Júlia Alexim: Da 'mulher honesta' às leis com nome de mulher
Júlia Alexim é advogada criminal sócia no Stamato, Saboya & Rocha Advogados, especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. - Divulgação
Júlia Alexim é advogada criminal sócia no Stamato, Saboya & Rocha Advogados, especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.Divulgação
As mulheres sempre receberam algum tratamento especial pelo Direito Penal. Felizmente, após décadas de luta feminista, esse estatuto especial conferido às mulheres vem se transformando, e as normas e a justiça penal vêm se dedicando mais a protegê-las e menos a julgá-las e/ou puni-las. Essa mudança é recente e ainda faltam avanços para que as alterações no Direito tenham efetivos reflexos nas vidas das mulheres.
O Código Penal Brasileiro, em sua redação original, previa alguns crimes que tinham como objetivo proteger não as mulheres em geral, mas tão somente as “mulheres honestas”. O artigo 219 definia como crime “raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A condição de mulher honesta era uma elementar do tipo penal: uma condição que precisa obrigatoriamente estar presente para que o fato seja crime. Ou seja, se a mulher não fosse “honesta” a conduta não era considerada criminosa, mesmo se praticada com violência, grave ameaça ou fraude. Nelson Hungria, considerado um dos mais importantes doutrinadores do Direito Penal no Brasil, ensinava que mulher honesta era aquela “que ainda não rompeu com o mínimo de decência exigida pelos bons costumes”. Desonesta, segundo ele, era “a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação”.
O Código refletia a ideia de que o comportamento feminino deve ser controlado e cabe ao Estado – ou melhor, aos homens de Estado - dizer como as mulheres devem viver para que sejam destinatárias de proteção jurídica. Esse entendimento também impregnava os tribunais. Daí, por exemplo, homens adultos acusados de estupro de vulnerável terem sido absolvidos quando a vítima era uma prostituta. Meninas exploradas para fins sexuais e violentadas sequer eram consideradas vítimas de crime.
Parece que tudo isso é muito antigo e que, agora, a lei favorece demais as mulheres, privilegiadas pelo Direito Penal. Mas, tenhamos em vista que o Código Penal só foi alterado e deixou de conter a expressão “mulher honesta” em 2009 e ao longo da última década ainda é possível encontrar decisões em que o comportamento e vida pregressa da vítima foram considerados para afastar a condenação por estupro de vulnerável de homens que praticaram atos sexuais com meninas menores de 14 anos. Até hoje, o Código Penal Militar tipifica como crime “raptar mulher honesta, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso, em lugar de efetivas operações militares”.
Foram séculos de violência contra a mulher até que algumas leis recentes ganhassem nome de mulher. A Lei Maria da Penha, de 2006, mesmo após a sua aprovação, não diminuiu os casos de violência contra a mulher e as que denunciam ainda enfrentam um árduo percurso até verem punidos seus agressores. Só em 2021 foi aprovada a Lei Mariana Ferrer. Ela, quando ouvida na condição de vítima de possível crime de estupro em audiência, foi agressivamente questionada pelo advogado do réu que mostrou fotos dela do instagram de body e disse que ela fazia “showzinho” para ganhar seguidores. A audiência foi em novembro de 2020.
É bem viva a ideia de que as mulheres só são dignas de respeito e proteção quando se submetem a um conjunto de comportamento estabelecido por homens que requerem que sejam submissas, recatadas e dóceis. Basta ver as centenas de influenciadores digitais que angariam milhares de seguidores com vídeos afirmando que mulheres com muitos parceiros não prestam, com mais de 30 anos não servem para casar porque já têm muita experiência e as que não são submissas, calmas e frágeis destroem relacionamentos. As mulheres não são privilegiadas por receberem proteção da lei, conquistaram esse amparo porque são sistematicamente vítimas de violência.
Quando o direito penal é convocado é porque a sociedade falhou e o dano já está feito. E se não existe a Lei Mário da Penha ou a Lei Mariano Ferrer, é porque os Mários e Marianos são os privilegiados.
* Júlia Alexim é advogada criminal sócia no Stamato, Saboya & Rocha Advogados, especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.
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