Especialistas criticam declaração de Bolsonaro e defendem retomada urgente do horário de verão Divulgação

Rio - A nova ameaça de apagão chama a atenção para um grande obstáculo ao crescimento econômico brasileiro, que não passa só pela falta de chuvas. É a negligência do governo federal em relação à eficiência energética, desestimulada pelo lobby de produtores de energia. Enquanto o Brasil empurra o tema com a barriga, países desenvolvidos correm na direção contrária, fazendo da eficiência uma fonte para tornar suas economias mais competitivas. O diagnóstico é de especialistas reunidos pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS) no documento “A hora e a vez da eficiência energética”. Eles defendem também a retomada do horário de verão para poupar a energia que fará falta nesta e nas próximas crises hídricas.
Coordenado pelo iCS, o documento é assinado pelo Fórum de Energias Renováveis, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Mitsidi Projetos e Projeto Hospitais Sustentáveis. Os especialistas são unânimes: o Brasil estacionou no tempo em termos de eficiência energética, o que contribui para baixar os níveis dos reservatórios, força o acionamento de térmicas a combustíveis fósseis - que agravam os problemas climáticos - e eleva gastos das empresas, emperrando a retomada do crescimento. O setor industrial, que deveria pressionar pela redução da conta de energia para baratear seus custos, não se movimenta, acabando refém do lobby de geradores de energia.
“A maioria dos países passou a produzir mais riqueza consumindo menos energia, mas a omissão do nosso governo trava o desenvolvimento”, afirma Kamyla Borges, coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS. O estudo faz uma comparação entre os gastos com energia por vários países para produzir a mesma quantidade de riqueza. O índice é conhecido como “intensidade energética”. Entre 2010 e 2015, que inclui o último ciclo de crescimento do Brasil, o gasto com energia aumentou 6,2% para produzir a mesma riqueza. Na China, despencou 22%. A intensidade energética também caiu 10,9% nos Estados Unidos, 11,6% na Índia e 6,9% no México. “Isso explica o fato de China estar onde está”, ressalta o engenheiro Luiz Barata, consultor do iCS.
Um estudo do Instituto Escolhas indica que a conta de luz dos brasileiros estaria até R$ 30 por mês mais barata se o governo tivesse aplicado apenas uma das medidas de eficiência negligenciada por 15 anos, que é a elevação do padrão de eficiência das geladeiras correspondente à etiqueta A para a concessão de incentivos fiscais. Em vez disso, a conta subiu 20% em 12 meses. A economia de 25% na conta, em média, faria grande diferença para a maioria das famílias de baixo poder aquisitivo. E o aumento na eficiência representaria 25,3% dos 5.500 MW médios que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) estima serem necessários para evitar o apagão no Brasil. Só com geladeiras.
O físico José Goldemberg, ex-ministro de Educação e ex-dirigente de quatro grandes estatais do setor elétrico, chama a atenção para o efeito do lobby para que o Brasil não priorize a eficiência energética no planejamento do setor elétrico. Em vez disso, o país aposta mais fichas na construção “espetaculosa” de térmicas, que afetam o clima e agravam a falta de água. “Olhar a eletricidade pelo suprimento nos liga ao grande problema de compra de equipamentos e até corrupção. O negócio é fazer usinas, investir bilhões de dólares e beneficiar setores da sociedade. Olhar pelo lado da redução da demanda não pegou no sistema de planejamento brasileiro”, lamenta Goldemberg.
A sugestão do presidente Jair Bolsonaro para que o brasileiro “desligue um ponto de luz” é criticada pelo ex-ministro. “Para o rico, desligar uma lâmpada não faz diferença, mas para o pobre significa ficar no escuro. Há uma ideia de que a eficiência energética é privação, mas isso não é verdade. O cidadão tem o mesmo serviço, só que custa menos.” Na Califórnia, ele exemplifica, as geladeiras passaram a gastar quatro vezes menos energia em 30 anos. “A Califórnia proibiu a circulação de produtos sem etiquetagem com medidas simples.”
Para Kamyla, o brasileiro não precisa apagar uma lâmpada, mas ter equipamentos mais eficientes. “Ou o governo agrava o atraso ou tenta revertê-lo já, com prioridade. Tem que ser feito agora, ou daqui a 5 anos voltamos ao apagão e não vamos sair do lugar. Isso tem que ser visto como uma questão de política industrial, pois cria empregos e competitividade. Sem eficiência energética, vamos continuar travando o desenvolvimento”, conclui a coordenadora.
Os especialistas também defendem a retomada urgente do horário de verão. “Teríamos economia de 2% a 3% nos horários de pico”, estima Kamyla Borges. Considerando os dados de consumo de novembro de 2020 a fevereiro de 2021, fornecidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estima-se que o horário de verão teria economizado 2.500 a 3.800 GWh no último verão nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O cálculo é do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). O horário de verão é defendido “para ontem” por Luiz Barata como ação de efeito imediato. “O argumento para o fim do horário de verão foi de que a economia seria pequena, só de R$ 100 milhões, mas seria muito importante em um momento como o atual”, argumenta Barata.
Menos burocracia e outras medidas
Os especialistas apontam outras medidas que deveriam ser adotadas pelo governo, como unificar os programas de eficiência, hoje espalhados entre órgãos de diferentes áreas. “Na maioria dos países, há um programa único”, afirma Kamyla, defendendo a “centralização da governança”, com um fundo gestor e um conselho deliberativo intersetorial.
A medida de curto prazo mais defendida pelos especialistas que apresentaram o estudo é a atualização dos padrões de eficiência de aparelhos de ar-condicionado e geladeiras. “Uma campanha massiva de engajamento dos consumidores também deveria ser feita nesse sentido”, argumenta a coordenadora do iCS. Outras propostas são a inclusão da eficiência energética em leilões de capacidade energética, programa de eficiência para hospitais e planos municipais de energia. “As medidas de eficiência energética têm condições de dar resultados antes das térmicas que o governo quer colocar no sistema, a custos menores para a sociedade e para o setor produtivo, produzindo um impacto bem mais positivo no crescimento econômico”, acrescenta.