Gastão ReisGastão Reis

No Brasil de hoje, em que o Povo Brasileiro é desrespeitado por um mundo político e um STF, centrados em torno do próprio umbigo, é digna de nota a comemoração dos 30 anos do Plano Real. As palavras do economista Gustavo Franco resumem bem o que é a moeda de um povo: “A moeda é como a bandeira e o hino. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também”.
Gustavo Franco vai além, e nos alerta: “Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre”. Ainda que temperado por um “talvez”, ele se refere à marcha lenta da economia de baixa produtividade e à perda de posição relativa face a outros países mais dinâmicos. Na verdade, o drama nos aflige desde 1980, ano a partir do qual passamos a colecionar décadas perdidas, indo na direção de meio século face à destrambelhada década atual.
Em matéria de crescimento, tem o sabor do drama argentino que chegou a ter renda per capita das maiores do mundo, e foi ladeira abaixo por mais de meio século, tentando agora se recompor. E que já teve apenas 10% da população na linha da pobreza, e foi bater em quase metade nos últimos anos. A diferença é que o Brasil, desde o Plano Real, conseguiu baixar a extrema pobreza de quase 40% para algo em torno 12% e, em 2023, para 8,31%.
O Plano Real, sem dúvida, fez algo próximo a um milagre ao livrar a população mais pobre do terrível imposto inflacionário, que muito contribuiu para agravar a desigualdade. Feito por economistas brasileiros, inspirados pelo bem-sucedido plano israelense de combate à inflação, deu uma bela escovada em nossa autoestima, como dizia a ex-diretora do Museu Imperial, Maria de Lourdes. No caso da instituição, ela se referia a brasileiras e brasileiros, dali saídos, após percorrer seu maravilhoso acervo, com a autoestima em alta. Um museu que preserva o que houve de melhor em nossa História.
Mas o lado ensolarado da calçada esconde o outro lado escuro da rua – a desigualdade persistente. O ex-ministro Pedro Malan, em sua entrevista sobre o Plano Real, publicada em O Globo, em 30/6/2024, nos chama a atenção para o que aconteceu no Brasil pré-real, sem paralelo no mundo: “Desde os anos 1950, a inflação sempre foi acima de 10% ao ano num quadro de descontrole crônico de preços”. Malan, talvez sem se dar conta, nos fornece as raízes profundas do processo de agravamento da desigualdade decorrente, em boa medida, da inflação elevada, que se estendeu por quase meio século.
As declarações dos pais do Plano Real, centradas em nossa história mais recente, não fizeram menção a outros tempos em que o Brasil viveu sob inflação mínima. Eu estou me referindo ao longo período de nossa história, que vai de 1822 a 1950, quase 13 décadas, em que o País desconhecia o fenômeno da inflação elevada.
No Império, variou em média entre 1 e 1,5% ao ano, coisa de outro mundo mesmo. A partir da Lei do Ventre Livre (1871), escravos passaram a poder abrir conta de poupança na Caixa Econômica, o que lhes facilitou inclusive comprar a própria alforria, não obstante um dispositivo da mesma lei houvesse criado um Fundo para compra de alforrias. O Brasil foi um caso único no mundo pelo volume de alforrias ocorridas, desde os tempos coloniais até 1889, a ponto de 80% das pessoas de origem africana já serem livres na data da assinatura da Lei Áurea. Um salto e tanto na redução da desigualdade ao passar da condição de escravo(a) para de homem/mulher livre.

Curiosamente, o ano em que comemoramos os 30 anos do Plano Real coincide com os 200 anos da Carta de 1824. Aquela que, outorgada, foi capaz de coibir os abusos do andar de cima via poder moderador ao passo que a de 1988, com forte participação popular, acabou defendendo interesses de gru-pos, passando longe da preservação do interesse público. Após cerca de uma geração, ela aprofundou a discrepância entre os salários do setor público e do setor privado, em que aquele ganha em média o dobro de quem faz a mesma coisa no setor privado. Ou seja, conseguiu a proeza de piorar a desigualdade entre os referidos setores, promovendo a defesa de privilégios inaceitáveis.
A condição necessária e suficiente para destravar o crescimento pífio do PIB per capita vai além da moeda estável. Passa pela necessidade de abrir espaço para o investimento público, hoje quase inexistente. Mas tal providência exige uma freada de arrumação no setor público com corte de despesas nos três níveis de governo. Ou seja, elevar sua eficiência e sua eficácia.
A dimensão do problema é maior ainda do que aquele enfrentado pelos autores do Plano Real. Requer um novo ordenamento jurídico do País, uma nova constituição, na direção de um encolhimento de um pesado setor público incapaz de investir 10% do PIB, como já foi no passado. Os insignificantes menos de 2% não dão conta do recado. É difícil imaginar a volta do nível de investimento de 25% do PIB sem essa mudança. Ela é fundamental para que o País consiga superar o pífio crescimento de nossa renda real per capita.
Uma nova constituição, mais uma da meia dúzia que já tivemos, seria uma pergunta sua perfeitamente razoável, caro(a) leitor(a)? Claro que isso exigiria uma grande movimentação popular, o que complica ainda mais o cenário para dar certo. Parece impossível? É certamente uma tarefa gigantesca. O dramático é que, a continuar como estamos, vamos marcar passo em relação aos demais países, com a garantia de que o crescimento de nossa renda real per capita se manterá pífio. Previsão fácil de ser feita.
Tem a cara do duro dilema de Sofia. Ou nos mexemos, ou a areia movediça irá nos sufocar aos poucos e inexoravelmente. Mãos à obra.

(*) Digite no Google “Dois minutos com Gastão Reis: Esquizofrenia econômica”. Ou pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=_jqMlxDReBA