Rafael NogueiraDivulgação

O nascimento que mudou a história ao unir o tempo e a eternidade foi a manifestação visível de um mistério divino: Deus se fez homem e veio habitar entre nós. Santo Agostinho nos lembra que o tempo de Deus não é como o nosso; Ele age no “hoje eterno”, sempre presente. Hannah Arendt, ao tratar do nascimento como o início de algo completamente novo, revela sua dimensão transformadora. Enquanto Agostinho vê o tempo de Deus como sempre presente, Arendt destaca o nascimento como uma ruptura, uma nova possibilidade. O Natal une essas visões: é o eterno que rompe o fluxo temporal para oferecer um recomeço.
Talvez você esteja pensando: “Mas já não passou o Natal?” Não, ainda não passou. Na tradição católica, ele se estende até a Epifania. E num certo sentido verdade, ele nunca passa. O Natal reverbera na história e em nossas almas como um convite permanente ao reencontro com o divino. E não há razão para perdermos esse chamado. Os conservadores fazem bem em tomar a conservação do Natal como uma bandeira, em oposição à superficialidade da turma das “boas festas”, que aplaude o efêmero e tenta apagar o que é sagrado.
A conservação, porém, não é estagnação. O próprio Natal é celebrado hoje de forma distinta de ontem. O progresso é inevitável, mas precisa de um núcleo perene e da direção certa. Como nos lembra o Papa São João Paulo II, “um mundo apenas dos homens, sem Deus, acaba se voltando contra os próprios homens”. O progresso, sem balizas, é como um trem sem trilhos: rápido, mas fora de controle. Você sabe onde ele vai parar? Nem eu. O Natal nos dá essa medida: respeitar o encontro com o eterno é o que garante a segurança do caminho.
Mas o que mais significa este nascimento? O Natal é uma ruptura que transforma o mundo sem destruir suas raízes. Cristo veio ao mundo para nos transformar e, se pararmos para pensar, também para nos ensinar que o que vale a pena — o que é verdadeiro, belo e bom — merece ser guardado com cuidado. Assim como guardamos cartas de entes queridos, fotos antigas, ou um presente especial.
Ele realiza o que as Escrituras e os profetas anunciaram, cumprindo promessas que ecoavam na tradição judaica, enquanto incorpora a razão pagã, não para apagá-la, mas para elevá-la. É uma continuidade transformada, espécie de revolução que não joga tudo fora, mas tira as impurezas e transforma sombras em luz com a chegada do Verbo feito carne. O novo que Cristo inaugura não rompe com tudo, mas traz a plenitude do que sempre foi. Essa transformação, que respeita o eterno, manifesta-se também nos símbolos mais simples, como a manjedoura que acolheu o Menino Deus.
Imagine o presépio de São Francisco: um cocho de madeira, o cheiro do feno, o som de animais ruminando ao fundo. Ali, nesse lugar improvável, nasceu o Rei dos Reis. O nascimento no estábulo, em meio ao feno e aos animais, representa a simplicidade real altiva diante dos grandes deste mundo, não se curvando nem à mais cruel violência.
Os profetas judeus mais humildes, como o pastor Amós ou o camponês Jeremias, já haviam dado exemplo disso, enfrentando reis, sacerdotes e até seus povos; e os filósofos gregos, que fizeram da humildade intelectual um caminho para a sabedoria. Sócrates, que admitia nada saber, andava descalço pelas ruas de Atenas, perguntando aos outros sobre a verdade. Ele sabia da pequenez, sua e de todos, diante da verdade. Diógenes, com seu barril e sua vida austera, recusou a oferta de riquezas ilimitadas de Alexandre Magno, pedindo apenas que o conquistador se afastasse, pois estava bloqueando o sol. Alexandre, impressionado, teria dito que, se não fosse quem era, desejaria ser Diógenes.
A estrebaria, em sua humildade, exalta a nível máximo essa mesma grandeza que une simplicidade e transcendência. Não havia ali ostentação de riqueza, nem a falsa humildade de quem se faz de simplório para explorar a boa-fé alheia. Ali o rústico virou sublime. E nós? Também somos assim. Pequenos, frágeis, vis. Mas, no contraste entre a simplicidade do lugar e a realeza do Menino, está o mistério do Natal. O divino não rejeita o simples, mas o enobrece.
O feriado pode mudar, mas o mistério do Natal é sempre o mesmo. Ele nos convida a olhar para o essencial. Pensa bem: não é verdade que toda vez que o Natal chega, você se pergunta: será que estamos realmente olhando para o que importa? No fundo, é isso que o Natal nos pede: ajustar o olhar para que Ele se volte ao eterno, a Deus.
É na Eucaristia que esse mistério se realiza plenamente, e se perpetua. O mesmo Cristo que nasceu em Belém se oferece a nós, todos os dias, no altar. A Eucaristia é o nascimento renovado do Verbo em nossas almas, o alimento que nos dá forças para carregar nossas cruzes e a luz que ilumina o caminho em direção à eternidade.
Ainda que mudemos as festas, os rituais, ou até as músicas que cantamos na véspera, o Natal sempre será o mesmo: um chamado ao que não passa, ao eterno, a Deus. É nessa união do de sempre com o para sempre que encontramos o sentido do Natal.