos de envolvimento nos atos golpistas, além de financiadores e incentivadores das depredações aos prédios públicos. Todos os investigados tiveram determinada a indisponibilidade de seus bens, ativos e valores.
"Os fatos investigados constituem, em tese, os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa, incitação ao crime, destruição e deterioração ou inutilização de bem especialmente protegido e crimes da lei de terrorismo", informou, em nota, a PF.
De acordo com o balanço da corporação, até o momento, a Lesa Pátria já cumpriu, em todas suas fases, 88 mandados de prisão e 367 mandados de busca e apreensão, e instauração de 17 inquéritos policiais.
Ainda segundo a PF, "as investigações continuam em curso e a Operação Lesa Pátria se torna permanente, com atualizações periódicas acerca do número de mandados judiciais expedidos, pessoas capturadas e foragidas".
A corporação ainda apontou que o grupo "Festa da Selma" criou um mapa para as pessoas saberem em quais pontos do Brasil conseguiriam pegar ônibus para irem a Brasília para as invasões. O mapa tinha cidades específicas e contatos de pessoas responsáveis pelos ônibus. As caravanas foram à capital do Brasil dois dias antes dos ataques às sedes dos Três Poderes.

De acordo com a Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT), 253 ônibus fretados chegaram ao Distrito Federal entre 5 e 8 de janeiro deste ano.
A primeira fase da Lesa Pátria foi realizada no dia 20 de janeiro, quando prendeu cinco suspeitos de participação, incitação e financiamento nos atos golpistas — entre eles "Ramiro dos Caminhoneiros", Randolfo Antonio Dias, Renan Silva Sena e Soraia Baccio. Foram cumpridos 8 mandados de prisão preventiva e 16 de busca e apreensão, expedidos pelo STF, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal.
Na segunda etapa da força-tarefa, policiais prenderam, em Uberlândia (MG), o extremista Antônio Cláudio Alves Ferreira, filmado destruindo um relógio do século 17 no Palácio do Planalto.
A terceira fase da operação deteve cinco pessoas, incluindo a idosa Maria de Fátima Mendonça, de 67 anos, que viralizou ao dizer em um vídeo que ia "pegar o Xandão". UM sobrinho de Bolsonaro, Leonardo Rodrigues de Jesus, o Léo Índio, - primo dos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) -, foi um dos alvos da última fase. Os agentes da PF cumpriram um mandado de busca e apreensão em sua residência. Ele participou dos atos de vandalismo em Brasília.
 Léo Índio   - Reprodução: redes sociais
Léo Índio Reprodução: redes sociais
No dia 3 de fevereiro, a PF abriu a quarta fase da investigação em cinco estados e no Distrito Federal. A ação prendeu o empresário conhecido como Márcio Furacão, que se filmou ao participar da invasão ao Palácio do Planalto, e o sargento da Polícia Militar William Ferreira da Silva, conhecido como "Homem do Tempo", que fez vídeos subindo a rampa do Congresso Nacional e dentro do STF.
Quatro oficiais da cúpula da Polícia Militar do DF foram presos na etapa seguinte, sob suspeita de omissão diante da ação dos radicais. Um deles é o coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, que ocupava a chefia do Departamento Operacional da corporação, setor responsável pelo planejamento da operação de segurança para o dia 8 de janeiro. Ele estava de licença no dia do ataque e foi afastado do cargo pelo então interventor federal Ricardo Cappelli. Além dele, foram presos: o capitão Josiel Pereira César; o major Flávio Silvestre de Alencar; e o tenente Rafael Pereira Martins.

A sexta fase prendeu seis radicais e outros três foram presos na sétima etapa da Lesa Pátria. As duas ações totalizaram oito mandados de prisão preventiva, além de 21 de busca e apreensão.
A oitava etapa da ofensiva teve o maior número de mandados. Ao todo, 32 investigados tiveram prisão decretada. A PF prendeu golpistas como a mulher responsável por pichar a estátua da Justiça, em frente ao STF, com a frase "perdeu, mané" e o homem que teria levado uma bola autografada pelo jogador Neymar da Câmara dos Deputados.
A fase 9 prendeu preventivamente um major da PM do Distrito Federal da reserva, suspeito de incitar os atos golpistas e de administrar recursos que financiaram ações antidemocráticas. Claudio Mendes dos Santos teria ensinado táticas de guerrilha para os bolsonaristas acampados em frente ao QG do Exército, em Brasília.
A décima Operação Lesa Pátria prendeu 13 pessoas. Entre eles estavam o tenente-coronel da reserva da Aeronáutica Euro Brasílico Vieira Magalhães; a professora Claudebir Beatriz da Silva Campos, suplente do PL na Assembleia Legislativa do Pará; e o empresário Leandro Muniz Ribeiro, que se candidatou a uma vaga na Assembleia Legislativa de Goiás pelo Democracia Cristã nas eleições 2022.
A etapa seguinte mirou endereços ligados a empresários, produtores rurais e colecionadores de armas, atiradores e caçadores esportivos (CACs), suspeitos de financiarem os protestos golpistas. Foram cumpridos 22 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, além do bloqueio de R$ 40 milhões em bens dos envolvidos.
Na 12.ª fase, a PF prendeu suspeitos de omissão no enfrentamento e de colaborar com os vândalos. Um deles já havia sido detido, o major Flávio Silvestre de Alencar. O militar é suspeito de ter orientado a desmobilização da barreira montada no topo da rampa que faz a ligação entre o Congresso e o Supremo, o que impedia o acesso dos extremistas à Praça dos Três Poderes.
Já a 13.ª Operação Lesa Pátria fez buscas contra o empresário Milton de Oliveira Júnior em Itapetininga, a 170 quilômetros da capital paulista. A PF investiga se ele financiou a ida de extremistas a Brasília. Em entrevista, o empresário chegou a dizer que "ajudou patriotas" a viajarem ao DF.
Em agosto, a Polícia Federal prendeu mais oito bolsonaristas. A lista inclui o pastor Dirlei Paz, que nas redes sociais se identifica como "patriota" e aparece em foto pedindo "intervenção federal"; a cantora gospel Fernanda Ôliver; e os influenciadores Isac Ferreira e Rodrigo Lima, que postaram sobre a "Festa da Selma", dias antes dos atos golpistas em Brasília.
O deputado estadual de Goiás Amauri Ribeiro (União Brasil) que, em sessão da Assembleia Legislativa, afirmou ter "ajudado a bancar" o acampamento golpista montado em frente ao QG do Exército, também foi alvo de buscas na fase seguinte da Operação Lesa Pátria.
A 16.ª etapa mirou, novamente, os financiadores aos atos do dia 8 de janeiro. A PF fez buscas em 53 endereços. Foram alvos Rodrigo Borini, filho do ex-prefeito de Birigui (SP) Wilson Borini; Rodrigo de Souza Lins, deputado estadual suplente do MS pelo PRTB; e a socialite paulista Marici Bernardes.
A fase 17, aberta em setembro, mirou três investigados: Aildo Francisco Lima, que fez uma live sentado na cadeira do ministro Alexandre de Moraes; Basília Batista, que teria invadido o Congresso; e a advogada Margarida Marinalva de Jesus Brito.
Em outra ação, a PF fez buscas na casa do general da reserva do Exército Ridauto Lúcio Fernandes, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, que participou dos atos do dia 8. Ele foi exonerado em 31 de dezembro de 2022, último dia do governo de Jair Bolsonaro (PL).
A 19.ª etapa da investigação fez novas buscas em endereço ligado a Léo Índio, sobrinho de Bolsonaro. Foram cumpridos 13 mandados de busca e apreensão por determinação do STF em Cuiabá (MT), Cáceres (MT), Santos (SP), São Gonçalo (RJ) e em Brasília (DF). Além disso, 5 pessoas foram presas.
A fase 20 envolveu a prisão de um homem que teria gravado vídeos durante a invasão do Palácio do Planalto e incentivado outros a "participarem do ataque às instituições" nos atos de 8 de janeiro.
A PF deflagrou no dia 28 de novembro, a fase 21.ª da operação que buscava identificar pessoas que tenham depredado os prédios públicos. No desdobramento mais recente, a polícia cumpriu 25 mandados de busca e apreensão contra suspeitos de financiar os atos golpistas.
Condenações
A Suprema Corte já julgou e condenou 30 pessoas por crimes como associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. As penas vão de 3 a 17 anos de prisão. Ainda há 200 denunciados aguardando julgamento.

Em seus pareceres, os ministros do STF enfatizaram que a democracia brasileira correu risco real diante da ação dos condenados. Segundo os magistrados, os criminosos visavam claramente o impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, com uso de violência e depredação do patrimônio público.
Entre janeiro e março de 2023, foram concedidas diversas liberdades provisórias, a maioria dos suspeitos foi posta em liberdade, mediante pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Nos meses de abril a junho, novas liberdades provisórias foram concedidas, e permaneceram presas 283 pessoas.

Em julho, após o término das audiências de instrução, mais 166 passaram a responder em liberdade, e 117 permaneceram presos. De setembro a dezembro, outros 61 acusados de participarem dos atos obtiveram liberdade provisória.
Para os que estavam acampados em frente aos quartéis e incitaram a tentativa de golpe de Estado, mas não participaram diretamente da invasão da Praça dos Três Poderes, Moraes suspendeu a tramitação de mais de mil ações penais referentes ao dia 8 de janeiro para que a PGR avalie a possibilidade de negociar Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). Em dezembro, o magistrado validou 38 destes acordos.
Para que o acordo entre o Ministério Público (MP) e a pessoa investigada seja possível, é necessário que o investigado confesse a prática dos crimes e cumpra determinadas condições. O termo tem que ser validado por um juiz e, se for integralmente cumprido, é decretado o fim da possibilidade de punição.

Neste caso, além de confessar os crimes, os réus devem se comprometer a prestar 300 horas de serviços a comunidade ou a entidades públicas, a não cometer delitos semelhantes nem serem processados por outro crime ou contravenção penal, além de a pagar multa.
"O pagamento de multa — cujo valor depende da capacidade financeira da pessoa e que nos casos já fechados, varia entre R$ 5 mil e R$ 50 mil — e participação em curso sobre Democracia, além de proibição de manter contas em redes sociais abertas. Eles também terão de participar, presencialmente, de um curso sobre Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado", afirma a PGR em nota.
CPMI dos Atos Golpistas
Uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi formalmente criada em abril para investigar e nomear os cabeças e colaboradores das imagens de destruição vistas no 8 de janeiro.
A criação do CPMI foi uma aposta do entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em busca de uma narrativa paralela sobre os episódios e tudo aquilo que aconteceu antes, culminando com os ataques, na tentativa de desestabilizar o governo de Lula.
A posição do governo petista era de tentar desmobilizar a criação da Comissão, que poderia tirar o foco de projetos prioritários que precisam ser debatidos no Congresso. Entretanto, isso mudou depois que a "CNN Brasil" divulgou imagens até então inéditas do dia dos ataques.
As gravações mostraram o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Gonçalves Dias, circulando pelo Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro, horas depois do início do quebra-quebra bolsonarista. A divulgação das imagens fez com que Gonçalves Dias deixasse o governo.
Em maio o Congresso Nacional instalou a comissão. Os parlamentares elegeram o deputado Arthur Maia (União-BA) para a presidência da comissão, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) para a relatoria e Cid Gomes (PDT-CE) e Magno Malta (PL-ES) para as vagas de primeiro e segundo vice-presidente, respectivamente. A CPMI foi composta por 16 senadores e 16 deputados e seus respectivos suplentes.
Os congressistas, a partir dos requerimentos apresentados, tiveram poderes semelhantes às atribuições de autoridades policiais, como determinar diligências, fazer audiências públicas, convocar depoimentos, determinar prisões em casos de flagrante delito e quebrar sigilos bancário, fiscal e telemático.
A comissão foi palco de depoimentos polêmicos, assim como ao direito ao silêncio. No total, a CPMI colheu 20 depoimentos, entre eles os de George Washington e Wellington Macedo, condenados por planejar a explosão de um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília. O empresário Argino Bedin, conhecido em Mato Grosso como "Pai da Soja", acusado de financiar os atos, também compareceu ao colegiado.
A comissão ouviu o tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, e o coronel Jean Lawand, que apareceu, em troca de mensagens telefônicas com Mauro Cid, defendendo a intervenção militar após as eleições de 2022.
Também foram ouvidos o sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, que negou acusações de fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro, participação nos atos de 8 de janeiro ou de irregularidades em movimentação financeira considerada atípica. Segundo a relatora da comissão, entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022, o militar movimentou mais de R$ 3 milhões em sua conta.
Outros militares que prestaram depoimento à comissão foram os generais Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Gonçalves Dias, o G. Dias, que também comandava o GSI no dia dos ataques às sedes dos Três Poderes.
Em seu depoimento, Heleno negou ter ido a acampamentos golpistas ou ter participado de reuniões com chefes das Forças Armadas para combinar golpe de Estado. Ele minimizou a delação premiada de Mauro Cid, com o argumento de que o papel do ex-ajudante de ordens estava restrito a cumprir ordens do então presidente e, portanto, não participava de reuniões e nem teria relevância para a tomada de decisões.

Aos parlamentares, o general G. Dias admitiu que fez avaliação errada dos acontecimentos que culminaram em depredações na Praça dos Três Poderes. Segundo afirmou, recebeu informações divergentes por "contatos diretos" e disse que "não houve negligência ou inércia dos militares no desmonte do acampamento" montado em frente ao QG do Exército, em Brasília. "O trabalho foi feito de maneira sinérgica, com pedidos de aumento de policiamento e de segurança".

O ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, também foi ouvido na comissão. Investigadores da PF encontraram em sua casa um documento chamado "minuta do golpe", que previa a decretação de Estado de Sítio pelo TSE, a prisão do ministro da corte, Alexandre de Morais, e a realização de novas eleições, caso Bolsonaro perdesse a eleição presidencial.

A CPMI ouviu ainda o hacker Walter Delgatti Netto, que afirmou aos parlamentares ter invadido os sistemas do Judiciário brasileiro a pedido da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), que nega até hoje as acusações. Delgatti ainda afirmou que, a pedido do ex-chefe do Executivo, orientou os militares das Forças Armadas na elaboração do relatório sobre as urnas eletrônicas apresentado em 2022.

Delgatti disse que Bolsonaro ofereceu a ele indulto presidencial em troca da invasão de urnas eletrônicas e de um suposto grampo colocado para monitorar o ministro Alexandre de Moraes. Indulto significa o perdão da pena, efetivado mediante decreto presidencial.

Após o depoimento de Delgatti, o colegiado decidiu quebrar sigilos bancários, fiscais, telemáticos e telefônicos, de Zambelli, do irmão dela, Bruno Zambelli, deputado estadual por São Paulo, e do então assessor parlamentar do parlamentar Renan César Silva Goulart. A comissão também determinou o acesso ao chamado Relatório de Inteligência Financeira (RIF) da deputada. O RIF registra a movimentação financeira considerada "atípica".

Em sua reta final, a CPMI enfrentou obstáculos, como a decisão do ministro do STF Nunes Marques, que suspendeu quebras de sigilos do ex-diretor da PRF Silvinei Vasques. Na ocasião, a relatora disse que a liminar inviabilizava as investigações sobre a atuação do ex-diretor da corporação.

A PRF sob gestão de Silvinei Vasques vinha sendo acusada de tentar interferir na eleição presidencial com o aumento da fiscalização, no segundo turno, em locais onde o Lula teve mais votos no primeiro turno. O ex-diretor nega as acusações. Vasques foi ouvido pela CPMI no dia 20 de junho.
O ministro André Mendonça concedeu autorização para o segundo-tenente do Exército Osmar Crivelatti não comparecer à comissão, na sessão marcada para ouvi-lo. Com a autorização, Crivelatti não foi ouvido pelos integrantes da CPMI.

A CPMI também cancelou o depoimento do subtenente Beroaldo José de Freitas Júnior, do Batalhão de Policiamento de Choque da PM do Distrito Federal. O cancelamento ocorreu após o presidente da comissão, deputado Arthur Maia, ter desmarcado, sem apresentar justificativa, o depoimento de Braga Netto previsto para o mesmo.
Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa do governo de Bolsonaro, sendo candidato a vice-presidente na chapa do PL nas eleições de 2022. Na sequência, o colegiado encerrou a fase de depoimentos.


Entrega do relatório
A Controladoria-Geral da União (CGU) recebeu em outubro o relatório final da CPMI. Após cinco meses de trabalhos, o documento, aprovado por 20 votos favoráveis, 11 contrários e nenhuma abstenção, pede o indiciamento de 61 pessoas — entre civis e militares — por crimes que incluem associação criminosa, violência política, atentado contra o Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado. O ex-presidente Jair Bolsonaro está entre os indiciados.
O relatório elaborado pela senadora Eliziane Gama apontou esforço deliberado do entorno de Bolsonaro para acirrar o ambiente político e estimular a adesão de simpatizantes a atos antidemocráticos. O parecer também traçou um histórico antidemocrático da gestão Bolsonaro e atribuiu ao ex-presidente responsabilidade direta por ataques as instituições da República.
Como resultado, foram indiciados cinco ex-ministros e seis ex-auxiliares diretos de Bolsonaro. Ex-comandantes do Exército e da Marinha nomeados por ele também constam da lista, junto a outros 27 militares e PMs do Distrito Federal.
"O 8 de janeiro é obra do que chamamos de bolsonarismo. não foi um movimento espontâneo ou desorganizado; foi uma mobilização idealizada, planejada e preparada com antecedência. Os executores foram insuflados e arregimentados por instigadores que definiram de forma coordenada datas, percurso e estratégia de enfrentamento e ocupação dos espaços", afirmou Eliziane Gama.
O documento contém 314 menções ao nome do ex-presidente e 812 citações ao sobrenome Bolsonaro. "As investigações aqui realizadas, os depoimentos colhidos, os documentos recebidos permitiram que chegássemos a um nome em evidência e a várias conclusões. O nome é Jair Messias Bolsonaro", ressalta a senadora.
Eliziane Gama pediu a responsabilização de Jair Bolsonaro por quatro crimes: associação criminosa — pena de 5 a 10 anos de reclusão, além de multa; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito — pena de 4 a 8 anos de reclusão, além de pena relacionada ao ato violento; tentativa violenta de depor governo legitimamente constituído (golpe de Estado) — pena de 4 a 12 anos de reclusão, além de pena relacionada ao ato violento; e emprego de medidas para impedir o livre exercício de direitos políticos — pena de 3 a 6 anos de reclusão, além de pena relacionada ao ato violento.
O parecer de Eliziane também destacou o envolvimento de militares das Forças Armadas — da ativa ou da reserva — e de policiais militares do DF nos atos. Dos 61 pedidos de indiciamento, 29 são de membros ou ex-membros das Forças e PMs. Oito generais do Exército aparecem na lista, entre eles o ex-comandante da força terrestre Freire Gomes.
Também é citado o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos, que foi apontado, em delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, como o integrante da cúpula das Forças Armadas que teria apoiado a intenção golpista do ex-presidente.
Exército pune militares
O Exército decidiu punir dois militares por envolvimento nos atos golpistas. Ao concluir as sindicâncias internas, a Força determinou a prisão de um oficial por três dias e aplicou uma advertência ao outro militar.
O Centro de Comunicação Social do Exército informou que não houve indícios de crime nos casos investigados pela sindicância, "mas transgressões disciplinares na conduta e procedimentos adotados durante a ação no Palácio do Planalto, que após apuradas ensejaram duas punições disciplinares aos militares envolvidos".
De acordo com o Exército, quatro Inquéritos Policiais Militares (IPM) e quatro processos administrativos (sindicâncias) foram abertos após os ataques golpistas com a finalidade de apurar eventuais crimes ou desvios de conduta de militares do Exército Brasileiro. Os possíveis crimes são apurados no âmbito dos IPMs. Segundo a corporação, um coronel da reserva já foi condenado no decorrer das investigações.

A Justiça Militar da União condenou o coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni a um mês e 18 dias de detenção, em regime inicial aberto, por ofender seus superiores e a própria Força durante participação nos atos golpistas. Por quatro votos a um, o Conselho Especial de Justiça para o Exército aplicou a suspensão condicional da pena de Testoni por dois anos - ou seja, se seguir determinadas normas durante tal período, o coronel vai se livrar da punição.

Testoni foi condenado em razão de dois vídeos que gravou em meio à depredação das sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro. Nas gravações, ele proferiu ofensas ao Alto Comando do Exército e aos generais Celso Montenegro, Pinto Sampaio e Pontual. Em sua defesa, Testoni alegou à Justiça Militar que os vídeos consistiram em uma "explosão impensada decorrente da ação repressiva da polícia militar em conter o distúrbio" dos atos golpistas.

Ao assumir o comando do Exército, o general Tomás Paiva, afirmou em janeiro do ano passado, que militares envolvidos nos atos golpistas do último dia 8 de janeiro poderiam ser punidos pelos órgãos de Justiça da caserna.
"Qualquer militar ou civil, ninguém está acima da lei. Então, isso aí a gente faz com tranquilidade", disse o chefe da Força terrestre após visita de cortesia ao vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) para tratar, dentre outros assuntos, de investimentos na indústria de Defesa. Foi a primeira declaração do general à imprensa sobre os atos de extremistas desde sua posse.

A posição de manter a ordem na caserna foi reafirmada pelo coronel no decorrer do ano. Em agosto, no Dia do Soldado, Tomás Paiva, afirmou que "desvios de conduta" serão "repudiados e corrigidos" pela instituição.
A declaração do general ocorreu ao surgirem informações de que militares ligados ao ex-presidente Bolsonaro são investigados por um esquema de comércio ilegal de joias, que foram omitidas do acervo da Presidência e vendidas no exterior.
Evento para marcar os atos golpistas
Para marcar a data, um ato "Democracia Inabalada" foi preparado por Lula, junto com os presidentes dos outros Poderes, para lembrar um ano das depredações nesta segunda-feira, 8. O evento acontece no Salão Negro do Congresso com a presença de ministros do governo, do STF, parlamentares e outras autoridades. A réplica da Constituição, que chegou a ser roubada do Supremo no dia em que a Corte foi alvo dos vândalos, ocupará um lugar de destaque na cerimônia.

A cerimônia, originalmente, seria batizada com o nome Democracia Restaurada, mas o bordão desagradou até a base do governo. Lula rebatizou o ato em aceno ao STF, que utilizou o slogan em uma campanha institucional em 2023.
O chefe do Executivo informou que convidou todos os governadores para o evento. Porém, mesmo antes do Palácio do Planalto enviar os convites, chefes de Executivo estaduais alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já haviam adiantado que não participariam do ato.
Segundo Lula, o ódio de alguns contra a democracia "deixou cicatrizes profundas e dividiu o país". "Colocou em risco a democracia. Quebraram vidraças, invadiram e depredaram prédios públicos, destruíram obras de arte e objetos históricos", comentou.
O presidente, contudo, pontua que a "tentativa de golpe causou efeito contrário". "Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima das ideologias, provocou a pronta reação da sociedade. E ao fim daquele triste 8 de janeiro, a democracia saiu vitoriosa e fortalecida. Fomos capazes de restaurar as vidraças em tempo recorde, mas falta restaurar a paz e a união entre amigos e familiares", disse Lula.