Paulo Vitor Braga da Silva, Rogério Melo, Vinicius Miranda Cardoso, Alexandre Rovere, vice-presidente do Museu Bangu e Benevenuto Rovere Neto Marcela Ribeiro/Agência O Dia
Para provar que Bangu vai muito além do clássico calorão, o coletivo se reuniu para contar a história do bairro através da biografia de 38 personagens, alguns muito conhecidos, outros nem tanto, mas importantes na trajetória e formação do local. Entre eles estão uma menina americana chamada Lucy Judkins, José Mauro de Vasconcelos, autor de 'Meu Pé de Laranja Lima', a Miss Bangu, Edda Soares Pinto, o contraventor Castor de Andrade e nomes importantes do futebol, como Domingos da Guia e Zózimo.
Paulo Vitor Braga, um dos autores do livro, teve a ideia de comemorar os 350 anos de Bangu e apresentou a Benevenuto Rovere Neto, presidente do Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos, fundado em 1994, que abraçou a ideia e os dois decidiram convocar uma comissão - uma delas a histórica - para pensar em atividades para celebrar essa data marcante.
"A gente pensou em algumas atividades, dentre elas, a de fazer um livro. A gente entende que eventos culturais são importantes, divulgações em redes sociais também pelo engajamento e visibilidade, porém um livro acaba sendo um documento perpétuo, o qual ele vai durar o quanto o material dele resistir. É um registro de um determinado momento", explica.
O professor de História e editor do livro Vinicius Cardoso entrou com a ideia de em vez de contar a história dos 350 anos de Bangu, que daria uma "enciclopédia" e comercialmente seria mais difícil levar esse projeto adiante, contar a história a partir da vida de personagens importantes do bairro.
"Um dos principais pontos que colocamos foi que a gente pudesse elencar os personagens que pudesse contar cronologicamente a história do bairro através da vida deles. A gente começa com o pioneiro do bairro, o Manoel de Barcellos Domingues, um capitão do engenho que fundou a capela de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande em terras de Bangu e deu início a toda essa história do bairro", completa.
O livro termina com o padre Mário Nogueira Filho, pároco residente da paróquia São Sebastião e Santa Cecília de Bangu, que morreu em maio de 2020, vítima das complicações da Covid-19. "A gente tentou trazer personagens, cada um importante de uma determinada época", diz.
A definição dos biografados, segundo os autores, ocorreu de forma coletiva com reuniões exaustivas para que cada detalhe fosse pensado com cuidado, não só da forma de viabilizar e também para que o material entregue fosse de qualidade para os banguenses e todos os que se interessarem pela história do bairro.
"Cada um ficou com um grupo de personagens, eu fiquei com seis, sete personagens. Teve um personagem que me jogaram em cima da hora que demorei dois dias", diz Rogério Melo. O tempo de execução do projeto completo demorou cerca de um ano.
"Eles fizeram a biografia desses personagens sempre tentando buscar os pontos mais relevantes da vida deles, tendo como palco o bairro de Bangu", revela Paulo.
"Tem alguns personagens do livro que são os famosos, Castor de Andrade e tal, esses já despertariam a atenção por serem mais conhecidos, mas acho que alguns dos menos conhecidos podem gerar mais curiosidade, por exemplo, o Aurélio Venâncio de Oliveira, um pracinha que lutou na Segunda Guerra Mundial, por mais que a gente não tenha muitos dados sobre a vida dele, a história em si pode gerar uma curiosidade. O operário Pedro Lima que participou da construção da fábrica Bangu, trabalhou por décadas e tocava o apito. Desses 38 personagens, todos eles têm alguma coisa que pode gerar interesse", destaca Vinicius Cardoso.
Bangu antes e depois da fábrica
Inicialmente a ideia era trabalhar o livro com 35 personagens, mas pela quantidade de pessoas interessantes, mais três acabaram entrando em seguida. "Alguns deles ninguém nunca escutou falar na vida porque são personagens lá do início de Bangu como é o caso da menina Lucy Judkins", explica Rogério.
A história de Bangu pode ser dividida em um período antes da chegada da famosa fábrica de tecidos e depois da chegada, que é mais conhecido. Esses 200 anos anteriores não são tão conhecidos na Literatura. Em 2020, Paulo Vitor e Benevenuto lançaram o livro "Fazenda Bangu - A joia do sertão carioca" que aborda esse período anterior a chegada da fábrica de Bangu, que aconteceu em 1889.
Durante a pesquisa para o livro, os autores encontraram nos arquivos dos Estados Unidos alguns registros da antiga fazenda Bangu, uma propriedade rural, palco de grandes acontecimentos do bairro. Foi encontrado um diário com escritos, desenhos e cartas que a pequena americana Lucy Judkins enviava aos parentes no Alabama, e nos quais registrava o cotidiano da Fazenda Bangu. Ela emigrou com sua família para o Brasil após o final da Guerra Civil (1861-1865).
"Recebemos mais de 300 manuscritos sobre a história da família que migrou para Bangu. A Lucy gostava de pedir para os parentes e ela mesma escrever o dia-a-dia da fazenda Bangu, como ela era, como eram os quartos, a visão, as capelas e principalmente como era a relação dela com a Cesárea, a escravizada que a cuidava", detalha Paulo Vitor.
"Independente da posição que eles tinham em relação à escravatura, eu sou muito grato à Lucy, procuro sempre obter mais informações com os curadores do Alabama porque foi a partir da decisão dela de registrar isso nas cartas que a gente pode abrir uma janela enorme de como era Bangu na época colonial. O fazenda Bangu acaba sendo o sucesso que tem muito como a pesquisa como um todo, mas sem dúvida dessa massa documental que veio dos Estados Unidos nos dá uma visão diferenciada da região neste período", completa.
Fechamento da fábrica
O fechamento da fábrica de tecidos ocorreu em 2004, e, na época, houve uma comoção grande entre os moradores. "Mas, ao mesmo tempo, quando inaugurou o shopping, em 2007, foi uma coisa de doido. Com o shopping, a economia do bairro melhorou", conta Benevenuto.
"No final, a fábrica já não estava bem, ficou muito tempo definhando", completa Rogerio.
Paulo Vitor é filho de um ex-funcionário da fábrica, que começou a trabalhar lá com 13 anos se aposentou em 1994, 10 anos antes do fechamento. "Naquele momento a gente já sentia o próprio declínio", diz. "Depois que a fábrica foi vendida para o grupo Dona Isabel e também com todo mercado externo de algodão e tecido, acabou afetando a fábrica", completa.
Futebol e Bangu
"Era proibido negro jogar futebol e o Bangu peitou a liga e botou ele ali. Ele também está no livro", conta Rogério. Benevenuto relembra que o jogador foi proibido de jogar no ano seguinte. "Aí o Bangu saiu da liga", completa.
"Além da história do próprio bairro, que é uma obrigação como escopo do nosso trabalho, a gente flerta com a história do Rio, do Brasil e quiçá do mundo, alguns personagens biografados acabam tendo um envolvimento em histórias com os limites maiores que o próprio bairro, como é o caso da Lucy, outro caso é o de Thomas Donohoe, um escocês, mestre tecelão, veio para trabalhar na fábrica de tecidos e, segundo registros é o pioneiro no futebol no Brasil, foi a primeira pessoa que trouxe uma bola e jogou futebol nos jardins da fábrica de tecidos Bangu", conta Paulo Vitor.
O escocês desembarcou no Porto do Rio de Janeiro em 21 de maio de 1894. Naquele momento o futebol era algo desconhecido entre os brasileiros e Thomas era atleta e jogou futebol em seu país. Quando confirmou que seu contrato de trabalho na fábrica era longo, mandou vir sua esposa, Elizabeth e os filhos, John e Patrick. Um objeto importante veio na bagagem da família em setembro de 1894: uma bola de couro.
Na manhã de domingo de 9 de setembro no mesmo ano, ele convocou colegas de trabalho para o que seria a primeira partida de futebol em um campo improvisado em frente a fábrica.
"Antes de Charles Miller, que é o oficial, o Thomas realizou a partida de futebol seis meses antes", completa Rogério. Há, inclusive no Shopping Bangu, localizado na sede da antiga fábrica existe um monumento em homenagem a ele.
Bairrismo
"Tinham mais de 50 pessoas interessadas, mas para poder marcar, encerramos com esse número", explica Benevenuto. Além do livro, que fez a compra antecipada levará ainda uma caneca com edição limitada, sacola de tecido, pôster, caderno e certificado, todos os itens temáticos e exclusivos.
Paulo Vitor é apaixonado pelo bairro, principalmente por conta da raiz. "Meu pai e minha mãe se conheceram num trem indo assistir ao jogo do Bangu Atlético Clube, eu nascei em 1983, o ano da nova ascensão do time e do bairro social", conta.
"Estava acostumado a acompanhar minha mãe torcendo para o Bangu, meu pai que era desenhista da fábrica fazendo objetos para comemorar os títulos do clube, vendo meus parentes indo aos jogos, eu sendo levado pequeno. Como uma pessoa consegue esquecer toda essa raiz e passado? Todas as boas memórias e momentos mais agradáveis da minha vida, das férias soltando pipa, pegando fruto, eu vou lembrar de Bangu dos anos 80 e 90. As memórias mais bonitas eu vou sempre lembrar desse bairro sendo palco da minha vida e as pessoas que falaram por ela", completa ele.
"Eu peguei Bangu na época em que tudo era na fábrica de tecidos. Com dois anos, comecei a praticar esporte na piscina do Bangu, nadei pelo clube até 16 anos, quando passei a jogar futebol pelo Bangu e dali comecei a frequentar os bailes nos clubes. Até meu início profissional foi dentro do clube, fui treinador de futebol de salão, do campo, dirigi a equipe de treinadores, fui vice-presidente do Bangu, trabalhei em Bangu, essa é a minha ligação. Por ter vivido um momento de formação de caráter dentro do clube com os amigos, os bailes, a própria rua você saía da escola, sentava e ficava batendo papo até cinco, seis horas, jogava bola na rua", recorda Rogerio.
Nascido em Bangu em 1946, Benevenuto Neto é fundador do Museu Bangu, que completa 30 anos em 2024. "Vivo em Bangu eternamente, nós estamos preparando os jovens para dar continuidade a esse trabalho porque a gente sabe que estamos aqui de passagem, acho que isso aqui não pode morrer, é a única instituição no Rio de Janeiro no bairro que tem sua memória preservada sem ajuda do poder público", conta.
Como professor de História, Vinicius diz que cada vez que estuda sobre o bairro se encanta mais. "Fui batizado na igreja aqui, moro perto da fazenda Viegas, frequento o centro de Bangu há muito tempo. Ao estudar a história cada vez compreendo mais a importância que o bairro teve e ainda tem, principalmente essas conexões com outros bairros e outros lugares do Brasil e o mundo", conta.
A técnica de enfermagem Rosana Mendonça mora em Bangu há mais de 25 anos. Foi no bairro que ela conheceu o marido, se casou e teve duas filhas. "O que mais me encanta aqui no bairro foi esse lado acolhedor. Hoje tenho duas filhas que nasceram aqui, uma de 18 e outra de 9 anos", conta.
Kelly dos Santos vende pizza no calçadão de Bangu há um ano e meio por R$ 14. "Os moradores já conhecem, ligam, fazem encomenda. Bangu é um lugar que você consegue achar tudo, tem shopping, cinema, mercado, diversão, entretenimento. Onde eu moro, os vizinhos são uma grande família, todos se ajudam. Aqui é um bairro grande, mas acaba que todo mundo se conhece, ainda mais quando se encontra aqui no calçadão, sempre tem aqui que você esbarra aqui", diz.
Para a ambulante, o lado ruim do bairro são as comunidades que entram em confrontos, o que aumenta o clima de insegurança na região. "Mas isso está em todos os bairros, não é um ponto somente de Bangu", completa.
Luiz Ricardo Melo, 29 anos, vende suco natural do calçadão de Bangu e nasceu e cresceu no bairro. "Conheço muita gente daqui. Onde eu moro é um lugar maravilhoso e quando estou de folga gosto de ir no cinema no Bangu Shopping ou em shows que acontecem lá", conta.
Shirley Martins, 64 anos, mora no bairro desde os 8 anos. Foi lá que ela casou e teve dois filhos. "Eu adoro morar aqui, tem tudo, shopping, mercado, farmácia tem umas 500, padarias. Meus filhos foram criados aqui, batizados na igreja de Santa Cecília. Gosto de ir à missa, caminhar no shopping, gosto muito do bairro", elogia.
"Me sinto segura porque conheço 'Deus e o mundo'. Todo mundo me conhece, a gente tem uma pensão, o povo vai almoçar lá", diz. "Antigamente não tinha assalto, agora tem, mas isso tem no Brasil inteiro. Mas é tranquilo", conclui.
Coletivo de autores
Todos os 10 autores são nascidos e criados em Bangu: Benevenuto Rovere Neto, presidente do Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos, o Museu de Bangu, é autor do livro "Fazenda Bangu: a joia do sertão carioca (Museu de Bangu, 2020)", Carlos Molinari Rodrigues Severino, formado em Comunicação Social pela UFRJ e Mestre em História pela UnB, além de ser pesquisador do Bangu Atlético Clube, Carolina Teixeira Justino, formada em Design pela UFF e Pós-graduanda em História da Arte Sacra pela FSBRJ, Gerdal José de Paula, jornalista, filho do sonoplasta Geraldo José de Paula, Marcio Keler Cardoso dos Anjos, restaurador de obras de arte e membro da diretoria do Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos (Museu de Bangu).
Completam o coletivo: Maria Eloise Lima Eufrázio, professora de Geografia da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Paulo Vitor Braga da Silva, autor do livro "Fazenda Bangu" e pesquisador da história de Bangu, Renato Soares Bermudas, trineto de Pedro Lima, pedagogo e professor, Rogerio Silva de Melo, presidente do Conselho Regional de Educação Física; Doutor em Educação Física e Vinicius Miranda Cardoso, professor de História, Doutor em História Social (UFRJ) e vencedor do Prêmio do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (2018).
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