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Na roda de amigos, na porta da balada, na saída da universidade, em festas e até mesmo dentro de casa, os cigarros eletrônicos estão por toda parte. Os dispositivos têm diversos nomes e surgiram com a promessa de ser um produto mais seguro que o cigarro. Mesmo sendo facilmente encontrados em lojas e até mesmo na internet, o cigarro eletrônico é proibido no Brasil — e movimenta um mercado milionário. Apesar de não haver dados oficiais, uma fonte da Receita Federal acredita que a venda dos vapes, uma das várias denominações do produto, chega a movimentar "algumas centenas de milhões de reais por ano".
Em julho de 2022, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) manteve a proibição da comercialização, importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar. Esse veto, porém, não impede que sejam comercializados ilegalmente. Cresce, portanto, a importância do debate sobre regulamentação do produto e os efeitos colaterais à saúde.

Os cigarros eletrônicos surgiram nos anos 2000 e tiveram crescimento impulsionado, inicialmente, por novas empresas. Depois, grandes multinacionais de tabaco como British American Tobacco (BAT), Altria e Philip Morris compraram participações nos fabricantes dos dispositivos ou criaram as próprias companhias. Hoje, são cerca de 30 mil marcas de cigarros eletrônicos e líquidos à venda na Europa. Em 2014, as vendas globais eram de US$ 2,76 bilhões (R$ 14,8 bilhões). Após cinco anos saltaram para US$ 15 bilhões (R$ 80,7 bilhões).

Segundo pesquisa realizada pelo Ipec Inteligência de 2021, no Brasil, há mais de 2 milhões de consumidores do produto. Em 2020, eram 948 mil, um aumento de 120%. Em um ano, o número mais que dobrou. O dispositivo também é bem popular entre os jovens. De acordo com pesquisa recente do Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel), realizada pela Vital Strategies e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), um em cada cinco jovens no Brasil, na faixa de 18 a 24 anos de idade, usa o cigarro eletrônico.

Já um outro estudo realizado pela Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, aponta que 16,8% dos adolescentes entre 13 e 17 anos já experimentaram o dispositivo — que são produtos voltados exclusivamente para adultos maiores de 18 anos.

Os cigarros eletrônicos, ou vapes, funcionam por meio de uma bateria que aquece um líquido interno, composto por água, aromatizante, nicotina, propilenoglicol e glicerina. Em vez de queimar por combustão, ocorre a vaporização. Isso porque eles contêm um líquido que é aquecido e gera o vapor aspirado pelo usuário. Há modelos mais modernos, que se parecem com pen-drives. Alguns são fechados: não é possível manipular o líquido interno. Outros podem ser recarregados com substâncias, sabores, formatos e aromas diversos.
“São produtos que trazem como característica um forte apelo visual, com cores, design, diferentes combinações e aditivos que imprimem sabores que vão ao encontro dos gostos e preferências de adolescentes e jovens. A indústria do tabaco sabe que os jovens gostam de objetos que estão na moda e que estão sempre em busca de novidades e tem produzido produtos para este público”, afirma a chefe da Divisão de Controle do Tabagismo do Instituto Nacional de Câncer (Inca), Andréa Reis Cardoso.
O Brasil faz parte de um grupo de 32 nações que vetam o comércio do produto, a exemplo da Índia, México e Argentina. Outras 79 — como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá - liberaram com maior ou menor grau de restrição, conforme relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Nos países que liberaram, como o Reino Unido, veem redução de danos na comparação com o cigarro tradicional. Estudo de 2015 divulgado pela agência do serviço de saúde britânica, a PHE, indicou que cigarros eletrônicos são 95% menos prejudiciais do que o tabaco — os dados, usados como argumento pela liberação, foram contestados depois por parte dos cientistas, por suposto conflito de interesses.
"Para o estudo em questão, identificou-se que os autores possuíam conflito de interesse com a indústria do tabaco; e que não houve revisão por pares dos resultados, e que as evidências utilizadas para o estudo não haviam seguido todo o rigor metodológico científico para a sua utilização", esclarece Stefânia Schimaneski Piras, Gerente Geral de Registro e Fiscalização de Produtos Fumígenos, Derivados ou Não do Tabaco da Anvisa.

Mas fabricantes dos dispositivos, no Brasil, reafirmam o argumento de que eles oferecem risco reduzido à saúde, comparados ao cigarro tradicional, e por isso deveriam ser liberados como alternativa para uso adulto no país.
“Há dezenas de pesquisas internacionais, substanciadas por órgãos de saúde pública, que demonstram a redução do risco para a saúde dos fumantes que optam por migrar para os cigarros eletrônicos regulamentados. Enquanto o cigarro convencional possui cerca de 7 mil substâncias potencialmente tóxicas, que são resultado da queima do tabaco, os vaporizadores, por exemplo, apresentam no máximo cem. (...) O produto não é inócuo, mas é inegável o seu potencial de redução de risco em relação aos cigarros convencionais quando adequadamente regulamentado”, afirma Lauro Anhezini Jr., gerente sênior de Assuntos Científicos e Regulatórios da BAT Brasil.

A Anvisa, em contrapartida, garante que, de acordo com o estudo das evidências científicas disponíveis sobre o tema, destacadas na Análise de Impacto Regulatório (AIR), não há evidências científicas que confirmem a redução de riscos à saúde quando se compara o vape com o cigarro tradicional. 

“É importante destacar que os cigarros eletrônicos possuem nicotina, o que causa dependência da mesma forma que o cigarro tradicional. Os fabricantes alegam que se trata de produtos com menor risco, entretanto, a análise das evidências não demonstrou tal alegação. Mesmo em países onde esses produtos são autorizados, os fabricantes não podem dizer que haja redução de risco ou dano associado aos dispositivos eletrônicos para fumar, uma vez que não existe evidência científica para suportar essa afirmação”, disse Stefânia Schimaneski.

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) também contesta essa afirmação: “Foram identificados vários riscos dos cigarros eletrônicos. A grande maioria contém nicotina, que é a substância que causa dependência. A maioria dos usuários continua fumando e seus efeitos a longo prazo são desconhecidos. O equilíbrio final entre segurança e eficácia do uso de e-cigarros para parar de fumar não é claro. Portanto, não há evidências de que os cigarros eletrônicos sejam menos danosos do que os cigarros convencionais e as evidências de que ajudam os usuários a deixar de fumar são limitadas”, explica Andréa Reis Cardoso, chefe da Divisão de Controle do Tabagismo do Instituto.

Em 2021, estudo de cientistas da Universidade Johns Hopkins (EUA), publicado na revista Chemical Research in Toxicology, encontrou quase 2 mil substâncias em cigarros eletrônicos, a maioria não identificadas. Entre os reconhecidos, seis eram potencialmente prejudiciais. Foram analisadas quatro marcas populares, com sabor de tabaco e chamou a atenção do grupo a detecção de cafeína em duas delas — o que já havia sido encontrado antes, mas só em cigarros com sabor de café ou chocolate.

A alta concentração de nicotina em certos dispositivos (a vaporização de um pen-drive, por exemplo, equivale a um maço) também torna a experiência altamente viciante. Por norma, o cigarro convencional pode ter até um grama de nicotina, que é a substância que vicia, enquanto os cigarros eletrônicos chegam a ter até sete gramas por unidade.

A BAT Brasil defende que a regulamentação vai oferecer um uso mais seguro e mais controle sobre a produção e comercialização do dispositivo. “A regulamentação pela Anvisa deverá obrigatoriamente determinar que tipo de produto pode ser vendido, incluindo sua composição, limites máximos de cada substância (como a nicotina) e embalagens, entre vários outros aspectos. (...) O produto tem o potencial de oferecer menor risco ao consumidor adulto fumante que não deseja parar de fumar, conforme afirmam as autoridades sanitárias do Reino Unido — que recomendam o produto aos fumantes como alternativa de menor risco ao hábito de fumar”, argumenta o Gerente Sênior de Assuntos Científicos e Regulatórios da empresa.

Paulo Corrêa, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, chama atenção e pede mais cuidado ao relacionar o dispositivo ao ato de lazer. "Sobre a adicção, desencorajamos o uso do termo 'hábito de fumar' para se referir a uma das mais desafiadoras dependências químicas que existem. O termo correto seria 'adicto' ou 'dependente' de nicotina e outras substâncias dos cigarros eletrônicos e convencionais, o que leva à síndrome de abstinência e desejo de consumir mais o produto", afirma.

Já o Instituto Nacional de Câncer, alerta que o uso de cigarro eletrônico aumenta em mais de três vezes o risco de experimentação de cigarro convencional. "Há fortes evidências de que os que nunca foram fumantes e que usam cigarros eletrônicos têm, em média, cerca de três vezes mais chances do que aqueles que não usam cigarros eletrônicos para iniciar o consumo de cigarros; e de que não-fumantes que usam cigarros eletrônicos também são cerca de três vezes mais propensos do que aqueles que não usam cigarros eletrônicos a se tornarem fumantes atuais. Entre os não-fumantes, há evidências substanciais de que o uso de cigarros eletrônicos resulta em dependência de cigarros eletrônicos", explica a chefe da Divisão de Controle do Tabagismo do instituto.

A Anvisa destaca que a regulamentação atual proíbe a comercialização dos produtos, com base no princípio da precaução, com o fim de proteger a saúde pública. "A experiência internacional detalhada no Relatório de Avaliação do Impacto Regulatório não mostrou benefícios com a liberação dos cigarros eletrônicos em outros países. Pelo contrário, observou-se, em diversos países, um aumento expressivo no uso dos produtos, principalmente por crianças e adolescentes", explica.

Porém, especialistas da BAT Brasil afirmam que apenas com a regulamentação será possível monitorar o consumo por menores de idade e oferecer um produto mais seguro aos adultos. “É preciso urgentemente regulamentar a comercialização desses produtos no País. Só assim, acreditamos que menores de idade poderão ser efetivamente protegidos do acesso inadequado de um produto para maiores de idade e os milhões de consumidores adultos já existentes no Brasil poderão ter acesso a produtos com parâmetros de segurança e qualidade definidos por uma autoridade sanitária, algo que, é importante ressaltar, cerca de 80 países no mundo já fizeram, disse Anhezini Jr, gerente sênior da empresa.

De acordo com a Anvisa "os países que lideram a comercialização dos dispositivos não os monitoram. Em vários países, há uma notificação informando que a comercialização será iniciada, mas não há regulamento capaz de controlar segurança, comunicação e distribuição”, aponta Stefânia Schimaneski Piras.
Representantes da indústria do tabaco, afirmam que, com a regulamentação, o controle do uso do dispositivos por menores de idade seria facilitado e questionam o interesse em manter a proibição.
“É sempre importante se questionar se a manutenção da proibição interessa ao seu principal destinatário: os milhões de consumidores adultos de cigarros convencionais e aqueles que, hoje, já consomem produtos sem nenhum controle sanitário. (...) Vale sempre destacar que esses produtos são para adultos e é crime oferecê-los a menores de idade. É justamente para controlar esse uso que a regulamentação é fundamental: só com ela é possível estabelecer, entre outras premissas, os limites de acesso aos vaporizadores e produtos de tabaco aquecido”, afirma o representante da BAT Brasil.
Mas a Anvisa aponta que as evidências científicas disponíveis no relatório de AIR não apontaram para essa possibilidade. "No Canadá, por exemplo, após a autorização de comercialização, observou-se, em apenas um ano, um aumento de cerca de 100% no uso de cigarros eletrônicos por jovens dos ensinos fundamental e médio. Ademais, o marketing é feito de forma ostensiva, e a prevalência de uso por menores de idade é muito maior do que a encontrada no Brasil", destaca a agência em nota.
A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia contesta: "liberar é melhor para quem?. Nem mesmo para o Estado é vantajoso. O cigarro convencional, por exemplo, arrecada pouco mais de R$ 12 bilhões de impostos, mas gera R$ 125 bilhões em perdas diretas e indiretas para a saúde".
Prejuízos a saúde

Andréa Reis Cardoso, do Inca, também esclarece que o cigarro eletrônico produz grande volume de substâncias tóxicas e cancerígenas que levam a doenças importantes como cânceres de pulmão, esôfago, boca, pâncreas, bexiga, entre outros; doenças cardiovasculares com forte relação com tabaco, entre as quais infarto e derrame cerebral; e doenças pulmonares, como enfisema.
“Com base nas evidências mundiais atuais, o uso de cigarros eletrônicos de nicotina aumenta o risco de uma série de resultados adversos à saúde, incluindo: envenenamento; toxicidade por inalação (como convulsões); vício; traumas e queimaduras; lesão pulmonar; e consumo de tabaco, particularmente na juventude”, disse.
A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia pontua que é dever do Estado, proteger as pessoas da exposição a aditivos tóxicos e cancerígenos e informar devidamente a população sobre os riscos desses produtos.
“Como profissionais da saúde, cuidamos de doenças graves causadas pelo tabagismo. Só no campo da Pneumologia, há a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC); o câncer de pulmão; a Evali (síndrome respiratória aguda causada pelo uso de cigarro eletrônico); além de exacerbações (crises) de asma; exposição ao tabagismo passivo; problemas trombogênicos que levam à embolia pulmonar e muitas outras doenças”, explica Paulo Corrêa, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo.
As entidades ainda destacam que há evidências dos efeitos neurológicos, queimaduras e lesões, e envenenamento decorrentes do consumo do dispositivo:
- Efeitos neurológicos: Há evidências conclusivas de que o uso de cigarros eletrônicos pode levar a convulsões;
- Queimaduras e lesões: Há evidências conclusivas de que os dispositivos podem causar queimaduras e ferimentos, que podem ser graves e resultar em morte;
- Envenenamento: Há evidências conclusivas de que a exposição intencional ou acidental aos e-líquidos de nicotina pode levar ao envenenamento, que pode ser grave e resultar em morte. Um número significativo de intoxicações acidentais ocorre em crianças menores de seis anos.
O advogado Raphael Noronha, de 43 anos, conta que começou a usar o dispositivo em 2013 e que perdeu o controle do uso do vape. “Troquei o cigarro convencional pelo eletrônico, numa viagem ao exterior, porque a minha mulher era muito alérgica. Conheci o cigarro numa loja na Itália. Na época, fumava cigarro de filtro vermelho. (...) O efeito colateral principal é que você perde o controle do quanto fuma. Quem bebe em bar, em balada, conhece a 'ressaca de cigarro', que acontece quando se fuma mais que o habitual. O cigarro eletrônico tem uma ressaca pesada e você nunca tem a impressão de ter fumado tanto”, disse.
Já para o arquiteto Alessandro Rodrigues, de 55, que enfrenta as consequências dos efeitos colaterais causados a sua experiência com o produto não foi tão simples assim. "Eu usei o cigarro eletrônico por seis anos. Queria parar de fumar o cigarro normal e me indicaram testar o produto. No começo achei que estava me fazendo bem, mas com o tempo comecei a sentir falta de ar e muita tosse, quando fui ao médico o exame mostrou uma alteração no aspecto do meu pulmão", contou.
“Depois comecei tendo irritação na garganta, muitos episódios de sinusite. O médico mandou que eu parasse de fumar o cigarro eletrônico com urgência. Mesmo assim, continuo tendo esses efeitos e preciso ficar fazendo exames com mais regularidade do que antes”, concluiu.
Fiscalização
Apesar de ser proibida a comercialização desde 2009, o produto é facilmente encontrado no mercado. Os números disponibilizados pela Receita Federal estão desatualizados. Segundo o órgão, as apreensões de cigarros eletrônicos cresceram 140% em 2018. Foram 20.531 unidades apreendidas – em comparação às 8.544 de 2017. Até agosto de 2019, as apreensões já tinham ultrapassado o ano anterior (9.831).

Com o objetivo de reduzir a venda destes produtos, a Diretoria Colegiada da Anvisa deliberou pelo reforço de ações de fiscalização, que podem ser realizadas não somente pela Anvisa e Vigilâncias Sanitárias locais, mas por outros Órgãos responsáveis pela fiscalização, tais como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícias Civis, Receita Federal e Procons.

As vigilâncias sanitárias municipais e estaduais fiscalizam os estabelecimentos comerciais. A Anvisa realiza a fiscalização do comércio pela internet e apoia os estados em suas ações. Além da Anvisa, outros órgãos de fiscalização têm atuado para fiscalizar e aplicar sanções quando há o descumprimento da regulamentação.

A Anvisa reconhece a necessidade de enfrentar o mercado irregular e explica a importância das parcerias entre os órgãos. "Há ação contida no relatório técnico de AIR que prevê a realização e aprimoramento de parcerias com outros órgãos, (...) para que sejam realizados treinamentos, uso de inteligência para coibição do comércio eletrônico, campanhas educativas e outras medidas para a intensificação da fiscalização e a conscientização da população sobre os riscos associados a esses dispositivos eletrônicos”.