Uma primeira Copa, como Marta disputou há 20 anos, é algo grandioso, assim como a sua última, agora. O primeiro desafio profissional é imenso no nosso coração, como podem ser todos os outrosArte: Paulo Márcio

A voz da repórter no telejornal matinal ecoava pelo corredor de casa quando acordei na terça-feira. Fui até a televisão do meu pai e consegui acompanhar um trecho do noticiário da Seleção feminina de futebol, que disputa a Copa do Mundo. Como acontece nos dias seguintes aos jogos, o time titular fazia um trabalho regenerativo enquanto as demais jogadoras iam a campo. Marta, seis vezes eleita a melhor do mundo, estava presente no gramado para o treinamento. Ela havia começado no banco de reservas contra o Panamá, na véspera, entrando somente no segundo tempo no lugar de Ary Borges, a estrela do jogo, com um hat-trick. No mundo dos números, significa que ela marcou três gols. Eu diria que o seu talento se sentiu à vontade em um Mundial.
Foi muito simbólico que Marta tenha substituído Ary Borges. A rainha, inclusive, se disse honrada por isso. Podemos ver o nascimento de uma estrela mesmo tendo uma rainha. Ary Borges já tem os seus passos únicos. Veio de São Luís, do Maranhão, onde foi criada pela avó, Lindalva, construiu suas próprias memórias, venceu os seus obstáculos e medos. O público, Ary e as rivais reverenciaram Marta. E a rainha elogiou a jovem estrela. É belo perceber que histórias não se anulam. Somos cruéis demais quando queremos que uma trajetória se sobreponha à outra.
Tudo isso me fez pensar nesse ciclo da vida. Por eu ter sido jornalista esportiva durante mais de 20 anos, sou fã das inspirações vindas dos gramados, das pistas, piscinas, quadras... Por ter dois sobrinhos adolescentes, fico fascinada pela chegada de uma nova geração. Com eles, sinto, vivo e aprendo. Lembro como tudo é gigante na juventude, talvez por ser inédito. E deveria continuar desse modo. Uma primeira Copa, como Marta disputou há 20 anos, é algo grandioso, assim como a sua última, agora. O primeiro desafio profissional é imenso no nosso coração, como podem ser todos os outros.
O belo mesmo é quando as gerações não se desconectam. Como faz Ary Borges ao se inspirar em Marta, ao lembrar de si mesma, a Ariadina de outros tempos, e ao revelar as mensagens trocadas no grupo da família no WhatsApp antes de sua estreia na Copa do Mundo: “Galera, tô indo aquecer, só queria dizer que amo muito vocês. Obrigada por tudo que vocês fizeram pra eu chegar aqui. Amo vocês”.
Seus pais responderam, orgulhosos. “Vamos, filha”, disse Seu Dino. “Vai, filha. Já deu tudo certo, temos muito orgulho de você”, completou Dona Gal. Minha mãe falaria o mesmo, com palavras que podem ser repetidas, mas me enchia de confiança de uma maneira única. Sinto que o hat-trick da estreia não é só um número na vida de Ary Borges. Ele tem muita história para contar.