Colunista Rafael NogueiraReprodução
A Constituição do Império do Brasil completará 200 anos no próximo dia 25 de março. Dedicarei este, e alguns dos próximos artigos, a revelar algumas curiosidades daquele documento, e de seu contexto.
No turbulento cenário das Cortes de Lisboa, e sob a sombra das guilhotinas que ceifavam seus primos, Dom João VI comprometeu-se com a Constituição que delas viria, assinando um documento chamado "Bases da Constituição".
Uma única delegação enviada às Cortes lisboetas apresentava uma proposta bem elaborada. Tratava-se das "Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo", datadas de 9 de outubro. Anteriormente aos eventos que culminariam na Independência, as Lembranças surgiram em resposta às demandas constitucionalistas estabelecidas pelas Cortes de Lisboa, defendendo, por exemplo, a manutenção do Reino Unido.
Elaborada por José Bonifácio e enviada pelo governo provisório de São Paulo a Antônio Carlos, deputado das Cortes na época, a proposta argumentava que, dado que as bases da suposta constituição portuguesa já haviam sido estabelecidas, incluindo alguns artigos fundamentais, ainda havia "vários outros que merecem igual consideração". O projeto paulista estava dividido em três partes: o primeiro capítulo tratava dos "Negócios da União", referentes à organização de todo o Império Português; o segundo, dos "Negócios do Reino do Brasil"; e a terceira parte abordava os "Negócios da Província de São Paulo".
Na primeira parte, destacava-se a defesa da manutenção do sistema de união estabelecido por Dom João VI em 1815, como evidenciado no primeiro parágrafo do capítulo inicial. No que diz respeito ao Brasil, a maior parte do documento, baseado na premissa da unidade, propunha o estabelecimento de um "Governo geral Executivo para o Reino do Brasil", ao qual os governos provinciais estariam subordinados. O texto também expressava dois ideais políticos de José Bonifácio, que posteriormente se transformariam em projetos mais elaborados: a "catequização e civilização geral e progressiva dos Índios bravos" como forma de integrá-los à sociedade brasileira, e os "cuidados da Legislatura sobre a sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão". Além disso, o documento enfatizava a necessidade de "instrução e moralidade do Povo", propondo a criação de escolas primárias e ginásios em todas as cidades, vilas e freguesias, assim como pelo menos uma universidade com diversas faculdades.
Apesar de ter sido ignorado pelas Cortes de Lisboa, o documento era uma importante expressão do pensamento constitucional brasileiro. Ali já se vislumbrava a ideia de poder moderador, embora com uma denominação diferente, e configurada de forma colegiada. Diz o projeto:
"Parece necessário para vigiar esses três Poderes, a fim de que nenhum invada o território do outro, que haja um corpo de Censores de certo número de membros eleitos pela Nação da mesma forma que os Deputados em Cortes”.
O excerto demonstra preocupação com a dinâmica de controle e equilíbrio entre os poderes, além de uma visão precursora do papel de fiscalização e moderação do Estado, que mesmo sendo ideia embrionária naquele momento, demonstra a capacidade de José Bonifácio em pensar em termos de instituições e mecanismos que garantiriam a estabilidade política, e a durabilidade do Estado, grande mérito da constituição de 1824.
O projeto não foi valorizado nem adotado pelas Cortes de Lisboa, mas o conceito de moderação assumiria o maior grau de importância entre as outras ideias em debate nas décadas seguintes. Os pouco lembrados apontamentos de Bonifácio não apenas ofereceram uma solução tecnicamente valiosa para as necessidades do Brasil naquele momento, mas também delinearam ideias que moldariam o curso da história política do país.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.