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Leonardo Boff: 'Devemos respeitar a forma como Deus quis se aproximar de nós'
Em seu novo livro, o teólogo, filósofo e escritor se volta para o Jesus histórico, o homem, e sua mensagem original; e avalia os 10 anos do pontificado de Francisco
Rio - Um dos maiores intelectuais do país, o teólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff, 84 anos, acaba de lançar seu novo livro 'A amorosidade do Deus-Abba e Jesus de Nazaré' (Editora Vozes). Autor de mais de 100 livros, traduzidos em praticamente todas as línguas modernas, Boff se volta, em seu novo trabalho, para a figura do Jesus histórico, o homem, e a mensagem original que passou a propagar na Palestina do século 1. Mensagem da qual, como afirma nesta entrevista por e-mail ao DIA, a igreja se distanciou ao se aliar ao poder político das classes dominantes. O que começa a ser modificado agora, em seu opinião, com o Papa Francisco, que volta a aproximar a igreja da mensagem original de Jesus.
O DIA - Qual é a visão central deste seu novo livro e por que decidiu escrevê-lo?
Leonardo Boff - Há uma antiga discussão sobre em que momento o homem Jesus de Nazaré se deu conta de ser o Filho de Deus. A maioria dos estudiosos evita esta questão com receio de psicologizar a consciência de Jesus. Eu sempre me preocupei com ela: se Jesus é verdadeiramente homem como nós, é nosso irmão, como surgiu lentamente a consciência de ser Filho de Deus? A concepção tradicional afirma que já no seio de Maria ele tinha essa consciência e se relacionava com o Pai. Essa visão destrói o conceito de encarnação que é assumir tudo o que é humano e as várias etapas da vida, como o bebê que ainda não pensa e fala, e também as limitações, crises e superações, próprias da condição humana. Ele chorou pela morte de seu amigo Lázaro, acariciava as crianças e nunca fez críticas às mulheres; antes, as defendia como Maria Madalena e a samaritana.
O livro se atém mais ao Jesus histórico do que ao Cristo da fé. Por que é importante não se perder o Jesus histórico de vista?
Devemos respeitar a forma como Deus quis se aproximar de nós através de seu Filho, que se encarnou na condição humana com seus altos e baixos. Não devemos passar logo para o Cristo da fé. Devemos sempre partir da história concreta de Jesus, de como vivia, de como pensava, de como se relacionava com as mulheres, com os pobres, com os ricos, com o poder e com as ameaças de morte. Ser cristão, fundamentalmente, é seguir o Jesus histórico. Ele não veio fundar uma nova religião. Ele veio para nos ensinar a viver como ele viveu: no amor incondicional, na compaixão para com os sofredores deste mundo, com a indignação contra aqueles que fingiam serem piedosos mas eram falsos e fariseus. Chegou até a usar de violência contra quem fazia negócios dentro do templo de Jerusalém. E cultivava grande amizade com Lázaro e suas irmãs Marta e Maria.
O que foi e como se deu a experiência mística que o homem Jesus teve dessa amorosidade do Deus-Abba?
Para espanto de seu pais Maria e José, Jesus desde pequeno se referia a Deus como 'paizinho querido' (Abba). Isso era estranho pois os judeus daquele tempo, e os de hoje também, mostram tanta reverência para com Deus que mal pronunciam seu nome. Ademais, na Bíblia judaica, o Antigo Testamento, jamais ocorre essa expressão Abba aplicada a Deus. É a linguagem que as crianças usavam afetuosamente para o seu pai ou para o seu avô. Que Jesus usasse essa palavra, Abba, revela certa intimidade, certa amorosidade para com o Deus da tradição de Abrão, Isaac e Jacó. Mas quando tinha cerca de 25-26 anos ouviu que João Batista estava batizando muitas pessoas no rio Jordão. O batismo implicava mergulhar nas águas do rio. Jesus, por curiosidade, foi ver o que lá se passava. Conversou rapidamente com João Batista e com alguns discípulos dele. Entrou num grupo para se deixar também batizar. Mergulhou como todos. Estes saíram e ele ficou parado lá no meio do rio. Foi aí que teve um profundo choque existencial, um verdadeiro abalo em seu interior. Teve a experiência profunda de ser o Filho do Pai expressada nestas palavras: 'Tu és meu Filho amado e em ti pus todo o meu regozijo'. Jesus teve a experiência da radical amorosidade de Deus-Pai, na forma do 'Paizinho querido' (Abba). Quem experimente o Pai assim sente-se seu Filho. As experiências radicais, dizem os místicos e também os psicólogos, não se deixam exprimir em palavras. Assim, os evangelistas usam metáforas: uma pomba pairou sobre ele ou se ouviu uma voz do céu. Por isso, Jesus foi ao deserto. Lá ele aprofundou esta experiência e definiu qual seria sua missão: nem um profeta que transforma pedras em pão, nem um Sumo Sacerdote que introduz uma reforma religiosa e ética, nem um rei poderoso sobre terras e povos. Descobriu que deveria ser, como está no profeta Isaias, o Servo sofredor, que se identificava com os sofredores deste mundo, que devia curar enfermos, consolar os aflitos e até devolver a vida a quem tinha morrido, como Lázaro ou a filha de Jairo. E vivenciou o amor e a ternura infinita de Deus, presente na palavra Abba.
Que significados e proporções a mensagem que Jesus passou a propagar a partir dessa experiência poderiam assumir nos dias de hoje?
Jesus experimentou a radical amorosidade de Deus para com todos, pouco importa sua condição moral, se pecador ou piedoso seguidor dos mandamentos. Jesus se aproxima de pecadores, com eram tidos os cobradores de impostos, entra na casa do rico Zaqueu, encontra especialmente os pobres e oprimidos: a todos quer com suas palavras e exemplo anunciar-lhes esta libertadora mensagem: não temam, Deus é Paizinho querido e de infinita misericórdia. Ninguém pode impor limites a sua amorosidade e misericórdia. Todos, pecadores e santos, estão sob o arco-íris da misericórdia desse Paizinho querido (Abba). Em outras palavras, ditas também pelo Papa Francisco: não há condenação eterna, ela é só deste mundo, Deus não pode perder nenhum filho ou filha que criou com amor. Se perdesse alguém, não seria Deus. Como se diz no livro da Sabedoria: 'Todos criou por amor e ninguém com ódio, senão não o teria criado. Ele é o apaixonado amante da vida'. Essa mensagem libertadora de Jesus é contrária a toda uma tradição que anunciava o evangelho com medo e com ameaça do inferno. Isso se fez quase durante todos os séculos, coisa que muitas igrejas pentecostais ainda praticam.
A Igreja Católica se distanciou dessa mensagem original ao longo dos anos, de que forma?
Desde que a Igreja se aliou ao poder político dos imperadores romanos ainda no século II-III, começando com Constantino e continuando, praticamente, até os dias de hoje, ela se distanciou da mensagem libertadora de Jesus. Ao invés de ser um movimento, ela se transformou numa instituição religiosa. Como toda instituição, ela define quem está dentro e quem está fora, estabelece doutrinas e leis, condena e premia. Neste contexto, foi usado o método do medo do inferno a todos os que não se sujeitassem a seus ordenamentos. Apesar disso, devemos reconhecer que ela guardou os quatro evangelhos, referência comum para todas as igrejas. Dentro delas, muitos assumiram o seguimento de Jesus, pobre e amigo dos pobres, como São Francisco de Assis, Irmã Dulce, Madre Teresa de Calcutá e o atual Papa Francisco de Roma. Viveram o seguimento de Jesus sem se adequar (sem desprezo) ao caminho religioso tradicional.
O senhor é amigo e conselheiro do Papa Francisco. Como avalia os 10 anos de seu pontificado?
A Igreja no pontificado de João Paulo II e de Bento XVI conheceu uma volta à grande disciplina. Revelou-se como um castelo fechado e imune aos avanços da modernidade, segundo eles, penetrada de muitos erros e desvios. Houve muita vigilância sobre as doutrinas e condenações de muitos teólogos e teólogas mais progressistas. Ocorreu um retrocesso na renovação da Igreja, começada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Falava-se do inverno da Igreja. Grande mudança ocorreu com o Papa Francisco, vindo da periferia, onde vive a maioria dos católicos. Ele sempre se entendeu como um teólogo da libertação de vertente argentina: libertação do povo oprimido e da cultura silenciada. Ele inaugurou uma nova forma de ser Papa, sem os aparatos e títulos, herdados ainda do império romano e da Renascença. Deixou o palácio pontifício e foi morar numa casa de hóspedes, Santa Marta.
Em que medida o pontificado de Francisco se aproximou da mensagem original de Jesus?
O papa Francisco trouxe uma primavera na Igreja, com ares de liberdade e de abertura a todas as diversidades. Disse que a Igreja deve ser como um hospital de campanha que acolhe a todos sem perguntar por sua origem, religião ou estado moral. Como diz com frequência, 'uma Igreja sempre em saída' para os problemas humanos, especialmente dos mais pobres e do grande pobre que é Mãe Terra que devemos cuidar como nossa Casa Comum. A meu ver, ele está inaugurando uma nova genealogia de Papas que vêm da periferia da Igreja e do mundo e que revelam um rosto novo da mensagem libertadora de Jesus. Por esta razão, este Papa fala constantemente do Jesus histórico e da forma como viveu, quer dizer, uma existência em prol dos mais vulneráveis e feitos invisíveis. Jesus se distanciava da religião rigorista da época, punha no centro o amor e a misericórdia. Não devemos esquecer que foram os religiosos que o condenaram à morte na cruz. Sua ressurreição, que é mais que a reanimação de um cadáver, significa uma insurreição contra a justiça perversa da época. Antecipou o fim bom do ser humano, realizando todas as suas potencialidades. O Papa Francisco atualiza e nos torna mais acessível a mensagem original de Jesus, de sua ilimitada misericórdia, tema fundamental de seus pronunciamentos.
Em que momentos da Humanidade a mensagem original de Jesus foi colocada em prática? Por que homens ou mulheres?
Diria que em cada geração houve homens e mulheres cristãos que se fascinaram pela figura e pela prática do Jesus histórico. Chegaram a dizer: 'humano assim como Jesus, só Deus mesmo'. Não buscavam o poder mas o serviço aos mais desamparados. A lista seria imensa. Mas certamente sobressaem Santa Tereza de Ávila, São João da Cruz, ambos místicos dos olhos abertos e das mãos operosas. São Francisco de Assis foi talvez quem mais se assemelhou a Jesus de Nazaré, vivendo entre os hansenianos e pobres e chamando a todas as criaturas com o doce nome de irmãos e irmãs. E muitas mulheres que também o seguiam e somente elas ficaram ao pé da cruz. Da América Latina não podemos deixar de citar o bispo e santo Dom Oscar Romero, de El Salvador, assassinado enquanto na missa elevava o cálice com o sangue de Cristo que se misturou com o seu sangue.
O senhor está trabalhando ou pretende trabalhar em um novo livro? Do que tratará?
Eu vivo dando palestras por todas as partes no Brasil e também no estrangeiro. Procuro imprimir um tom libertador, próprio da teologia da libertação, especialmente quando atendo grupos de base e de movimentos sociais. Além disso, escrevo a miúde, pois já são mais de cem livros. Nos últimos anos, tenho trabalhado intensamente a ecologia integral e colaborado na formação de uma ecoteologia da libertação. Desde 2001 escrevo semanalmente um artigo, sem nunca ter falhado, sendo traduzido para o espanhol, italiano, alemão e muitos em inglês. Já estou no entardecer da vida, com quase 85 anos. Continuo trabalhando, atualmente a categoria da Transparência já que toda nossa tradição greco-latina se estruturou sobre as categorias Imanência e Transcendência, colocando-as geralmente em oposição. A categoria Transparência é tipicamente cristã, pois a Transcendência penetrou a Imanência pela encarnação tornando a realidade humana e divina Transparentes. A Transparência vale para todas as esferas especialmente para a ética, de modo particular para a política e para o mundo dos negócios.
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