Gosto do nome de minha vizinha, Generosa. Gosto da minha vizinha. Generosa é mulher de vida sofrida, como eu.
Eu vim sozinha enfrentar o mundo. Saí de uma casa de violências e vim respirar a paz. Minha mãe havia falecido, há pouco, e o homem com quem ela se casou, desde sempre, achou que eu era dele também. Tive tristeza de dizer à minha mãe. Cheguei a achar que ela sabia. Os olhares que ele deitava em mim eram sem disfarces. Eu tinha 15 anos e tinha medo.
Meu pai faleceu um pouco antes do meu nascer. Minha mãe passou anos conversando com a solidão. E foi, justamente, aceitar Nivaldo. Foram 3 anos em que eu me esquivava de encontros e que eu jurava a mim mesma partir. Minha mãe adoeceu, quando eu ensaiava a despedida. Tive que ficar perto. E longe dele.
Depois do sepultamento, chorei todas as orfandades e vim para a grande cidade. Ele fez de tudo para impedir. Não sou mulher de autorizar impedimentos. Aqui, conheci Generosa.
Se meu sofrimento doeu, imaginem o de Generosa. Espancada pelo pai e pelo padrasto. Violentada pelo padrasto e desacreditada da própria mãe. Foi à polícia. Fez o certo. E partiu. As circunstâncias ela não decidiu. As atitudes, sim.
A mãe não perdoou a filha. A prisão do companheiro doeu nela. Alguns anos depois, o homem foi solto e foi Generosa quem salvou a mãe dos espancamentos. Aí o perdão e o intento de reescrever os ontens. Não é possível. Ou é possível no partir.
Trouxe a mãe para morar com ela e com Hélio, seu marido. Os dois filhos amam a avó, e Generosa reinventou os seus passados. Soube de todas essas histórias, quando contei a minha. Ficamos amigas. Aprendi sobre as atitudes com ela. Não decidimos a família em que nascemos, nem a cor da nossa pele, nem o nosso gênero e sequer o tempo do nosso existir. A língua que aprendemos é a que nos ensinaram. É a filha das circunstâncias da nossa cultura. A nossa cultura pode até relativizar alguns erros, mas nós podemos ir além. Ninguém nasceu para aceitar espancamentos nem abusos. Os olhadores outros só veem uma parte do que somos. Talvez não precisem ver tudo. Talvez seja melhor que, uma parte, revelemos apenas àqueles que têm olhos de olhar, ouvidos de ouvir, coração de sentir.
Quem passa por situações de violência precisa encontrar vínculos para prosseguir acreditando. Hoje, vivo em paz, embora visite com alguma frequência as minhas cicatrizes. Já tive alguns relacionamentos, mas ainda me faltam as atitudes de Generosa. Eu desenho desconfianças em textos que poderiam registrar escrituras de histórias bonitas. Tenho medo da entrega e do que vem depois. Desacredito das promessas e, quando começo a sentir que estou cedendo, tranco as portas de mim mesma.
Generosa me diz que eu respeite meu tempo. O amor é vento que não venta uma vez só. Que venta leve para dar suavidade sem desmanchar quem somos. Se vem como tempestade, desconfie, diz ela. Se vem sem vir, com as fraquezas dos indecisos, aguarde outro sopro. Mas trancar as portas não é a melhor decisão para quem gosta do existir.
O sorriso de Generosa é tão ensinador que presto atenção às suas redenções. As circunstâncias da minha vida eu não decidi. Não mandei nas despedidas. Não autorizei meu pai a partir sem me conhecer nem a minha mãe a conhecer quem não devia. Mas as atitudes eu ainda quero aprender. Eu ainda hei de dizer a mim mesma: eles já não são, eu ainda posso ser.