Gastão Reisdivulgação
Nos quatro anos em que estudei na Universidade da Pensilvânia, ao chegar nos aeroportos de Nova York e de Filadélfia, em 1977, havia sempre alguém me aguardando. Após as boas-vindas, vinha o alerta para que evitasse andar pelo bairro negro. O campus da Universidade da Pensilvânia terminava logo no seu início. Naquela época, o clima entre brancos e negros estava pesado. Luta pelos direitos civis da população de origem africana. Até meados do século XX, ela não podia conviver nas escolas, restaurantes, hotéis, ônibus, banheiros com a população branca. Era como se os negros não fossem dignos de estar com os brancos nos diversos ambientes onde a vida pública e civil se desenvolvia.
Para mim, como brasileiro, era estranho aquele medo que os brancos americanos ainda manifestavam em ter contato físico mais próximo com os negros. De minha parte, adotei a atitude de tratá-los de igual para igual sem me deixar contaminar pelos avisos de me manter distante. Em determinado dia, circulei a pé por ruas do bairro negro e pedi alguma informação aqui e ali, e sempre fui tratado com cortesia. Talvez por notarem que eu era estrangeiro.
Claro que negros circulavam pelo campus a trabalho ou como estudantes da própria universidade. Ainda me lembro quando levei o meu carro para uma troca de pneus numa concessionária e fui atendido por um negro. Comentei que era brasileiro e estava estudando na Universidade da Pensilvânia. A bossa nova estava bombando no mundo inteiro, e ele me disse que gostava muito do swing, palavra dele, da música brasileira. Num acidente de carro que tive, uma jovem negra fez a gentileza de chamar a ambulância que me levou ao hospital.
Ao longo dos quatro anos que lá passei, observei a profunda penetração da tradição religiosa protestante entre os negros. É fato que foram alfabetizados antes dos nossos. Naquela época, aprender a ler significava, em boa medida, ler a bíblia. Eles se tornaram evangélicos. Nunca tive notícia da prática de religião de matriz africana lá nos EUA. Eram quase todos evangélicos.
A comida consumida por eles era a mesma dos brancos. Fiquei muito surpreso quando descobri a expressão "junk food", que, traduzida ao pé da letra, significa comida lixo, embora começasse a entrar em moda a chamada "natural food", comida natural e saudável. Mas, fora do campus, já dava para notar a obesidade das pessoas. Negros e brancos se esbaldavam em ingerir alimentos de alto valor calórico. Não havia traço de
comida de origem africana.
comida de origem africana.
Na música, imperavam os instrumentos de sopro como trompetes, saxofones etc, que marcavam a história do jazz, em que os negros escreveram uma deslumbrante história de improvisos nada comum na música, digamos, branca. Mas não eram muito comuns os tambores mais ligados à tradição africana. Não havia batucada como praticada aqui.
Como brasileiro, notei as grandes diferenças entre os negros americanos e os nossos. Aqui, por exemplo, os ritos e religiões africanos se mantiveram a despeito das perseguições. A comida de origem africana está presente no nosso dia a dia. E não é só na Bahia. A batucada se mantém viva nas escolas de samba onde a presença de negros, mulatos, pardos e brancos se faz sentir sem que haja qualquer tipo de separação racial tão comum nos EUA até meados do século XX. Na verdade, a separação lá, de certa forma, continua. Há bares, ainda hoje, em que brancos não são bem-vindos e vice-versa.
As análises mais comuns sobre as relações inter-raciais, aqui e lá, tendem a ver a questão de um ponto de vista econômico-financeiro. Ou seja, os negros americanos têm um padrão de vida bem mais elevado do que os que vivem no Brasil. A despeito da segregação, após a guerra civil americana, receberam no Sul um pedaço de terra e uma mula para poderem tocar a vida, coisa que não aconteceu aqui. O plano da Princesa Isabel e do Primeiro-Ministro dela, o Visconde de Ouro Preto, era de assentar os libertos, ao longo das ferrovias, em terras devolutas foi engavetado com a chegada da república.
As análises mais comuns sobre as relações inter-raciais, aqui e lá, tendem a ver a questão de um ponto de vista econômico-financeiro. Ou seja, os negros americanos têm um padrão de vida bem mais elevado do que os que vivem no Brasil. A despeito da segregação, após a guerra civil americana, receberam no Sul um pedaço de terra e uma mula para poderem tocar a vida, coisa que não aconteceu aqui. O plano da Princesa Isabel e do Primeiro-Ministro dela, o Visconde de Ouro Preto, era de assentar os libertos, ao longo das ferrovias, em terras devolutas foi engavetado com a chegada da república.
E foi então que me fiz a pergunta sobre onde teria ficado a alma africana dos negros americanos? Como se sairia o Brasil versus EUA em relação a esta pergunta? Ou seja, sair do enfoque econômico-financeiro e ver a situação do ponto de vista da manutenção das raízes socioculturais africanas. (Mesmo no econômico-financeiro, cabe registrar o fato de que cerca de 60% da população de origem africana já era livre no Rio de Janeiro, em meados do século XIX. E os jornalistas, advogados, médicos e engenheiros negros que se distinguiram na época até que a política embranquecimento da república reverteu o quadro.)
A primeira constatação foi que a cultura branca nos EUA, a despeito da segregação mantida por séculos, penetrou fundo na visão de mundo dos negros americanos. Eu me lembro de um filme sobre um pesquisador negro, em meados da década de 1950, que resolveu estudar a autoestima das adolescentes negras, oferecendo-lhes uma boneca loura e outra negra para escolherem qual delas preferiam. A loura ganhou de lavada. A moda de alisar cabelo a ferro usando brilhantina, por exemplo, pegou muito mais lá do que aqui.
E foi então que constatei que o racismo brasileiro afetou, mas não estrangulou a autoestima do negro. Religião, comida, música de origem africana se mantiveram aqui, sendo, em boa medida, incorporadas pela sociedade branca. Negros bem-sucedidos conviviam em salões brancos, coisa que nos EUA era impossível, mesmo que fossem ricos. O racismo lá era absoluto, ao passo que aqui era relativo, como concluiu um
brazialinista que estudou as relações entre brancos e negros aqui e lá.
brazialinista que estudou as relações entre brancos e negros aqui e lá.
Nas últimas décadas, os negros americanos saíram em busca de suas raízes perdidas. No caso do Brasil, não só via miscigenação, elas também fazem parte do mundo branco. Ainda há preconceito, mas jamais nos termos em que lá aconteceu. A alma e a cultura do negro brasileiro foram bem mais preservadas aqui. Ver só o lado econômico-financeiro é uma visão empobrecedora do ser humano em sua totalidade. O legado da herança africana é bem mais viva aqui do que lá.
Digite no Google minha palestra "O legado da herança luso-afro-indígena até 1889". Ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=uuLxB3Mysns&t=145s.
Gastão Reis
Economista e palestrante
Economista e palestrante
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