A trajetória desta mulher no telão ultrapassa dimensões, assim como Fernanda Montenegro, no papel de Eunice mais velha, também se agiganta em poucos minutos em cenaArte de Paulo Márcio sobre fotos de Alile Dara Onawale
Ainda está aqui
Talvez seja impossível não chorar de alguma forma diante dele, através de lágrimas que escorrem pelo rosto ou pelo pranto que dilacera o coração
É domingo, ainda no meio da tarde. A vizinhança, no entanto, ainda não começou a gritar pelo jogo do Flamengo pela final da Copa do Brasil. Diante da tela do celular, começo a escrever este texto, quase 24 horas depois de ter entrado na sala de cinema em Irajá, bairro da Zona Norte do Rio, onde assisti ao filme 'Ainda Estou Aqui'.
Já se passou quase um dia, mas as imagens da obra, dirigida por Walter Salles, não saem da minha mente. Aliás, acordei pensando em uma cena específica, quando o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, se prepara para ser levado da sua casa para um interrogatório. Uma de duas filhas pergunta aonde ele vai tão bonito. E ali o pai se despede para nunca mais ser encontrado. Rubens Paiva foi torturado e morto durante a ditadura militar, em 1971.
Esta história não é um spoiler porque faz parte da História do país. Virou livro nas palavras de um dos filhos de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, que descreve a trajetória da mãe, Eunice Paiva. Vivida de forma magistral pela atriz Fernanda Torres, ela se tornou advogada, passou a lutar pelos direitos indígenas e conseguiu a certidão de óbito do marido muitos anos depois, em 1996, como atestado do que havia acontecido de fato com ele. Eunice sorria para as fotos como forma de resistência.
Pouco antes de sentar para escrever este texto, aliás, fiquei vendo alguns posts no Instagram. Em um deles, Fernanda Torres chama o público para ir às salas de cinema. Para ela, a experiência coletiva de ver esse filme é marcante. Sem as distrações que temos em casa, de checar o celular ou ir ao banheiro. Sou grata por exibirem o longa em bairros da Zona Norte onde muitas vezes algumas obras não chegam ou ficam pouco tempo em cartaz. Assim como acontece na Baixada Fluminense, onde nasci e cresci. Por que o local em que moramos determina o que queremos ver?
Posso dizer que eu tinha conhecimento da história, mas Fernanda Torres me permitiu estar próxima daquela mãe que se vê sozinha com cinco filhos. A trajetória desta mulher no telão ultrapassa dimensões, assim como Fernanda Montenegro, no papel de Eunice mais velha, também se agiganta em poucos minutos em cena. Selton, por sua vez, amplia a falta daquele pai na família com uma atuação que mostra o lado lúdico e amoroso de Rubens Paiva. Uma presença que escancara a ausência. De fato, nenhum deles merece um espaço miúdo.
Não sei precisar em que momento do filme comecei a extravasar a emoção. Mas não foi um choro de soluçar. Algumas lágrimas escorriam lentamente pelo rosto, como se quisessem digerir a dureza do que eu estava vendo. Sem olhar para os lados, senti que havia cumplicidade no meu choro em outras poltronas. E, quando o filme acabou, a sala seguiu silenciosa, com algumas pessoas se levantando lentamente de seus lugares.
Eu me levantei e saí devagar também, até que eu e minhas companhias conseguimos falar algo em poucas palavras. Só alguns minutos depois, trocamos impressões sobre a obra e a forma como ela nos tocou. Para mim, é marcante a luta contra o desaparecimento de uma história, de fatos, de épocas, da memória... 'Ainda Estou Aqui' mostra que é preciso combater o apagamento de uma trajetória, por mais duro que seja esse percurso.
Assim, o filme ainda está nos meus pensamentos. Talvez seja impossível não chorar de alguma forma diante dele, através de lágrimas que escorrem pelo rosto ou pelo pranto que dilacera o coração. Talvez seja impossível não reverenciar a obra, seja pelo silêncio ou pelos aplausos relatados em sessões pelo país. Na sala em que estive não houve palmas, mas a quietude de quem ainda tenta processar aquilo que viu. No Instagram, Selton Mello pediu aos seguidores para dizerem onde viram o longa e como foi a sessão. Respondo que o filme não terminou ali, ao cruzar a porta de saída daquela sala de cinema em Irajá. Ele ainda está aqui, comigo, nesta tarde de domingo. Provavelmente, nunca sairá de mim.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.