Estacionei todos os afazeres do dia e fui para o sepultamento de Aristides. A cidade pequena não é tão distante da cidade grande em que, há tempos, vivo.
Recebi a notícia com serenidade e alguma lamentação. Há não muito, havia falado com Aristides sobre a proximidade do seu aniversário de 100 anos. Não chegou a completar. Despediu-se da vida poucos meses antes. Eu preparava uma surpresa. Simples como sua vida, como seus ensinamentos.
A primeira lembrança forte que tenho de Aristides foi na procissão de dor da morte de seu único filho, atropelado por um trem. Fui de mãos dadas com o meu pai e chorei o que nem sabia. Meu pai abraçou Aristides. Eram amigos. Meu pai tinha uma loja de tecidos e roupas, e Aristides uma loja de sapatos. O homem que vestia o caminhar das pessoas agradeceu o abraço e tocou no meu rosto com tanta delicadeza que pareceu querer consolar a mim, tão pequeno nas compreensões da vida.
O tempo foi passando e eu gostava de ir à loja do Aristides perto do horário do café. A casa ficava ao fundo e Amélia, sua mulher, preparava uns biscoitos de queijo que comíamos enquanto conversávamos a vida.
Eu era estudante de filosofia, quando ouvi dele a expressão "O Sol é muito maior do que parece". Enquanto bebia, aos poucos, o café fumegante pensando no Sol, ele emendou, "É para o alto que sobe a fumaça do que é aquecido". Outras palavras foram ditas em outras conversas.
Invariavelmente, já não morando na pequena cidade, eu o visitava. Gostava dos seus preceitos. Já com a loja vendida, revezava a vida entre as orações na Igreja, o banco da praça e a poltrona confortável na sala, rodeada de livros.
Lembro a quentura das recentes eleições. Conversamos sobre famílias divididas, sobre ódios acumulados. E ele, docemente, "Tudo passa, filho, tudo passa".
Tenho algumas cartas dele que coleciono como adornos da minha alma. A cada novo livro meu, uma carta com os seus comentários. Em momentos de conquistas ou de dor, eu sabia que, em pouco tempo, o correio haveria de entregar seus dizeres.
Releio, vez em quando, a carta que Aristides escreveu, quando da morte de minha mãe. Ele ficou comigo no velório. Caminhou ao meu lado no mesmo cemitério em que agora ele se une à terra de onde veio. Mãos já envelhecidas encontraram as minhas, fortalecimentos para a compreensão da dor da orfandade.
"Filho, agradeça, simplesmente agradeça o ventre que te gerou". Eu concordei com a cabeça sem impedir o choro. "Sua mãe era só felicidades, quando falava de você".
Foi nesse dia que eu repeti a ele a frase que ele disse sobre o Sol. "O Sol é de fato muito maior do que parece". O mundo é muito maior do que parece. A vida é muito maior do que parece. É para o alto que vamos, aquecidos por uma vida de amor. É para o alto que vamos, como a fumaça do café.
A mulher de Aristides, Amélia, ficou ao meu lado no sepultamento, "Ele te amava como um filho". Choramos juntos, sem arroubos, com delicadeza. "Fizemos oitenta anos de casados, éramos jovens, sabe, e nem percebemos o tempo escapulindo". Eu disse "Sei" com o sorriso dos que tentam saber que não são os prazeres, as honras, o dinheiro que nos fazem saber que "O Sol é maior do que parece".
O que me parece é que nos perdemos, quando perdemos as raízes que nos fincam no infinito. O que é finito é para ser também vivido sabendo que é finito. O infinito é só o Sol ou sua metáfora. São Francisco via o fogo e dizia que o fogo faz como o esplendor do sol, não expulsa a noite, mas a ilumina. As noites da minha vida foram muitas. Eu nunca tive o poder de expulsá-las. Precisei vivê-las e até aprender com elas. Mas nunca deixei de acreditar, mesmo nas noites, na existência do Sol, mesmo nas noites, no amanhecer.
Do cemitério, fomos à casa de Amélia. Vi a antiga poltrona e fiquei algum tempo com ela. Comemos o biscoito de queijo, agora feito por uma sobrinha-neta, Ana Clara. Partidas e chegadas. Sementes que florescem, que perfumam, que despedem.
Comemos, no despedir daquele dia, a saudade. O Sol de Aristides agora não mais conhece as noites...