Artista debocha da masculinidade tóxica no espetáculo 'King Kong Fran'Divulgação/Nanda Carnevali

Rio - Como seria um universo em que as mulheres assumiram a posição de dominadoras e utilizam o assédio e a objetificação como ferramentas para oprimir os homens? Esta é a discussão que a atriz Rafaela Azevedo propõe ao surgir como Fran, personagem que criou para combater o machismo em cima dos palcos e na internet, onde diverte milhares de seguidores ao inverter os papéis de gênero de forma irônica. Com o sucesso nas redes sociais, a palhaça arrastou seu público para os teatros com a comédia "King Kong Fran", que encerra temporada nesta quinta-feira, dia 6, no Teatro XP, no Leblon, Zona Sul do Rio.
Com dez anos de carreira divididos entre o teatro e o circo com sua palhaçaria, Rafaela celebra o momento que vive após alcançar o feito de reunir uma plateia mais jovem para os palcos, esgotando todas as sessões que apresentou até o momento. "Tem pessoas que vieram a partir do Instagram da Fran depois desse boom, que nunca tinham ido ao teatro e a primeira vez que elas estão indo ao teatro é pra ver 'King Kong Fran'. Acho maravilhoso estar levando essa cultura que é tão importante pra mim, que me sustenta e é de onde eu venho, que é o teatro, o palco", comemora.
Inovando pela abordagem polêmica que faz referência à Monga, "a mulher gorila", tradicional atração do circo, a artista explica como surgiu a ideia de fazer o público masculino provar de seu próprio veneno. "A Fran nasce da minha vulnerabilidade. Da minha desgraça, vem a minha graça. Eu comecei a pensar: a minha vulnerabilidade enquanto mulher nessa sociedade é muito nítida, o tanto de violência que a gente sofre. Se eu expressar isso na minha criação com a palhaça, eu posso despertar várias emoções, mas isso é a realidade", comenta.
"Então, como a palhaça tem humor a seu favor, eu pensei: e se eu inverter isso e tratar do tema mudando as posições? E isso gera o riso. As pessoas riem daquilo porque não é real. Quando a Fran oprime ou objetifica um homem, está no campo da ironia. É uma inversão, não é realidade. Se fosse realidade, a gente não riria disso. A gente ri por ser absurdo. Mas, quando a gente está rindo e vendo o quão absurdo é isso invertido, a gente reflete e vê o quão absurdo isso também é no formato naturalizado pela sociedade. Então, o riso serve pra evidenciar, pra botar luz onde ainda está sombrio", detalha a artista.
Prova de que assuntos como o assédio contra mulheres merecem atenção é um acontecimento recente que marcou o "BBB 23". MC Guimê e Cara de Sapato foram expulsos do reality show da TV Globo após serem acusados de importunação sexual contra a mexicana Dania Mendez, que fazia um intercâmbio no programa, vinda do "La Casa de los Famosos". Para a atriz, a atitude da direção aconteceu na hora errada, ainda que correta, acendendo um alerta para o público e a sociedade, de maneira geral.
"Na verdade, essa expulsão deveria ter acontecido no momento em que ocorreu o assédio. Tinham várias pessoas vendo o crime acontecer e eu acho que isso ainda é muito pouco. Você esperar, deixar que a violência aconteça e não interferir... Eu acho que o correto mesmo seria interferir na hora, é não deixar que isso aconteça, isso é um crime. A gente não pode naturalizar mais a violência contra a mulher, não dá, não há mais tempo. É preciso o mal ser cortado pela raiz e que isso fique muito, muito nítido", opina Rafaela.
Com isso, a artista destaca a importância de se valer do humor para denunciar temas que ainda afligem a sociedade, apesar dos avanços da luta feminista. "Eu sinto que a gente está vivendo um momento muito forte de evolução e, com todo momento de evolução, também vem uma onda conservadora pra tentar barrar. A gente já cavou lugar seguro, um lugar de consciência na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, a necessidade desse espetáculo é porque tem essa onda conservadora que quer que o sistema patriarcal continue violentando todas as minorias. Então, a 'King Kong Fran' vem como um um pedido de mudança", afirma.
Enquanto se prepara para uma nova temporada no Teatro Cesgranrio, em Rio Comprido, na Zona Norte da cidade, a atriz deixa bem claro que não vai desistir de sua personagem, independente das represálias que sofra de grupos conservadores. "Eu não abandonaria a Fran por conta de nenhum ataque. Na verdade, ela é o que me salva de todos os ataques diários, porque, tendo a experiência de ser mulher na sociedade, eu vivo com medo. Não só do que pode acontecer, mas com medo e traumas do que já aconteceu. Os ataques são pela realidade, todo dia que eu acordo, eu sofro não por ser a Fran, mas por ser mulher nessa sociedade. Então, a Fran é o que me tira um pouco dessa realidade, nenhum ataque a essa criação minha me faria parar porque eu sofro ataques muito piores na vida cotidiana".