Promotora de Justiça da Infância e Juventude do Estado do Rio de Janeiro, Gabriela LusquiñosPamella Abreu/Marketingnarede
Gabriela Lusquiños, titular da 7ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, tem mais de 22 anos de experiência, sendo 15 dedicados à proteção de menores. Iniciou a carreira como policial civil na Divisão de Proteção à Mulher. Participou da força-tarefa DEGASE/MP para investigar violência nas unidades de internação. Idealizou e coordena o Programa “Bem-Me-Quer Terê”, voltado ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
SIDNEY: A senhora faz palestras em escolas sobre bullying e cyberbullying. Quais os sinais que uma criança ou adolescente apresentam quando sofrem esse tipo de violência? Como prevenir?
GABRIELA LUSQUIÑOS: Sou promotora de Justiça no Estado do Rio de Janeiro há mais de 20 anos, e há 15 anos atuo na área da infância e da juventude. No Ministério Público, atuamos tanto na esfera da proteção quanto na socioeducação de crianças e adolescentes. O bullying e o cyberbullying são condutas que podem configurar crime e têm uma interface direta com a escalada de violência extrema que temos observado com cada vez mais frequência no sistema de justiça. Essas situações, quase sempre, estão associadas ao uso excessivo e não supervisionado de telas e redes sociais. Quando o problema chega à Vara da Infância e da Juventude, muitas vezes descobrimos que o adolescente hoje em conflito com a lei já foi, anteriormente, vítima invisível de bullying e cyberbullying. Essa trajetória silenciosa pode culminar em atos infracionais graves, inclusive contra a vida. O problema, no entanto, começa muito antes — nos primeiros anos da educação infantil. São crianças que não conseguem fazer amigos, que ficam sozinhas no recreio, que passam os dias escolares isoladas sem que ninguém perceba ou se importe. É aquela que sempre é a última a ser escolhida para o time na aula de educação física. É aquele que sobra quando os colegas formam grupos de trabalho. É a criança que nunca é convidada para os encontros fora da escola, que permanece sozinha dentro e fora do ambiente escolar. Muitas dessas crianças são mais introspectivas, sofrem algum tipo de violência em casa, ou são crianças atípicas ou neurodivergentes — na maioria dos casos, ainda sem diagnóstico ou acolhimento adequado. O que percebemos é que não há adultos presentes para ajudá-las na socialização, nem na escola, nem entre os responsáveis. Quando chega a adolescência, esse jovem, que já passou anos isolado, encontra-se diante de uma necessidade vital: a de pertencer, de ser aceito, de estabelecer conexões significativas. Ao ingressar no Ensino Fundamental II, torna-se alvo fácil do bullying — e a invisibilidade persiste. Ele não foi visto na primeira infância e continua sem ser visto na adolescência. O bullying, no entanto, precisa de plateia. Muitos veem, mas fingem não enxergar. É como se fosse invisível dentro da escola e no seio da comunidade escolar — incluindo os pais — mas ele não é. A vítima dá sinais claros: mudança brusca de comportamento, queda no rendimento escolar, regressão, isolamento, ansiedade, crises de pânico, depressão, automutilação, recusa em ir à escola, ideação suicida, tentativas de suicídio e, em alguns casos, a prática de atos infracionais violentos. A principal via de prevenção é o fortalecimento da conexão real e amorosa entre adultos e crianças. Isso passa pela escuta ativa e acolhedora, pela atenção aos sinais desde os primeiros momentos, e pela construção de rotas de cuidado compartilhadas. Essa jornada precisa ser feita de forma coletiva, com a participação efetiva das famílias, da escola, dos serviços de saúde mental e de toda a rede de proteção.
A senhora afirma que rede social é uma rua perigosa. Volta e meia a imprensa divulga mortes de crianças e adolescentes que participam de desafios na internet. Como evitar isso? Qual a idade mínima ideal para um jovem ter rede social?
Partindo do pressuposto de que a violência é uma forma distorcida de expressar uma necessidade legítima não atendida — e considerando a invisibilidade de muitas crianças e adolescentes no mundo contemporâneo, especialmente no contexto da hiperconectividade sem supervisão adulta — percebemos que é vital trilhar o caminho inverso: mudar a rota e construir novas estratégias de cuidado. Tenho defendido com ênfase a proposta do psicólogo social Jonathan Haidt, apresentada em seu livro "Geração Ansiosa". Ele sugere a adoção de um pacto coletivo: não entregar celulares antes dos 14 anos e permitir o uso de redes sociais depois dos 16. Essas faixas etárias não foram escolhidas aleatoriamente — há evidências científicas que embasam a recomendação. Pesquisas indicam que, antes dessas idades, o uso de smartphones e redes sociais representa um risco significativo ao desenvolvimento emocional e à saúde mental dos adolescentes. Os dados são alarmantes: houve um aumento de 200% no número de suicídios entre adolescentes nos últimos anos. Diante desse cenário, surgiu no Brasil o movimento “Desconecta”, que propõe que cada escola tenha um pai ou uma mãe como liderança do grupo, responsável por mobilizar outros responsáveis e firmar um pacto coletivo para adiar a entrega de celulares e o acesso às redes sociais. A lógica é simples e poderosa: muitos pais não querem dar o celular, mas acabam cedendo porque "todos já deram". A proposta do pacto quebra esse ciclo. Quando uma família adia sozinha, a criança pode se sentir isolada, mas quando várias tomam essa decisão juntas, deixa de ser uma exceção e passa a ser um movimento coletivo — fortalecendo tanto os adultos quanto as crianças.
Partindo do pressuposto de que a violência é uma forma distorcida de expressar uma necessidade legítima não atendida — e considerando a invisibilidade de muitas crianças e adolescentes no mundo contemporâneo, especialmente no contexto da hiperconectividade sem supervisão adulta — percebemos que é vital trilhar o caminho inverso: mudar a rota e construir novas estratégias de cuidado. Tenho defendido com ênfase a proposta do psicólogo social Jonathan Haidt, apresentada em seu livro "Geração Ansiosa". Ele sugere a adoção de um pacto coletivo: não entregar celulares antes dos 14 anos e permitir o uso de redes sociais depois dos 16. Essas faixas etárias não foram escolhidas aleatoriamente — há evidências científicas que embasam a recomendação. Pesquisas indicam que, antes dessas idades, o uso de smartphones e redes sociais representa um risco significativo ao desenvolvimento emocional e à saúde mental dos adolescentes. Os dados são alarmantes: houve um aumento de 200% no número de suicídios entre adolescentes nos últimos anos. Diante desse cenário, surgiu no Brasil o movimento “Desconecta”, que propõe que cada escola tenha um pai ou uma mãe como liderança do grupo, responsável por mobilizar outros responsáveis e firmar um pacto coletivo para adiar a entrega de celulares e o acesso às redes sociais. A lógica é simples e poderosa: muitos pais não querem dar o celular, mas acabam cedendo porque "todos já deram". A proposta do pacto quebra esse ciclo. Quando uma família adia sozinha, a criança pode se sentir isolada, mas quando várias tomam essa decisão juntas, deixa de ser uma exceção e passa a ser um movimento coletivo — fortalecendo tanto os adultos quanto as crianças.
Como promotora de Justiça, a senhora observa aumento de infratores entre adolescentes da classe média e alta? Por que isso vem acontecendo?
Pouco antes da pandemia, já começávamos a perceber uma mudança no perfil dos casos que chegavam ao Judiciário — mudança que se intensificou no período pós-pandêmico. Há cerca de 10 anos, os casos mais comuns que chegavam à Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro envolviam atos infracionais como roubos, furtos e tráfico de drogas, refletindo majoritariamente o perfil de adolescentes em situação de vulnerabilidade econômica e social. Esse cenário, no entanto, mudou de forma significativa. Passamos a receber adolescentes que, até então, não costumavam frequentar páginas policiais, delegacias ou o sistema de justiça. Adolescentes oriundos da classe média e da classe alta, com famílias aparentemente estruturadas, moradores de bairros nobres e estudantes das escolas mais caras da cidade. E esses adolescentes não estavam envolvidos em atos infracionais leves. Ao contrário: estavam sendo responsabilizados por condutas gravíssimas — muito mais severas que os delitos tradicionalmente associados à juventude em vulnerabilidade. Esse novo perfil está diretamente relacionado a um contexto contemporâneo: o da hiperconectividade, especialmente entre crianças e adolescentes que utilizam a internet e as redes sociais de forma intensiva, precoce e sem qualquer supervisão adulta. Estamos, portanto, diante de um novo desafio para o sistema de justiça juvenil, que exige uma compreensão mais profunda dos impactos do ambiente digital na formação psíquica, moral e social dos adolescentes — independentemente de classe social.
A proibição de celulares nas escolas é uma medida realmente eficaz? Já produziu resultados?
No dia 13 de janeiro de 2025, foi sancionada a Lei 15.100/2025, que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais em escolas públicas e privadas de todo o país. A sanção da norma foi respaldada por diversos estudos que já apontavam os benefícios de ambientes escolares livres de celulares, especialmente diante das evidências de uma epidemia internacional de transtornos psíquicos, iniciada por volta de 2012 e que segue em crescimento acelerado. Há fortes indícios de que essa crise global de saúde mental foi causada, em parte, pelo uso precoce e excessivo das redes sociais e pela adoção repentina dos smartphones no início da década de 2010. O uso de telas — principalmente smartphones e computadores conectados à internet — representa um risco profundo à saúde mental e ao bem-estar de crianças e adolescentes. O impacto é ainda mais evidente quando esse uso ocorre sem limites e sem supervisão. Diversas escolas, ao adotarem políticas de ambiente escolar livre de celulares, já haviam registrado redução significativa nos índices de depressão, ansiedade e autolesão entre os alunos. Além disso, houve melhora nos resultados acadêmicos, no desenvolvimento de habilidades socioemocionais e no aumento da interação social entre os estudantes. Agora, com a proibição em âmbito nacional, os efeitos positivos desse movimento começam a se consolidar, reafirmando que a restrição ao uso de celulares no ambiente escolar não apenas protege, mas também potencializa o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes.
No dia 2 de junho, a senhora participou de um evento na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) que abordou a série "Adolescência", que trata do assassinato de uma adolescente por um colega de escola. A divulgação desse tipo de crime incentiva uma violência maior ou inibe novos casos?
Essa série, que vem sendo amplamente comentada, trouxe um conteúdo relevante e incentivou um debate nacional urgente, ao chamar a atenção para um perigo que, muitas vezes, está dentro de casa. Durante muito tempo, ao tratarmos desse tema, éramos vistas como alarmistas. No entanto, o que é retratado na série não é ficção — infelizmente, é uma realidade que tem chegado diariamente ao sistema de Justiça. Assim como na série, na vida real observamos adolescentes vivendo grandes desafios, sofrendo graves violações de direitos e atravessando sucessivas situações de violência. São adolescentes que não estão sendo verdadeiramente vistos em sua integralidade. Tornam-se invisíveis na escola, em suas casas, nas comunidades onde vivem. Identificamos, de forma recorrente, padrões que se repetem nas histórias de violência extrema: lares disfuncionais, escolas marcadas por violência e exclusão, fragilidade nos atendimentos de saúde mental e infâncias hiperconectadas, muitas vezes deixadas ao abandono digital. São fatores que permanecem invisíveis por muito tempo — até que um ato extremo retire, de forma trágica, essa invisibilidade. Acredito que essa série trouxe à tona um debate necessário e potente. Ela nos provoca a refletir sobre as raízes da violência e nos convoca a avançar em estratégias e caminhos que enfrentem suas causas estruturais, para que possamos, de fato, construir uma rede eficaz de proteção integral a crianças e adolescentes.
Como é o Programa "Bem-Me-Quer Terê" que a senhora criou?
O Programa "Bem-Me-Quer – Terê" foi criado em Teresópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, com o objetivo de garantir proteção integral de crianças e adolescentes, nas situações de violência sexual, contando com equipe especializada. A atuação do "Bem-Me-Quer" foi reconhecida por sua excelência e inspirou boas práticas em outros municípios, antes mesmo da entrada em vigor da Lei 13.431/2017. O serviço está fundamentado na atuação interinstitucional e em rede, com articulação com escolas, serviços de saúde, assistência social, sistema de justiça e sociedade civil, promovendo atendimento humanizado, escuta qualificada e ações de prevenção. O programa oferece atendimento psicossocial especializado, com fortalecimento de vínculos, acompanhamento de casos de forma integrada, garantindo o acolhimento, a restauração e o cuidado de crianças e adolescentes.
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