Mesmo após um ano do ataques golpistas, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiram e depredaram os prédios públicos dos Três Poderes, ainda é possível constatar as sequelas deixadas não só na estrutura e acervo cultural dos prédios, mas na política e sociedade. Especialistas consideram que os atos de vandalismo devem ser lembrados como um grande alerta e que o ato foi algo inadmissível para um país que já passou por golpes na sua história. Para marcar a data, um ato "Democracia Inabalada" foi preparado por Lula, junto com os presidentes dos outros Poderes, para lembrar um ano das depredações nesta segunda-feira, 8, às 15h.
Na data que ficou marcada na história como os "Atos Golpistas do 8 de janeiro", terroristas provocaram pânico e caos em Brasília. Os vândalos marcharam do Quartel-General do Exército até a Esplanada e invadiram os edifícios do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto, na tentiva de promover um golpe de Estado. O ato antidemocrático gerou prisões, condenações e prejuízos de mais de R$ 27,2 milhões aos cofres públicos.
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O cientista político Fábio Cunha conta que ficou perplexo vendo as primeiras imagens das invasões pela TV. "Não dava para acreditar que milhares de brasileiros vestidos de verde amarelo, desonrando nossa pátria, seriam capazes de cometer tal atrocidade", disse.
"Estava nascendo naquele momento ao vivo, a revolta de parte de um eleitorado, contra a democracia, os poderes constituídos e o resultado das urnas, com características claras de tentativa de um golpe. Algo inadmissível para um país que já passou por golpes na sua história, por regimes ditatoriais, e por lutas com vidas ceifadas, para termos hoje uma república democrática, governada pelos Três Poderes constituídos, uma federação hierarquizada junto com nossa constituição de 1988", relembra.
O sociólogo, cientista político e professor da UFRJ Paulo Baía afirma que a falta de efetivo necessário para conter os vândalos foi o que mais chamou a sua atenção.
O especialista faz referência ao fato de que, apesar dos sinais preocupantes, o governo do Distrito Federal mudou de última hora o planejamento para o dia dos atos, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino. De acordo com ele, o acordo prévio estipulava um bloqueio total na Esplanada dos Ministérios, o que não ocorreu. No mesmo dia, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) já havia emitido um alerta, distribuído a 48 órgãos, sobre a possibilidade de manifestações violentas e invasão de prédios públicos.
"Eu estava em Brasília em 2012, quando tentaram invadir o Congresso e havia segurança. Dessa vez, não havia policiamento e barreiras de segurança. Eu fiquei muito chocado com a ausência de segurança em toda a Esplanada dos Ministérios. Eu creditei essa falta de segurança a uma decisão de natureza técnica e política, do governo do Distrito federal. A gestão não policiou o local como faz normalmente em casos de manifestação", afirma o especialista.
Baía chama a atenção para a tentativa articulada de um golpe de Estado: "Uma intentona no sentido de gerar tumulto, caos em Brasília e ser espalhado para outras capitais e cidades. Isso não aconteceu, mas havia claramente uma intenção nesse sentido. (...) Queria um estopim da perda de controle da ordem pública em todo o Brasil, a partir de uma decisão já rotineira, o presidente da República convocar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e colocar os militares na rua. Estaria então feito o cenário do golpe do Estado praticado".
Sérgio Praça, professor da FGV, avalia que nunca houve um risco real de golpe de Estado e que seria necessário, além das invasões, outros tipos de apoio para que o ex-presidente Jair Bolsonaro continuar no poder.
"Foi uma tentativa desorganizada e fracassada desde o início, ao contrário da norte-americana, que poderia ter dado certo com apoio de boa parte do Partido Republicano. No Brasil, seria necessário o apoio amplo de empresários e partidos políticos para que Bolsonaro se tornasse um ditador. Nunca houve risco real disso", enfatiza.
Após um ano das invasões, o professor pondera que a principal lição que fica para a classe política é que envolver-se com cidadãos golpistas é pouco arriscado. "Não houve responsabilização de nenhum deputado federal nem senador que incitou a tentativa — portanto, para eles valeu a pena", disse.
"Já para o governo Lula, é que torna-se mais urgente do que nunca estabelecer uma boa relação com as forças armadas, pois houve alguns militares que eram favoráveis, especialmente, aos ataques ao STF e o Legislativo", acrescenta.
Já Baía considera que a grande lição para a classe política e o governo é acreditar no funcionamento das instituições. Ele aponta que as instituições da República, como o Parlamento, a federação, o Supremo e o Poder Judiciário funcionaram de forma conjunta para evitar que o caos se estabelecesse.
"Nós tivemos um Executivo que funcionou e foi ajustado a partir do 8 de janeiro, como também houve ajustes na percepção do Legislativo em relação a tentativa de golpe. Eu creio que os políticos aprenderam muito, a classe política e o governo federal também aprenderam".
Cunha considera que os atos de vandalismo devem ser lembrados como um grande alerta. "A polarização ideológica vivida nas últimas eleições, deve se refletir nas eleições municipais de 2024. Nunca se falou tanto em política de 2022 pra cá. Qual é a lição que tiramos disso? O aumento do debate político na sociedade é extremamente positivo! Nos lembra a Ágora da velha Grécia", afirma.
"A classe política e as organizações não governamentais, deveriam aproveitar essa onda para criar mecanismos de aumento da participação popular na política, contrariando aqueles que desacreditam na política como meio de transformação da sociedade", ressalta.
Ele ainda pondera que novas leis precisam ser apresentadas, uma delas punindo criadores de Fake News, que contribuíram com a massificação da revolta contra a política e políticos.
"Não diferente, ampliar a punição contra a corrupção na política se faz necessário. A classe precisa cortar na própria carne, entender e aceitar que a corrupção é ambidestra e situação e oposição fazem parte do jogo democrático. Mostrar esse avanço ao eleitorado é fundamental para o amadurecimento e o crescimento da democracia brasileira, na qual, todo poder emana do povo, conclui Cunha.
Ato Democracia Inabalada
O evento acontece no Salão Negro do Congresso com a presença de ministros do governo, do STF, parlamentares e outras autoridades. A réplica da Constituição, que chegou a ser roubada do Supremo no dia em que a Corte foi alvo dos vândalos, ocupará um lugar de destaque na cerimônia.
A cerimônia, originalmente, seria batizada com o nome Democracia Restaurada, mas o bordão desagradou até a base do governo. Lula rebatizou o ato em aceno ao STF, que utilizou o slogan em uma campanha institucional em 2023.
No ato, está previsto um momento simbólico relacionado a obras que foram danificadas nas invasões. Um deles será a entrega simbólica da tapeçaria de Burle Marx na qual vândalos urinaram durante os ataques. A peça já passou por restauro e, em outubro, voltou a ser exposta no Congresso Nacional.
Entre as autoridades participantes, estão o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, e o vice-presidente, Geraldo Alckmin. Além de algunsgovernadores e ministros do governo Lula, também são esperadas as presenças dos comandantes das três Forças Armadas. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), cancelou a sua participação.
A participação dos militares é um pedido específico do ministro da Defesa. Para José Múcio, a presença dos chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica passará uma mensagem de compromisso dos militares com a legalidade e com as instituições democráticas.
O evento terá a presença da ex-ministra do STF Rosa Weber, do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, e do novo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Também estarão no Congresso a primeira-dama Janja da Silva e Lu Alckmin, esposa do vice-presidente.
Representantes das organizações da sociedade civil estão na lista de convidados. Uma das participações confirmadas é de Aline Sousa, integrante do Movimento Catadores do Distrito Federal que entregou a faixa presidencial a Lula na cerimônia de posse, sete dias antes dos ataques golpistas na Praça dos Três Poderes.
Mesmo antes do Palácio do Planalto enviar os convites, chefes de Executivo estaduais alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já haviam adiantado que não participariam do ato. Políticos de oposição planejam esvaziar o evento. Pelo menos oito governadores não comparecerão à cerimônia. Entre eles, está o chefe do Estado mais populoso do Brasil: Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Os chefes do Executivo do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), e de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ainda não decidiram se vão. Os três são aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ibaneis Rocha (MDB), governador do Distrito Federal, também não irá, por estar de férias. Celina Leão (vice-governadora) vai em seu lugar. Na época dos atos, Ibaneis foi afastado temporariamente do cargo de governador por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Pouco mais de 2 meses depois, o ministro determinou sua volta ao cargo.
A previsão é a de que o ato seja aberto com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, cantando o Hino Nacional, às 15. Um vídeo institucional sobre os ataques deve ser exibido na sequência. Em seguida, Lula, Pacheco, Lira e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, devem discursar. Também está previsto um discurso da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), representando os demais chefes de Executivos estaduais.
Segundo o chefe do Executivo, o ódio de alguns contra a democracia "deixou cicatrizes profundas e dividiu o país". "Colocou em risco a democracia. Quebraram vidraças, invadiram e depredaram prédios públicos, destruíram obras de arte e objetos históricos", comentou.
O presidente, contudo, pontua que a "tentativa de golpe causou efeito contrário". "Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima das ideologias, provocou a pronta reação da sociedade. E ao fim daquele triste 8 de janeiro, a democracia saiu vitoriosa e fortalecida. Fomos capazes de restaurar as vidraças em tempo recorde, mas falta restaurar a paz e a união entre amigos e familiares", disse Lula.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), define os atos golpistas de 8 de janeiro do ano passado como "graves", embora "isolados". Para o deputado, aqueles que participaram dos ataques "precisam ter consequências em suas vidas para entender que aquelas instituições representam a democracia".
"Os Três Poderes precisam e devem ser preservados. O Brasil precisa disso. E a resposta imediata [foi dada] com a união de toda a Federação. (...) Todos, de imediato, reagiram ao que houve e deram reação ainda mais inequívoca de que a nossa democracia é firme", disse.
O parlamentar aponta que o ataque não pode definir e "generalizar" a pessoa que se posiciona "mais à direita ou mais à esquerda". "A Constituição é base para o reclame de todos os seus direitos. Mas sabemos que temos deveres, que é de respeitar o direito dos outros e os princípios que regem a nossa democracia", observou.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) afirma que "a violência dessa minoria antidemocrática não representa o povo brasileiro". "Como já disse, as instituições brasileiras não se eximirão de investigar e punir exemplarmente todos os criminosos envolvidos, direta ou indiretamente, naquela barbaridade". Pacheco declarou que a "democracia ainda está de pé" e "sai ainda mais forte" após um ano" desse lamentável acontecimento".
Ato do STF
O STF também promove um evento nesta segunda-feira, 8. Um ano após vândalos depredarem órgãos e instalações públicas na Praça dos Três Poderes, o Supremo realiza a exposição: "Após 8 de janeiro: Reconstrução, memória e democracia".
O objetivo da iniciativa é preservar a memória institucional do STF. A mostra traz cenas que simbolizam a retomada das atividades da Casa diante da tentativa golpista, e, também, dos esforços das equipes envolvidas na reconstrução e restauração do patrimônio da Suprema Corte.
Parte da mostra expõe peças do projeto "Pontos de Memória", implementado logo após os atos antidemocráticos. Trata-se da exposição de peças danificadas, de fragmentos decorrentes da violência e de demais vestígios físicos do ataque.
A cerimônia de abertura da mostra conta com a presença do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, e ocorre no Hall dos Bustos às 14h. Estarão presentes os demais ministros, autoridades e convidados.
Na terça-feira, 9, o público geral terá acesso à exposição que ocorrerá no térreo do Edifício Sede, das 13h às 17h.
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