Isabella e Yasmin foram alunas do projeto Na Ponta dos Pés e hoje estão no Theatro MunicipalCleber Mendes/ Agência O Dia

Rio - Por não ter mais condições de pagar seu curso de dança, Tuany Nascimento, de 29 anos, fundadora do projeto Na Ponta dos Pés, passou a treinar sozinha em uma quadra do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio. O movimento chamou atenção de outras jovens da região, que logo se juntaram a ela. Tudo começou com 13 meninas dançando e logo o número aumentou para 50. Por conta da violência urbana, o grupo precisou de um espaço mais seguro, onde pudessem se abrigar em dias de operação na comunidade. Dessa maneira, a estrutura do projeto nasceu em um terreno doado pela mãe de Tuany. Não fosse pela iniciativa, Isabella Fernandes Moyses, 9, e Yasmin Santos Machado, 10, não estariam hoje no corpo de baile do Theatro Municipal do Rio, um dos mais prestigiados do país.


Yasmin dança balé desde os 7 anos. Com aulas às segundas, quartas e sextas, o calendário da menina era agitado e seu dia dividido em treinos pela manhã e escola à tarde. "Ela entrou no projeto há três anos, na época da pandemia. Minha filha sempre foi apaixonada pela dança e, como eu tinha dois empregos na época, não tinha muito tempo para ficar com ela. Minha irmã começou a levá-la e me falou que a Yasmin tinha muito jeito e poderia tentar algumas audições", disse a técnica de enfermagem Fabiana Santos Machado, 45, mãe da menina.

Ao perceber o talento de Yasmin, as professoras do projeto sugeriram que ela fizesse a prova para a Escola de Teatro Bolshoi, na Tijuca, Zona Norte, e o exame do Theatro Municipal, no Centro do Rio. Na ocasião, ela chegou a passar em todas as etapas do Bolshoi, mas na última fase não conseguiu ser aprovada. "Inscreveram-na para o Municipal e deu certo. Foram várias meninas, mas a Yasmin foi a única que passou naquele dia. Ela está apaixonada, já pensa em seguir carreira profissional da área, mas também não quer deixar os estudos de lado. Minha filha é muito disciplinada", completou Fabiana.

A rotina mudou um pouco, mas a empolgação de ter alcançado um sonho só aumentou a paixão da menina pela dança. Agora, de segunda à sexta, ela tem aula no Theatro Municipal e estuda à tarde. Para Fabiana, que sempre morou na comunidade, a aprovação foi o maior orgulho da família. "Eu fico muito feliz de ver a minha filha realizar um sonho. Que mãe não fica? A Yasmin sempre foi muito focada, nunca consegue ficar sem fazer nada, sempre arranja alguma coisa, está sempre treinando. Desde pequena sempre gostou de dançar todo tipo de música".
Da ginástica rítmica ao ballet
Aos 3 aninhos, Isabella entrou na ginástica rítmica e logo migrou para o balé. Um dos motivos para fazer a dança não era necessariamente seguir uma carreira profissional, mas sim por causa da sua postura, de acordo com a sua mãe, Rana de Lima Fernandes, 32. "Era algo extracurricular mesmo, mas aí ela começou a gostar muito e quando passou a treinar com as professoras do projeto, veio a vontade de ser bailarina profissional. Foi uma delas que convidou a Isabella para fazer audição para o Theatro Municipal e, claro, minha filha topou de primeira".

Para conseguir passar na prova, Isabella teve que treinar e se dedicar ainda mais. Não havia feriado, fim de semana ou descanso, mas o resultado valeu a pena. "Ela conseguiu passar na audição e agora está adorando a nova rotina. É muita correria, mas os olhos dela brilham quando entra naquele teatro. A Isabella me ensinou que quando temos um objetivo e ficamos nele, nada é impossível. Quando ela coloca algo na cabeça, ninguém tira". Atualmente, a menina concilia também as aulas de balé pela manhã com a escola à tarde e, segundo Rana, mesmo com um dia cheio, ela tenta sempre dar o seu melhor em todas as matérias.

"Eu não conhecia, nem sabia que existia um tipo de escola de dança assim. Para mim, as aulas de ballet eram só através de projeto ou pagando curso mesmo, que são caros. Achava que as meninas que iam para um lugar como esse eram por causa de algum treinador, tipo jogador de futebol, alguém que conhece alguém, um olheiro. Eu nunca pensei que a Isabella fosse para um lugar assim. Enxergá-la hoje como profissional é algo incrível", salientou Rana.

Por causa de um passeio cultural que o projeto Na Ponta dos Pés organizou, levando as alunas para conhecerem o Theatro Municipal, que Isabella se encantou ainda mais com o mundo da dança. Por ter mais dois filhos além dela, Rana disse que se não fosse o programa ajudando com as aulas e passeios culturais, ela não poderia arcar com um curso de dança. "Esse programa foi fundamental na nossa vida. Esse mundo que a minha filha está inserida é diferente para toda a nossa família e amigos. As pessoas que convivemos também não conhecem, acham diferente, legal. Realmente, é algo que não temos acesso".

Para Rana, mesmo a cultura sendo para todos, há uma dificuldade em transitar por esse meio. "A gente acaba tendo acesso ao que está mais próximo da gente. Então, sem o projeto, não teríamos acesso nem condições de ajudá-la nessa área. Até porque também não temos conhecimento ou hábito de frequentar um lugar como esse. Ela hoje está em um espaço que a família nunca nem pisou".

Isabela contou que o que mais gosta no ballet é o jeito de dançar. Antes, ela queria ser tecladista, mas depois que se aprofundou no universo da dança, quer ser bailarina. "Quando eu passei na prova do Theatro Municipal eu chorei muito, mas foi de felicidade. Já fiz várias amizades na nova turma e me dá muita alegria poder ir para aquele lugar todos os dias".

A professora do projeto, Anny Ester Tomaz de Oliveira, 20, está na iniciativa desde a primeira aula, há 10 anos. Com o tempo, o programa foi crescendo e atraindo ainda mais crianças e adolescentes. Foi quando, segundo ela, começaram a enxergar aquilo como um projeto social. "Antes, no início de tudo, a Tuany começou a dar aula do jeito que dava. Mas como as aulas foram atraindo ainda mais gente, o único espaço que tínhamos era o campo de futebol da comunidade. No entanto, por causa das operações policiais, inúmeras vezes já tivemos que ficar deitadas na quadra por causa de tiro. Mas o projeto seguiu e tivemos ajuda de muita gente, até mesmo do Luciano Huck, que nos ajudou com algumas doações. Há menos de três anos a nossa sala de balé foi concluída".

Antes do espaço ser o que ele é hoje, com estrutura e equipamentos, ele precisou resistir por sete anos sem lugar fixo ou com apenas uma sala que não comportava todos os alunos. Com o sucesso do programa, Ester conseguiu ajudar ainda mais no desenvolvimento de suas alunas quando teve a ideia de inscrever Yasmin e Isabella nas provas do Bolshoi e do Theatro Municipal. "Ano retrasado tivemos os primeiros contatos com as audições, inscrevendo seis meninas. A nossa primeira aluna que passou foi a Yasmin, que inclusive foi uma das finalistas do Bolshoi. Ano passado fizemos a mesma coisa, preparamos 12 meninas, todas em níveis diferentes, mas no mesmo ritmo de treino e tivemos a aprovação da Isabella. A gente sempre tenta dar um suporte para as famílias das meninas que passaram, conversando com elas, até porque são muito novinhas, rola o medo de perder as amigas que conheceu no projeto, mas explicamos que vamos sempre estar aqui".

Com 150 meninas no balé, Ester declarou que os professores sempre tentam mostrar que não é fácil seguir a carreira e é necessário dedicação para que consigam ser aprovadas nesses espaços renomados. "Deixamos aberto que se elas quiserem, temos aulas intensivas para prepará-las para as audições. Nessas últimas provas, da Isabella e da Yasmin, muitas conseguiram treinar direto, passavam as férias ensaiando, com aulas e até mesmo treino em casa. Era de segunda a segunda se fosse necessário. Mas foi uma felicidade quando tivemos as primeiras aprovações".

Ester disse ainda que durante a pandemia o projeto não parou e entregou cestas básicas e máscaras para as famílias do Alemão. "As aulas também não pararam, além disso, estávamos em obras, mas continuamos a todo vapor. Nós sempre buscamos dar suporte para a comunidade. Com a sala, o nosso maior objetivo é expandir o meio artístico, começar a levar mais meninas para as audições. Hoje temos toda uma estrutura para dar suporte. Não queremos só formar bailarinas, mas sim caráter, falar para eles que eles podem ser o que quiserem".
O projeto

Para a fundadora, Tuany Nascimento, o projeto na Ponta dos Pés não foi criado a partir de uma ideia, mas sim da necessidade de revitalizar a sua própria dança. Em contrapartida, ele entrega um pouco de arte para as meninas de sua comunidade. "O projeto começa na minha necessidade de continuar dançando. Em 2012 eu decidi parar por causa da minha condição financeira, por não conseguir bancar o curso de dança, competição, uniforme, entre outros. Eu estava com 17, quase 18 anos na época e já tinha terminado o ensino médio, então ficou na minha cabeça entrar para uma faculdade, ajudar em casa e ali já comecei a ver o quão difícil é viver do balé clássico".

Ela então começou a trabalhar como aprendiz e, no contraturno, ela ia para a única quadra até hoje que existe no Morro do Adeus, dentro do Complexo do Alemão. "Ali eu treinava balé sozinha. Aquilo chamou a atenção das meninas da minha favela, que começaram a me ver ali e ficaram curiosas. Sempre parava uma ou outra e perguntava como fazia aquilo. Foi aí que decidi treinar com elas. Comecei com sete meninas na quadra, trocava tudo, ensinava o que eu sabia e um mês depois já eram 50. Não houve nem divulgação, marketing, nada, só o boca a boca. Quando vi que estava tomando uma proporção maior, entendi que aquilo era um projeto social. Até então, era só uma troca".

Com tudo acontecendo, Tuany percebeu que precisava migrar para um espaço físico que pudesse ser seguro e dar mais estrutura para as suas alunas. Em 2015 o grupo começou a buscar recurso financeiro para ter um lugar fixo, foi quando ela recebeu um dos maiores presentes de sua vida: um terreno de sua mãe. "Ela comprou um terreno para construir a sua casa própria, que era um sonho, mas ela me doou o lugar para construir a sede do projeto. Minha mãe mora de aluguel até hoje porque abriu mão para me ajudar. Ela confiou no meu sonho e chegou junto".

No espaço que seria a casa de sua mãe, Tuany conseguiu o primeiro aporte com um crowdfunding e montou o primeiro andar do projeto. "Depois tivemos contato com Luciano Huck, que doou vários materiais que faltavam, como espelho e outras coisas de balé. Enfim, assim começamos e iniciamos uma parte mais administrativa da organização também. Tudo começou a se construir junto. Eu comecei a aprender muito sobre o terceiro setor, a parte organizacional e a estrutura da sede foi nascendo ao mesmo tempo".

Hoje, o espaço conta com mais um andar e aulas de teatro, artes e kickboxing. Além disso, o projeto também oferece cursos profissionalizantes de inglês, fotografia e manicure, por exemplo. "É muito importante para a gente ajudar e contribuir. Ficamos muito felizes também com as nossas primeiras alunas aprovadas no Theatro Municipal. Para mim, isso tudo me faz entender que todo o caminho que percorri fez sentido. Tudo que eu acreditei realmente é real. É possível sim uma menina da favela ter acesso a coisas que são ditas que não são para ela".

Para Tuany, é uma autorrealização ver as suas alunas conseguindo atingir seus sonhos. "Eu penso que é possível meninas como eu, de onde venho, ocupar lugares grandes. Nós ainda fazemos muito pouco. Conseguimos que Yasmin e Isabella fossem aprovadas, mas não conseguimos dar um auxílio financeiro sempre para que as mães possam levá-las. Sabemos que há um deslocamento grande do Complexo para o Centro da cidade, então é importante um auxílio. Não queremos que elas tenham qualquer dificuldade", finaliza.