kAKAY24ABRONLINEARTE O DIA

“Melhor ser ateu do que católico hipócrita.”
Papa Francisco
Não era tão cedo assim, mas para quem está flanando em Paris, com um frio civilizado, o dia estava irrompendo devagar. Meu apartamento, na Place Saint-Germain-des-Prés, mantém um silêncio respeitoso para os que querem dormir. Como acordo todo dia cedo para correr à beira do Sena e no Jardin des Tuileries, fico esperando um barulho que me anime a sair da cama. Achei convidativos os sinos da Igreja Saint-Germain batendo de uma maneira muito alongada. Estou acostumado ao replicar dos sinos da nossa Igreja. Já vi e ouvi o badalo chamando para o sepultamento do Jean-Paul Belmondo, do Alain Delon, mas dessa vez os sinos não paravam. Era uma infinidade de badalos. 88, soube depois. E indo para a varanda me perguntei: “por quem os sinos dobram?”
Com uma tristeza profunda, vi a notícia na TV da sala. O Papa tinha partido. A primeira reação foi de uma dor sincera. A sensação de perda de alguém que nos parecia perto, um companheiro para dividir os sentimentos do mundo. Com este jeito brasileiro, foi impossível não pensar: “porra, ele que é tão próximo lá do céu, não podia ter falado para esperar um pouco?”
Logo agora que o Trump disse que vai interferir na sucessão do Vaticano? Ainda nesta semana, o vice-presidente americano esteve em Roma bisbilhotando! Não seria prudente ter tido uma conversa reservada com Deus e combinado de esperar até o fim do mandato do fascista? Tudo bem que a imprensa noticia que ele, Francisco, escolheu 80% dos cardeais que elegerão o próximo Papa. Nosso jornalista Jamil Chade demonstra que, dos 141 cardeais com menos de 80 anos de idade, 111 foram nomeados por Francisco, 24 pelo Papa Bento XVI e 6 pelo Papa João Paulo II. Mas, em se tratando desses americanos, a gente sempre tem que ficar atento e desconfiar.
Não sou muito de Igreja. Rezo e tenho um medo danado do inferno. Dizem que lá tem ranger de dentes. Ao acompanhar, nesta já não muita curta vida, os meus amigos que partiram, tenho uma preocupação real de o céu ser chato. Os caras mais legais, que eu mais curto, acho que vão precisar de um bom advogado para conseguir entrar e ficar no céu. Têm alguns malas, que vivem pendurados na Igreja, que eu espero que estejam no céu do B. Um lugar insípido para os carolas, em regra, falsos. Por isso, eu gosto tanto deste Papa Francisco. Um homem completamente do bem, corajoso, que ousou enfrentar a hipocrisia da Igreja Católica, que se posicionou com destemor pelos desfavorecidos e pelas minorias. Que deu sentido real à palavra de Deus. Um homem que, feito Papa, demonstrou que é possível se mostrar demasiadamente humano. E justo. Não se abaixou na hora do tapa, mesmo tendo nas costas da Igreja Católica um passado de opressão, de perseguição, de injustiça, de pedofilia, de abusos, de segregação. Um homem que soube, dentro das limitações de uma Igreja secular, acender uma luz de esperança para os que não conseguem mais crer. A dor das crianças da Palestina, dos excluídos pela guerra obscena dos preconceitos, pela fome, enquanto a Igreja ostenta sua riqueza que mantém o tal esplendor e que afugenta os que têm sede de igualdade. Um Papa dos refugiados. Que soube acolher e dar voz aos desesperados. Enfim, um verdadeiro pastor a se oferecer para um mundo mais justo e igual.
Não era hora de ele ter ido, mas, certamente, não serei eu, um incrédulo, que posso palpitar. Sei que fará falta. Em um mundo à beira do abismo, com tantas iniquidades, eu acho que vou aproveitar a Páscoa e entrar aqui na Igreja do meu bairro para rezar pela ressurreição. E olhem que, para pedir a ressurreição de um argentino, é sinal que o mundo não está fácil.
A melhor maneira de falar deste Papa - que reconheceu as dificuldades pessoais que vivenciou na ditadura Argentina, onde não teria agido, talvez, com a firmeza que se portou depois como pontífice - é relembrar sua entrevista sobre a Faixa de Gaza ao programa americano 60 Minutes. O Papa Francisco contou que telefonou, ininterruptamente, 563 noites, todos os dias, às 19 horas, para a paróquia de Gaza. Com certa perplexidade, o jornalista perguntou: “mas o que você diz a eles todos estes dias?” A resposta mostra a dimensão do Papa: “Eu os escuto.” Emociono-me ao lembrar do poeta Leão de Formosa: “Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio, pode ouvir o mar.”
E fica, sempre, a reflexão que ele deixou: “A vida é real, não virtual. Não acontece numa tela, mas no mundo! Por favor, não virtualizem a vida!”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay