Integrantes do coletivo literário feminino Escreviventes em encontro na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2022Ricardo Rogers Paranhos

Rio - Existe um exercício proposto em salas de aula e rodas de debate que é simples e eficaz: retire da sua estante de livros as obras publicadas por homens e veja a diferença na quantidade que restou — o quanto é escasso o número de livros escritos por mulheres. Alguns levantamentos de instituições renomadas confirmam a discrepância. Enquanto a maioria dos leitores do Brasil é composta por mulheres, segundo o "Retratos da Leitura no Brasil", feito pelo Instituto Pró-Livro em 2019 (elas representam 54% dos leitores); 70% dos livros publicados no país são escritos por homens, como mostra pesquisa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), comandado pela professora Regina Dalcastagnè, com dados analisados nos períodos de 1965 a 1979; de 1990 a 2004; e de 2005 a 2014.



Para um país com índices de leitura por homens mais baixos que os de mulheres, é contraditório que uma gama majoritariamente masculina esteja assinando as histórias, conceitos e visões de mundo.

Para driblar as barreiras encontradas no mercado editorial e permitir mais opções de acesso à leitura de autoras, mulheres passaram a se organizar em coletivos literários, com saraus, publicações alternativas, debates em torno de temas e luta, e difusão da leitura de autoras. O objetivo é criar alternativas para que essas mulheres possam ser lidas, além de trazer narrativas femininas para o centro do diálogo literário.

Carolina Pessôa, jornalista de 36 anos e moradora de Vila Isabel, na Zona Norte, participa do Sabático Literário, um coletivo criado em 2021, com cerca de 20 mulheres, que publica textos de suas participantes em um blog independente (https://sabaticoliterario.com/), além de trocarem ideias e dicas sobre literatura em um grupo de WhatsApp.

"É uma maneira de falarmos: 'vocês não vão publicar a gente? Então a gente vai se autopublicar'. Os coletivos permitem que pulemos a barreira da editora, que não precisemos que a editora diga se temos conhecimento ou não para sermos publicadas", afirmou Carolina. "Além de existir este funil dentro das editoras, as mulheres demoram mais para enviar o trabalho, caso fechem um contrato, pois estão sobrecarregadas com outras demandas da casa e da família", completou.

Outro coletivo que destaca o protagonismo feminino na literatura é o Escreviventes. Fundado também em 2021, o grupo reúne mais de 400 integrantes e atualmente tem diversas frentes de atuação, como clube de leitura, desafios de escrita, parceria com revistas literárias, publicação de antologias e saraus online, feitos via aplicativo Zoom, com ingressos disponibilizados na plataforma Sympla.  

A fundadora do grupo, Carla Guerson, destaca que a intenção é reforçar a voz coletiva das escritoras brasileiras: "É difícil fazer valer sua voz em um mundo ainda muito dominado por uma pequena elite que se destaca. O coletivo nasceu da vontade de fazer dessa luta individual uma luta coletiva, de divulgar a escrita de mulheres divergentes, de ampliar o alcance da literatura feita por mulheres no Brasil", comentou.

"Os relatos que ouço são que as histórias que escrevemos são clichês. Uma autora uma vez me contou que teve o trabalho recusado por uma editora porque a empresa já tinha publicado naquele ano um material sobre estupro, que era o tema dela, então disse que era um assunto repetido. Mas as 'questões masculinas' nunca são restritas a um ou dois livros por ano", avaliou Carla.

O cenário de baixa representação da mulher na literatura brasileira piora quando se trata de mulheres negras. Embora representem 28% da população brasileira, segundo o IBGE, ainda são muitas as barreiras sociais para que sejam inseridas no mercado literário. Não à toa, a professora Janaína Nascimento, de 44 anos, fundou o grupo Vingando Ismênia, com oito escritoras pretas da Baixada Fluminense e Zona Norte, para dar protagonismo negro feminino a pautas importantes. Elas tomam a iniciativa de se autopublicarem por saberem da importância de produzir conhecimento social e por não estarem sob a atenção das grandes editoras.

O nome vem da personagem do romancista Lima Barreto (1881-1922) no livro 'Triste Fim de Policarpo Quaresma'. Ismênia era uma jovem educada desde a sua infância para o casamento, mas é abandonada pelo seu noivo Cavalcanti e acaba enlouquecendo, o que é analisado nos meios acadêmicos como uma espécie de punição por não ter se casado.

"O nosso coletivo acontece com a reunião de mulheres para falar sobre temáticas que muitas vezes as pessoas não abordam. Por isso Vingando Ismênia. Além de falarmos de prazer feminino, falamos sobre amor, ancestralidade, maternidade, tudo em apresentações abertas para o público. Nos nossos saraus, recitamos poemas autorais, dando visibilidade a esses temas importantes e à literatura negra feminina que é tão ofuscada. Precisamos divulgar cada vez mais para que outras mulheres como nós sintam pertencimento e coragem para escrever", disse Janaína.

Uma antologia com poesias, contos, crônicas e um pouco da história do coletivo está em fase de organização pelo grupo. "Começamos em tempos difíceis de retrocesso, mas seguimos vingando Ismênia e tantas outras mais", contou a fundadora do coletivo.

As narrativas femininas no centro da história

A falta de oferta no meio literário acendeu um alerta para a professora e editora Bianca Garcia, de 29 anos, que, junto com a sócia Priscila Branco, fundou, em 2017, a Macabéa, uma editora independente que publica apenas escritos de mulheres. A iniciativa começou como um selo dentro de uma editora carioca, mas Bianca e Priscila sentiram necessidade de transformar em uma editora independente para que a atuação fosse livre e melhor alinhada com a proposta feminina. 

A editora empresta o nome da personagem principal de 'A Hora da Estrela', obra de Clarice Lispector (1920-1977), por uma razão precisa. Na publicação, a vida da jovem alagoana de 19 anos, que vive de forma miserável no Rio de Janeiro, é narrada por um homem distante, Rodrigo S.M. A vida de Macabéa é traçada, página por página, a partir do olhar de Rodrigo.

Nas palavras de Bianca, Macabéa tem o seu poder, mas ela não é reconhecida por ser narrada por um homem. Quem aparece e tem voz no livro é Rodrigo S.M.

Bianca contou ainda que o slogan da editora, 'O direito ao grito', um dos 13 outros títulos da obra apresentados na primeira página, foi pensado para retratar a proposta de resgate da autonomia da mulher por meio de criações literárias.

"Escolhemos este título como slogan porque, em contraposição a um dos outros 13 títulos, 'Ela não sabe gritar', acreditamos que Macabéa não só tem o direito como é dona de sua própria voz. Pensando em trazer uma vida digna à Macabéa, em contraposição à vida medíocre que Rodrigo S. M. inventou para ela, é que nasceu a Macabéa Edições. Para que todas as mulheres que escrevem tomem as rédeas de sua própria história, que tenham, enfim, o direito ao grito, porque, afinal, nós sabemos gritar. É por isso que somos mulheres que publicam somente mulheres", relata.

A curadoria é feita para abraçar diferentes formatos e temáticas. Seja em prosa ou poesia, o objetivo é pautar diversidade em narrativas que renovam o mercado editorial brasileiro. O próximo lançamento acontece em agosto, do livro 'Em poetisa todo mundo pisa', da poeta e romancista Leila Míccolis, que integrou a geração da poesia dos anos 1970 conhecida como a geração do mimeógrafo. A venda dos livros é feita no site da editora: https://www.macabeaedicoes.com/.

Quem também incentiva a escrita por mulheres é o 'Mulheres que Escrevem', iniciativa idealizada em 2015 por Taís Bravo, Estela Rosa, Tati Sales, Natasha Ísis e Seane Melo. Diferente dos coletivos literários, em que as participantes já colocam as suas ideias no papel, o Mulheres que Escrevem atua sobre as inseguranças das mulheres de se aceitarem como escritoras. Criado em 2015, parte das questões "como se autorizar a escrever?" e "como se autorizar a ser uma autora?" para criar oficinas e laboratório para mulheres pensarem o que as impossibilitam de escrever.

"As mulheres não se aceitam como escritoras, falam que escrevem uma coisinha aqui e ali. Em 2015, estava muito em foco o movimento feminista no Brasil, todo um movimento falando sobre a subrepresentatividade das mulheres e minorias sociais que não são representadas em geral pela literatura canônica, historicamente escrita por homens brancos, europeus, héteros, dentro dos clássicos que apagam outras pessoas que escrevem. Por isso, queremos construir a escrita como ofício, estimular as mulheres a praticarem a escrita", contou a profissional do texto, como se intitula Taís Bravo, de 33 anos, moradora da Tijuca.

A ideia da ação de colocar a escrita como oficio é para mudar a visão do ato de escrever como um dom, algo transcendental, acessível apenas a alguns. O Mulheres que Escrevem entende que trabalho criativo vem pela prática, convivência com outras escritoras, troca de ideias, frequência de leitura e, principalmente, afastamento da ideia de escrita canônica para dar lugar a algo mais confortável, em que todas se sintam capazes de criar.

Aos 78 anos, diante de todo o esforço de publicação e legitimação feito ao longo de sua vida, a poeta mineira Henriqueta Lisboa (1901-1985) questionou em uma carta de agradecimento dirigida ao também poeta Cassiano Nunes (1921-2007): 'Terá valido a pena a persistência?'. Persistência, de fato, é imperativo para que existam mais mulheres vivendo na literatura.