Logo pensei em como é bela a chance de fazer voos jamais imaginados e ter alguém ao nosso lado que nos faça sentir capazes de ir mais longeArte: Paulo Márcio

Quando olhei uma das fotos que a minha amiga Camilla havia feito do celular dela, na abertura de gala do Festival do Rio, no Cine Odeon, na Cinelândia, logo falei: "Você me colocou com asas!". Eu havia posado para os cliques à frente de um painel com a logomarca do evento: o ícone tem traços que remetem à silhueta do Pão de Açúcar e do Morro da Urca, simbolizando a cidade do Rio. Fiquei posicionada de tal maneira que o cenário ao fundo parecia me dar asas.
Logo pensei em como é bela a chance de fazer voos jamais imaginados e ter alguém ao nosso lado que nos faça sentir capazes de ir mais longe. A Camilla é uma dessas amigas. Há alguns anos, aliás, reencontrei essa minha companheira de jardim de infância e, durante o convívio mais recente com ela, percebi quantos caminhos inéditos a vida tinha — e ainda tem — para me oferecer. Um desses ineditismos foi aquela noite no Odeon. Fui repórter esportiva por mais de 20 anos e nunca sonhei em circular em eventos culturais assim. Mas a vida, tal qual um roteiro de cinema, me fez enxergar o meu talento para cronista. Assim, passei a escrever sobre outras áreas além de quadras, piscinas, campos e pistas — que seguem em um cantinho especial no meu coração.
O fato é que, de uns anos para cá, percebi que posso entrelaçar cultura, escrita e sentimentos. Para isso, aguço o meu olhar para as miudezas da vida, algo que outra amiga, a Elaine, me incentivou a fazer de maneira extremamente generosa, há alguns anos. Foi o que aconteceu assim que cheguei ao Odeon naquela noite de gala. O burburinho de gente já poderia ser sentido da esquina, quando desci do carro e me certifiquei de que havia chegado ao meu destino. Logo me aproximei com passos não tão numerosos, mas suficientes para admirar a fachada do cinema de rua, na Praça Floriano. Um jogo de luzes dava mais vida ao letreiro daquele prédio histórico, datado de 1926. Tratei de perguntar onde deveria aguardar para entrar no Festival do Rio e tomei meu lugar na fila na calçada.
Não demorou muito para as primeiras celebridades chegarem. Tanto que ouvi alguém dizer duas vezes "belérrima", um superlativo que descobri ser o lema da produtora de moda Wladia Góes, direcionado naquele momento às atrizes Débora e Fabíula, as duas com Nascimento no sobrenome. O tapete vermelho as aguardava. Também passei por ele, assim como os demais convidados, tentando gravar o máximo de minúcias da noite. Ao sair de casa, aliás, pensei que a minha mãe me diria: "Minha filha está linda!". Se ela conhecesse o 'belérrima', talvez teria usado também.
Ainda na fila, continuei de butuca nas conversas ao meu redor, deixando que chegassem aos meus ouvidos nomes como Roman Polanski e Guel Arraes, cineastas citados nas prosas. Mas também conversei com quem estava perto de mim sobre dores na coluna ou quadril, quando me dei conta das pedras irregulares da calçada. Ainda troquei mensagens rapidamente com a minha irmã e, ao entrar, fiquei reparando na movimentação dos fotógrafos e na barraquinha de pipoca. Nas mãos, eu segurava um leque de papel com a divulgação do filme que seria exibido naquela noite: 'Depois da Caçada', um drama psicológico que trata de abusos e tem Julia Roberts no papel de uma professora universitária. Inclusive, gostaria de vê-lo novamente para prestar mais atenção a alguns detalhes que só começaram a fazer sentido depois de algumas cenas.
Esperei pela Camilla e conseguimos nos acomodar no segundo andar do cinema. Já em meu lugar, olhei para o alto e reparei no lustre, enorme e lindo, que pendia do teto do Cine Odeon. "Quem será que limpa isso? Deve dar um trabalho danado", perguntei para mim mesma, com a certeza de que a minha mãe teria pensado o mesmo. Passei, então, a olhar mais atentamente para os lados, dando valor para aquele momento ali: não sabia há quanto tempo eu não entrava em um cinema de rua, algo extremamente mágico! Logo pensei que talvez eu tivesse assistido aos filmes da Xuxa e dos Trapalhões, na minha infância, em uma dessas salas antigas.
Assim, voltei para casa refletindo sobre esses voos ao passado, que eu amo fazer e que me constituem até hoje. Posso dizer que nem todos foram feitos de calmaria, mas percebi que há um céu de 'belérrimas' possibilidades, para usar a palavra que me chamou atenção naquela noite. Este texto de hoje, por exemplo, é uma delas.