Reconstruí um primeiro amor de carnaval. O tempo era o da inocência. As músicas diziam simplicidades, contavam histórias. Eu era ansioso com o aguardar da chegada dos dias da alegria.
Passeava pelas alamedas do passado, enquanto reconstruía alguns casarios há tempos desabitados. O tempo é desabitador de espaços. Mas há a memória que explica ao tempo o que quer eternizar.
Reconstruí um primeiro amor de carnaval. O tempo era o da inocência. As músicas diziam simplicidades, contavam histórias. Eu era ansioso com o aguardar da chegada dos dias da alegria. Era Angélica a menina que eu via. Menino era, também, eu.
Havia um bloco chamado "Bloco da raia", não sei a razão do nome, sei até cantarolar a canção que repetíamos, adentrando as ruas da pequena cidade. Eu era medo e vontade. No bloco, nos olhamos apenas. Angélica era mais abridora de espaços do que eu. Ela tocou no meu rosto, já no fim daquela folia da tarde, e eu corei. E eu senti o que sentem os que desejam. E eu saí sem avisos com medo que ela percebesse. Meu Deus, como eu sabia nada!
À noite, nos vimos novamente. Eu havia experimentado todas as roupas possíveis, imaginando o que a haveria de agradar. O cabelo mudou de penteado tantas vezes que minha mãe desentendia tamanha movimentação.
À noite, era no clube. No único clube da cidade. Era o primeiro ano que eu poderia entrar, já tinha idade. E foi ela quem aliviou as minhas inventadas rejeições e me deu o primeiro beijo. O beijo que me encorajou a dançar e a ir de um lado a outro de mãos dadas. O beijo que trocou o sono pelo sorriso. O beijo explicador da necessidade humana do sentir-se amado.
Angélica ficou em mim por um tempo, depois o tempo me levou a outra cidade, depois o tempo apresentou outros beijos, outros desejos, outras despedidas.
Houve um outro carnaval, quando conheci as escolas de samba. Tão diferentes do "Bloco da raia". Raiou em mim um outro tempo. Meus olhos desacreditavam do espetáculo das escolas contando histórias na avenida. Do som das baterias. Da voz dos puxadores. Do dizer dos corpos dos sambistas. Foi um carnaval do encantamento. Era como um sair da caverna pela primeira vez. E, pela primeira vez, ver que o mundo era maior do que a minha cidade. Foi um carnaval em que, também, experimentei o beijo, o desejo, o encontro. Fiquei dias dizendo aos meus amigos da pequena cidade o que era a avenida do samba. Minha mãe sorria das minhas alegrias. E dizia quase que como em uma oração: "Graças a Deus esse menino nasceu para ser feliz".
Em um outro carnaval, já morando na grande cidade, levei minha mãe para ver os desfiles. Os meus olhos olhavam os seus olhos. Meu pai havia falecido, há não muito, e eu queria demitir a tristeza que vivia em minha mãe, já que naquele ano, seu aniversário também caía no carnaval. Ela demorou a aceitar o convite, justificou que dormia cedo, que não sabia dançar, que estava velha. Eu sorri dos seus argumentos e decidi no amor: "Nós vamos, mãe, o seu menino que nasceu para ser feliz quer te dar essa felicidade".
Nas alamedas do passado de tantos carnavais, é este o que mais faz saudade em mim. Foi um carnaval em que o único desejo era o de ver minha mãe sorrindo. Eu consegui o melhor lugar possível. No início, fui explicando o que sabia das escolas. Fomos aprendendo as músicas. Ela dançava timidamente e eu a via como a melhor bailarina do mundo. Minha mãe gostava das palavras. E as arrumava como em um desfile usando cada uma delas para dizer uma história. Nos meses que se passaram depois daquele carnaval, ela ainda contava às suas conhecidas todas cada detalhe daqueles dias.
O carnaval prossegue e minha mãe prossegue apenas em mim. Na terça de carnaval, daqui a alguns dias, será seu aniversário. Decidi, este ano, descansar de tantos cansaços e ficar em casa, escrevendo esperanças.
Em mim, ainda mora o menino que nasceu para ser feliz. A felicidade não depende do carnaval ou dos beijos que nos beijam ou dos "sins" que recebemos e que aliviam nossas carências. A felicidade não depende nem dos "nãos", nem quando são injustos. A felicidade depende, apenas, da memória, da memória que guarda e que limpa, da memória que contrata e que demite, da memória que reacende o que alguns tentam apagar, mas não conseguem, a memória de quem somos.
Quando lembro daquele carnaval com minha mãe, lembro de um amor que amor nenhum foi capaz de suplantar. Perdoem-me os amores tantos que poetizaram os meus dias, mas os dias mais felizes de minha vida foram os dias em que eu tinha o direito de descansar as dores ou as alegrias no seu colo, no colo de minha mãe.
Quando escrevo sobre ela, meus olhos aceitam as lágrimas, presentes da alma para alguns alívios. Mas não pensem que estou triste, sua oração ainda faz verdade em mim: "Graças a Deus esse menino nasceu para ser feliz".
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.