Empregadas domésticas sofrem com a precarização do mercado de trabalhoReprodução/Internet

Em abril, comemora-se os dez anos da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 72, conhecida PEC das Domésticas, que regulamentou uma série de direitos à categoria, tais como: seguro-desemprego, salário-família, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), adicional noturno e de viagem, além do pagamento de horas extras com 50% de acréscimo. A proposta do deputado Carlos Bezerra (MDB-MT) foram apresentada em 2012 e, durante sua tramitação, gerou acirrados debates no Congresso Nacional.
A PEC das Domésticas, aprovada em 2 de abril de 2013, representou um avanço em termos de legislação trabalhista para uma categoria profissional historicamente alijada das conquistas sociais. Afinal de contas, ela entrou em vigor sete décadas após a vigência da CLT e 25 anos depois da promulgação da Constituição de 1988. Apenas em 1972, com a Lei 5.859, as empregadas domésticas passaram a ter registro na Carteira de Trabalho.
A categoria abrange uma série de profissionais que atuam no ambiente doméstico. Além da empregada que cuida de uma casa, há funções como babá, jardineiro e caseiro, entre outras. Porém a maioria se enquadra no primeiro caso.
A pesquisadora Janaína Costa, mestre em História, estuda o universo dos empregados domésticos. Com a experiência de quem trabalhou como babá entre 2011 e 2018, ela lembra que esse tipo de atividade ainda carrega uma carga de discriminação e preconceito, pois “o trabalho doméstico surge com a escravidão e hoje se baseia na exploração da mão de obra, na maioria, de mulheres pobres e quase sempre negras”.
Avanços e retrocessos
Se a aprovação da PEC 72 indicava um período de melhoria das condições de trabalho das domésticas, o que se viu depois contrariou as expectativas. Em 2017, com a entrada em vigor da reforma trabalhista do governo Temer, o que se viu foi o drástica redução do número de mensalistas com carteira assinada.
De acordo com a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), relatora da PEC das Domésticas, as conquistas obtidas em 2013 foram retiradas de forma abrupta. Para a parlamentar, a precarização do vínculo trabalhista passou a ser a regra, com a maioria das mensalistas passando à condição de diarista.
“Em 2020, a renda média da categoria era de R$ 876. Esse valor é inferior ao salário mínimo vigente naquele ano, que era de R$ 1.045. Isso mostra como a reforma trabalhista do governo Temer impactou diretamente as domésticas e as colocou em uma condição ainda mais vulnerável”, destaca Benedita.
A pesquisadora Janaína destaca que a PEC, mesmo representando um avanço na época de sua aprovação, precisa ser aperfeiçoada.
“A legislação não contempla situações como as das diaristas ou das babás folguistas. Elas terminam sendo contratados como MEIs [Microempreendedor Individual] ou na base da informalidade”, alerta.
Mesmo as trabalhadoras que contam com registro em carteira estão privadas de alguns direitos concedidos às demais categorias profissionais. A concessão do seguro-desemprego é um caso exemplar. Enquanto o empregado de qualquer setor recebe cinco parcelas no valor de R$ 2.230,97, a doméstica acessa apenas três parcelas — e limitadas a um salário mínimo.
Nas situações de afastamento por questão de saúde, caberia ao INSS arcar com o pagamento do salário da doméstica desde o primeiro dia. Porém isso não ocorre na prática, devido à já conhecida burocracia do do órgão. No fim, a trabalhadora fica sem renda durante o período de licença médica.
Informalidade
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), três em cada quatro trabalhadores domésticos não têm carteira assinada. As estatísticas mostram que, em 2022, havia 5,8 milhões de brasileiros atuando no setor. Na condição de diaristas, muitas permanecem na informalidade.
Um levantamento da LCA Consultores, realizado a pedido da BBC Brasil, analisou a situação da categoria dez anos após a aprovação da PEC das Domésticas. Os dados apurados mostram uma realidade pouco animadora. Hoje, a categoria é formada em sua maioria por mulheres mais velhas, negras, chefes de família e que cada vez menos contribuem com a Previdência Social.
O crescimento da informalidade no setor também foi constatado por um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou o desempenho do setor entre a aprovação da PEC 72 e o fim do ano passado. O estudo apontou que em dezembro de 2013, o índice de informalidade na categoria era de 69%. No mesmo mês do ano passado, era de 75%.
Antônia Cândida da Silva, de 64 anos, encaixa-se no perfil identificado no levantamento da LCA Consultores. Diarista, trabalha de segunda a sexta-feira, das 7 às 19 horas. Aos sábados, dá expediente como babá folguista, das 6 às 18h. Com uma jornada semanal de 72 horas, consegue ganhar cerca de R$ 4 mil mensais. Pode parecer um rendimento acima da média, contudo ela é a chefe da família. Sustenta dois filhos menores, a filha desempregada e dois netos, paga aluguel e arca sozinha com as demais despesas da casa.
“Se você olhar apenas o dinheiro, pode até pensar que ganho bem fazendo faxina. Quantas pessoas hoje ganham um salário de R$ 4 mil? Mas ninguém faz a conta das horas. Tem dia que saio de casa às 5 da manhã e só volto às 10 da noite. No sábado sou folguista fixa de uma babá. Só tenho o domingo para cuidar da minha casa, ver os meus filhos e netos, resolver alguma coisa e descansar. Não tenho férias, 13º salário, fundo [FGTS]. Não sei o que é ter férias há mais de dez anos, desde que fui mandada embora do meu último emprego com carteira assinada. Não sobra dinheiro para eu pagar o INSS. O negócio é trabalhar e rezar para não ficar doente”, explica a diarista.
Se a situação de Antônia Cândida é difícil, há quem sonhe em ter uma agenda de faxinas tão concorrida. Almerinda Sales dos Santos, de 55 anos, viu sua renda cair drasticamente com a pandemia. Desde então, não conseguiu retomar o número de clientes que tinha até fevereiro de 2020. Atualmente, faz apenas quatro faxinas por semana. Ela não revela quanto ganha, mas diz que “dá apenas para comprar comida e pagar a luz”. O aluguel é dividido com a irmã, também diarista, e o filho, que trabalha como motoboy..
“Até aparecer a covid, eu tinha trabalho todo dia, conseguia me manter. Aí veio essa doença e perdi muita faxina. As pessoas tinham medo de colocar a gente na casa delas. Eu entendo esse medo; eu também tinha. Fiquei sem trabalho de um dia para o outro. O que ajudou um pouco foi o auxílio de R$ 600 naquela época. Mas depois, quando tudo voltou ao normal, poucas pessoas me chamaram de volta. Hoje passo muito aperto. Parece que o dinheiro sumiu, todo mundo está sem grana para pagar uma faxina”, lamenta.
A dificuldade enfrentada por Almerinda não é um caso isolado. Durante a pandemia, muitas pessoas adotaram o home office e passaram também a cuidar das tarefas da casa. Essa realidade não mudou com a volta ao trabalho presencial, já que em muitos casos houve queda de renda ou até mesmo situações de desemprego. Com isso, ocorreu o aumento da informalidade.
Quem estuda o mercado de trabalho das empregadas domésticas aponta algumas questões que precisam ser enfrentadas. A primeira delas diz respeito às convenções coletivas da categoria, iniciativa que cabe aos estados. São Paulo saiu na frente e celebra anualmente acordo que estabelece piso salarial e vantagens adicionais para os trabalhadores. Há ainda a regulamentação do trabalho das diaristas e folguistas, algo não previsto na PEC 72. Outra demanda importante se refere à maior oferta de vagas em creches e escolas de tempo integral, o que daria às domésticas com filhos menores tranquilidade para trabalhar.