Laís Dantas durante as filmagens de DesovaDivulgação

Rio - A exibição do filme "Desova" no 12º Festival Internacional de Cinema Político (Ficip), em Buenos Aires, na Argentina, trouxe ao público uma percepção a mais sobre as estratégias de desaparecimentos forçados na América Latina. Comumente praticadas por regimes ditatoriais, no Rio de Janeiro elas estão atreladas à atuação policial e de grupos de extermínio ligados a milícias e ao tráfico de drogas. Premiado, no dia 31, como Melhor Filme do evento, o curta-metragem dá início a um movimento para chamar atenção para a necessidade de uma tipificação específica para esse tipo de crime no país. 
"As pessoas que vieram falar comigo após a exibição do filme demonstraram estarem surpresas ao saber que os desaparecimentos forçados acontecem em plena democracia no Brasil. 'Como isso acontece no governo Lula?', perguntaram. Sim, aconteceu e acontece no governo Lula, no governo Bolsonaro e em todos os outros", diz a diretora Laís Dantas, de 28 anos, de Duque de Caxias, que realizou o filme a convite do FGB e da produtora Quiprocó Filmes.

O filme está atrelado à pesquisa "Mapeamento exploratório sobre desaparecidos e desaparecimentos forçados em municípios da Baixada Fluminense", coordenada pelo Fórum Grita Baixada (FGB) e pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ainda inédita, ela está nos preparativos finais para ser lançada em livro. Já o filme tem estreia nacional prevista para 5 de setembro, no Sesc Nova Iguaçu.
Ao analisar informações de uma das fontes consultadas, o serviço Disque-Denúncia, a pesquisa identificou 361 casos na Baixada Fluminense com características de desaparecimento forçado. Os maiores números aconteceram nas cidades de Duque de Caxias (96), Belford Roxo (91), Nova Iguaçu (41), São João de Meriti (35), Itaguaí (23) e Queimados (21).
"A grande maioria dos casos são de jovens pretos, moradores de áreas periféricas, envolvidos com o tráfico ou não. São relatos de que saíram para ir a um baile funk, para levar a namorada em algum lugar, foram abordados pela polícia ou houve uma guerra entre facções e nunca mais foram vistos", diz Adriano de Araújo, coordenador-executivo do FGB e da pesquisa.

Segundo ele, o principal objetivo da pesquisa e do filme não é apontar dados específicos do problema, mas entender a dinâmica dos casos, para, a partir de reuniões com políticos, proposição de audiências públicas e encontros com organismos internacionais, estabelecer um movimento em prol da tipificação do crime de desaparecimento forçado no Brasil.

"É necessário conceituar o que é desaparecimento forçado, qual é a sua dimensão criminosa e como ele será enfrentado. A tipificação do crime de desaparecimento forçado irá permitir que ele entre no rol legislativo, para que os legisladores possam construir leis para estruturar o enfrentamento a esse tipo de crime. No atual momento, esses crimes estão invisibilisados e imprecisos", destaca Adriano.

Alguns dos casos citados por ele são o desaparecimento, em Belford Roxo, das crianças Lucas Matheus, de 8 anos, Alexandre da Silva, de 10, e Fernando Henrique, de 11; e o caso de Matheus Costa da Silva, Douglas dos Santos, Adriel Andrade e Jhonathan Alef Gomes, que estavam em veículo de aplicativo a caminho de um shopping quando teriam sido abordados por criminosos armados no bairro Valverde, em Nova Iguaçu. "Apareceu a ossada de um deles. Mas os outros três continuam desaparecidos".

O relato das mães

Além das informações do Disque-Denúncia, a pesquisa também mapeou dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), analisou páginas com relatos de desaparecimentos em redes sociais e colheu o depoimento de 14 mães do Km 32, em Nova Iguaçu, cujos filhos foram vítimas de desaparecimentos forçados. Nos relatos, explica Adriano, fica visível a dificuldade na busca por justiça:

"Elas praticamente lutam sozinhas. Nas delegacias são induzidas a esperar um certo número de horas para fazer o registro, o que não é determinado em nenhum dispositivo legal. Elas acabam não voltando. Perguntam se a vítima era usuária de drogas ou envolvida com o crime. Se sim, sendo negra e moradora de periferia, aí é que não investigam mesmo. Há um senso comum, na próprio polícia, de que mereceram o que procuraram.

No filme "Desova", o relato das mães é o principal fio narrativo.

"Tentei fazer um registro cuidadoso sobre como fica a situação dessas mães, como lidam com essa dor, com esse buraco. Se não há um corpo para de enterrar, é como se o filho pudesse voltar a qualquer momento. Isso traz uma angústia sem fim. Ao mostrar isso, espero que o filme contribua para que surjam políticas públicas que possam cuidar dessas mães", diz Laís Dantas.