Vim testemunhar. Não vim a trabalho. Também não pelo lazer. Vim porque precisava vir.
Tudo calmo, nota-se um clima melancólico inaparente. O país sofre em silêncio, mas dá para notar, há algo muito diferente. Perdeu-se uma parte da ingenuidade, ainda que a garra – quero crer – ainda seja maior do que a melancolia. É como se as pessoas ficassem ininterruptamente repetindo um refrão sem a voz, e como a matriarca Channa, apenas movimentando os lábios:
- Precisamos recuperar a fé, a única, talvez a última razão da nossa sobrevivência.
Rogar silenciosamente é uma prova de que a relação com o transcendente é pessoal. Aos que também vierem visitar Israel aconselho que reparem nos detalhes, está tudo igual; só que completamente diferente. Isso é, estão todos vivendo suas vidas como se nada tivesse acontecido. Desde Freud sabemos que a palavra trieb (numa tradução literal, trauma, mas talvez a melhor acepção mesmo seja "ferida") foi ressignificada e redescoberta. Uma ferida não se apaga, sempre haverá um resquício, uma memória cicatricial. E assim como no aforismo de Heráclito, de que nunca se entra no mesmo rio duas vezes, a tradição hipócratica deduziu que não existe restitutio ad integrum (recuperação completa em tradução livre), vale dizer, o órgão afetado, mesmo aparentemente curado, já não é mais o mesmo. Portanto, o processo do holocausto, que já mostrava sinais de uma cicatrização relativa, foi brutalmente reativado. Voltou ao estágio de lesão exposta, aberta e mostrando um estado de vulnerabilidade que transcende a tragédia do 07 de outubro e seus desdobramentos imediatos.
Apesar das circunstâncias adversas, no dia a dia as rezas diárias não foram afetadas, nem o ritmo de trabalho da maioria. A despeito das crises decorrentes de um país mobilizado por uma guerra não pedida, nem desejada, o que se detecta é a velha tática da imperturbabilidade estoica. Gritos de saudação, gente protestando pelos ainda sequestrados, uma paisagem subliminar de desconforto que não pode ser demonstrado, sob pena de expor a gangrena visível. O mundo, viciado em erros antigos, ao verificar que a inexpugnabilidade tinha uma abertura para o imprevisível, destravou em bloco as pautas reprimidas. Não é apenas o ódio aos judeus. Esse mitologema fica facilmente desmontado quando se ouvem slogans que correm fácil nas gargantas daqueles que, sentindo-se invulneráveis atrás do anonimato proporcionado pelo comportamento de massa, apoiam atos perversos, justificando o terror e pedindo genocídio enquanto usam o álibi de acusar o outro pelo que é o seu próprio indisfarçável (e nem tão inconfessável) desejo. Repercutem os slogans contra tudo que o Ocidente representa, incluindo comprometendo valores como a democracia representativa, liberdade de expressão e direitos das minorias. Sonham com um racismo que tomam como demanda iluminista. Trata-se de um verdadeiro paradoxo, e ele é tão absoluto que, tal qual nos obstáculos epistemológicos da ciência, somente gerações adiante este fenômeno poderá ser analisado com algum rigor. Sem nenhuma garantia de que seja compreendido. O paradoxo central é que a revolução que pregam, se levarmos as reinvindicações às últimas consequências, nos levaria a um estado de regressão civilizatória, culminando em anomia: o reino da ausência de leis e abolição de regras de organização.
Supõe-se ser um dever das democracias proteger seus cidadãos de grupos intolerantes e fanáticos. Na atual crise verifica-se o oposto, é notável verificar a exagerada permissividade com o qual as sociedades ocidentais têm tolerado bullyings, ataques, contra instituições e indivíduos, particularmente judeus, incluindo a nova modalidade de terror: destruição do patrimônio artístico. Sim, é bem mais do que vandalismo. Está para bem além do direito de se manifestar. Estamos falando de assédio, ameaça e destruição de obras por militantes sob as mais variadas justificativas. Em Cambridge, no Trinity College, a pintura de Lord Ballfour foi desfigurada a navalhadas por uma arterrorista antissemita. A polícia metropolitana inglesa precisou formar um cordão de isolamento para proteger de predadores que investiam com martelos contra a estátua do velho Winston Churchill - em plena área nobre da London City - numa marcha que enaltecia abertamente uma agremiação terrorista. Há alguma coisa surreal acontecendo e não sabemos bem como desfiar o nó de uma patologia coletiva. Difícil saber onde começa a objeção racional e onde está uma pulsão atávica que clama por determinar um culpado sem que haja processo algum. O desejo de destruir o passado e reconfigurar a história em moldes ideológicos pessoais diz muito de como anda o mundo.
Em Israel, portanto, a normalidade que tem sido confundida com o desgastado conceito de resiliência é uma espécie de impossibilidade. É preciso recusar não apenas a bastardização do termo resiliência, mas a própria ideia de que se trata de uma virtude. Recuso-a, porque é mais honesto acusar o golpe. É mais saudável viver o luto do que superá-lo sem a devida vivência. Impossibilidade de mergulhar na dor num país que, de forma surpreendente, não tem a unidade que um dia imaginou ter. Ora, diriam, nenhum país tem. Nem terá. Mas aqui havia o tal sonho, que pairava sobre e acima das divisões étnicas e culturais. Há um pioneiro que precisa conquistar, mas há um cujo leitmotiv é uma ideia. Era esse o espírito, como meu amigo Leonardo me contava sobre os primeiros que aqui estiveram. Até há pouco havia a ilusão de que a comunhão das pessoas se daria através de uma identidade nacional, mas há uma evidente confusão entre essa e a identidade religiosa. E a fé? Onde está o lugar da fé?
Qualquer observador honesto e atento que aqui desembarque descartaria imediatamente a acusação de apartheid. Há uma pluralidade saudável nas ruas onde todos vivem suas realidades individuais, exatamente como os habitantes da maioria das nações ocidentais. As bandeiras com a estela de David encontram-se justapostas nas entradas de casas, apartamentos e lugares públicos. Há orgulho de pertencimento nas casas árabes, drusas, beduínas, cristãs, muçulmanas e judaicas. Há uma sensação subjetiva de que as forças coletivas mais racionais e comprometidas com o diálogo poderiam se agrupar em uma direção de valores comuns mínimos, mas ela não consegue chegar ao consenso final no qual este objetivo chegaria a ser estabelecido.
Há uma enorme injustiça contra Israel e seus habitantes e não é porque eles estejam acima da critica. Nem mesmo porque trata-se de uma minoria bem-sucedida, já que no povo judeu não há, nunca houve, homogeneidade, nem étnica, tampouco econômica ou social. O mundo trouxe, com a ajuda das redes antissociais, uma nova justificativa, um álibi racionalizado para que as massas se sentissem enfim livres para declarar, sem nenhuma vigilância do superego, sua aversão aos judeus. Agora, estilizada na neolinguagem como "sionismo", ou ao que ele representa. As máscaras caíram, à esquerda e à direita (que apenas usava uma base cor de pele).
O fato é que, sem a ajuda da sociedade civil, das instituições governamentais e não governamentais, as comunidades judaicas não podem fazer muito a não ser lamentar a conivência de uma maioria - que atônita passa a mensagem de omissa - com o reavivamento de modernos libelos de sangue e acusações generalizantes e absurdas. Algumas delas propagadas por ninguém menos do que o chefe do executivo brasileiro. Sua fala irresponsável tem tido direta repercussão nos níveis de judeofobia, culminando recentemente num lamentável episódio de assédio, bullying e ostentação de símbolos neonazistas num famoso colégio de São Paulo.
No fundo perpetradores e seus apoiadores sabem que, apesar da terrível tragédia do mais do que documentado uso da população civil de Gaza como escudo humano para que os jihadistas obtenham conquistas políticas, esse não é o verdadeiro motor do seu ódio. Nem mesmo o fanatismo e a fixação na pulsão de morte explicam o atual impasse.
O motor do ódio está enraizado na ideia de tomar a paz como um atributo externo. A paz nasce de um exaustivo desejo de interlocução e coexistência. Nenhuma paz vem ou impõe-se de fora. O particularmente delicado da presente situação é que causas externas demais. No lugar de um pragmatismo há uma acefalia generalizada, numa perigosa pulverização de interesses interconectados. O delicado momento passa por gerações que não conseguem compreender que há uma guerra invisível, de sutileza macabra, muito mais destrutiva não apenas para Israel, mas para todo o mundo.
Compreender isso, o que parece impossível para as governanças do nosso tempo, é fundamental para enxergar a realidade. E, neste caso, a cegueira ainda parece ser uma escolha. Qualquer plano de paz requer fusão de horizontes prévia, e o mais importante, a aceitação de que nada disso se resolverá de uma vez por todas, mas aos poucos, em micro acordos, entendimentos entre sujeitos, avanços e retrocessos no dia a dia. Como afirmava Jonathan Sacks, as nossas perspectivas estão limitadas por nossas expectativas.
Baixem a bola, quem sabe não aparece um gol na base do chutão?
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