tragedia corARTE O DIA

Rio - "A falta que ele faz é inexplicável", o desabafo é de Iracilda Toledo, viúva do ferroviário Adalberto de Souza, um dos mortos no massacre que ficou conhecido como a Chacina de Vigário Geral, na Zona Norte, que completa 30 anos nesta terça-feira (29). Nessa mesma data, em 1993, 21 pessoas foram assassinadas por policiais militares em vários pontos da comunidade. Para marcar a data emblemática, uma placa será instalada com os nomes e profissões das vítimas na Praça Catolé do Rocha, localizada na mesma região.
Além disso, o Cristo Redentor ficará iluminado de verde, simbolizando a esperança por dias melhores e em prol da justiça e da paz. Em seguida, às 19h30, haverá uma missa celebrada pelo arcebispo do Rio, cardeal Orani João Tempesta, na comunidade.
Segundo as investigações, a chacina ocorreu em vingança à morte de quatro policiais militares provocada pela organização criminosa que controlava o tráfico na região. No entanto, as vítimas foram escolhidas de modo aleatório e no fim, nenhuma delas tinha relação com a quadrilha que matou os agentes.
Iracilda, que também é presidente da associação que reúne as famílias das vítimas, contou ao DIA que o marido tinha 40 anos quando foi atingido. "Tinha tido jogo do Brasil e Bolívia na eliminatória da Copa do Mundo, na época, o Brasil eliminou a Bolívia de 6 a 0. Ele tinha ido ao bar comprar cigarro em um bar e chegando lá tinha uma 'turminha' tomando cerveja, e ali eles foram atingidos", lamentou.
Para a viúva, nem mesmo os anos que se passaram diminuíram a saudade que ela sente do marido. "A falta que ele faz é inexplicável, apesar de ser 30 anos continua fazendo falta porque ele não viu os filhos crescerem, não tá tendo o privilégio de ver os netos como eu vejo, bisneto como eu já estou vendo, então isso dói muito, porque a cada momento que você tem uma alegria eu lembro que ele podia estar aqui compartilhando comigo", disse.
Iracilda contou ainda que nesta segunda-feira (28), foi a festa de 10 anos do neto, um momento de alegria, mas que não anula a tristeza de reviver o dia 30 de agosto. "Ele morreu muito novo sem ter essa oportunidade que tiraram dele de ter essa vida que eu estou tendo. Eu tenho 3 filhos, uma já faleceu, três netos e um bisneto. Meus dois netos e um bisneto são de agosto. O bisneto é de dia 16, meu outro neto que fez 11 anos é do dia 22, e tem esse do dia 28. Uma coisa compensou a outra, aparentemente, é alegria, mas fecha o mês com uma matéria que o mundo inteiro viu, essa triste história", lamentou.
Ela complementou que ainda dói saber que histórias de mortes em comunidades ainda se repetem. "A Justiça tem que entender que todo lugar é complicado, mas hoje matam e depois perguntam quem é, tem crianças de 4 anos morrendo. Isso traz dor", finalizou.
As famílias recebem atualmente a pensão administrativa de três salários mínimos mensais, que é destinada às vítimas de violência causada por agentes do Estado, após uma luta que se estendeu por anos.
Confira os nomes e profissões que estarão na placa do monumento em memória dos mortos, que será inaugurado nesta terça na principal praça da comunidade.

Adalberto Souza – ferroviário; Amarildo Bahiense – frentista; Cléber Marzo Alves – gráfico; Clodoaldo Pereira da Silva – industriário; Edmilson Prazeres da Costa – mecânico; Fábio Pinheiro Lau – estudante;Gilberto Cardoso dos Santos – vigia; Guaraci de Oliveira Rodrigues – auxiliar de enfermagem; Hélio de Souza Santos – metalúrgico; Jane Silva dos Santos – dona de casa; Joacir Medeiros – comerciante; José Santos – serralheiro; Lúcia Silva dos Santos – costureira; Lucinéia da Silva Santos – metalúrgica; Luciene da Silva Santos – estudante; Lucinete da Silva dos Santos – recepcionista; Luciano Silva dos Santos – gráfico; Luis Cláudio Feliciano – auxiliar administrativo; Paulo Roberto dos Santos Ferreira – motorista;Paulo César Gomes – pedreiro; Rúbia dos Santos - gráfica.
Retrocesso e avanço na segurança pública
Para o especialista em segurança pública e presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina (Inscrim), José Ricardo Bandeira, desde a chacina de Vigário Geral, houve mudanças significativas no cenário de segurança pública no Rio de Janeiro, com avanços e desafios. Para o DIA, ele citou alguma delas, como:
 - Programas de pacificação: "Iniciativas como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram implementadas para tentar reduzir a presença do tráfico de drogas em áreas de favelas e melhorar a relação entre a polícia e a comunidade"

- Políticas de direitos humanos: "Houve um aumento da conscientização sobre os direitos humanos e o uso excessivo de força por parte das autoridades policiais, levando a uma maior vigilância e cobrança por parte da sociedade civil e de organizações não governamentais"
- Monitoramento e transparência: "Tecnologias como câmeras de segurança e smartphones permitem uma maior documentação e transparência em relação às operações policiais, o que pode contribuir para uma maior responsabilização em caso de abusos"

Em relação aos desafios e retrocessos ele relata alguns como a persistência da violência: "Apesar dos esforços, a criminalidade violenta ainda é uma realidade em algumas áreas do Rio de Janeiro, com tiroteios frequentes e taxas de homicídio consideráveis", diz.
Além disso, ele cita os desafios institucionais como a corrupção dentro das instituições policiais e do sistema de justiça, que segundo ele continua a ser um problema significativo, minando a confiança da população e prejudicando os esforços de combate ao crime.
"Fora os confrontos armados entre facções criminosas e a polícia que são uma realidade recorrente, resultando em vítimas civis e policiais", finaliza.
Como evitar novas tragédias
O especialista reforçou ainda que para evitar novas tragédias e chacinas é preciso adotar uma abordagem multifacetada que envolva algumas questões como:
- Investimento em políticas sociais: Abordar as causas subjacentes da criminalidade, como pobreza, falta de acesso à educação e oportunidades de emprego.

- Treinamento: Melhorar o treinamento policial para promover práticas de uso adequado da força e respeito aos direitos humanos.

- Transparência e responsabilização: Implementar mecanismos de monitoramento independentes e responsabilização eficazes para casos de abuso policial.

- Desenvolvimento comunitário: Fortalecer a relação entre a polícia e a comunidade, promovendo o diálogo e a colaboração para abordar as questões de segurança.

- Reforma do sistema de justiça: Garantir que processos legais sejam conduzidos de forma justa e eficiente, combatendo a impunidade e a corrupção.

- Envolvimento da sociedade civil: A participação ativa da sociedade civil e a promoção do engajamento cidadão são essenciais para pressionar por mudanças positivas e monitorar a atuação das autoridades.

"Em suma, enquanto houve avanços em algumas áreas, ainda há desafios significativos a serem superados para evitar novas tragédias e garantir uma abordagem mais eficaz e respeitosa à segurança pública no Rio de Janeiro e diminuir os índices de violência e criminalidade", finalizou.
Julgamento
Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, ao todo, foram 52 PMs denunciados. No primeiro processo, denominado como Vigário Geral I foram 33 denunciados, com 7 condenados, 19 absolvidos, 5 mortos, 1 impronunciado e 1 foragido. No Vigário Geral II, segundo processo, foram 19 denunciados, com 9 absolvidos, 9 impronunciados e 1 morto.

Arlindo Maginário Filho foi condenado no 1º Júri a 441 anos e 4 meses de reclusão, mas a pena foi reduzida pelo STF para 58 anos. Maginário acabou absolvido no 2º Júri em 15 de novembro de 2003.

Paulo Roberto Alvarenga foi condenado a 449 anos e 8 meses de prisão. No 2º Júri, a pena foi reduzida para 59 anos e 6 meses. Em 2013, recebeu liberdade condicional.

Alexandre Bicego Farinha foi assassinado em 2007, quando aguardava em liberdade o julgamento de um recurso. Antes, Farinha havia sido condenado a 72 anos no 1º Júri, e a 59 anos e 6 meses no 2º Júri.

Sirlei Alves Teixeira foi condenado a 59 anos de prisão no 1º Júri, pena mantida em um segundo julgamento, realizado em 2003. Em dezembro de 2017, Sirlei foi para o regime semiaberto e cumpria essa pena até ser morto em 2021 na porta de sua casa.

José Fernandes Neto foi condenado a 45 anos de reclusão no 1º Júri, pena mantida no segundo julgamento. Recebeu liberdade condicional em 2006.

Roberto César do Amaral foi condenado no 1º Júri a 6 anos de reclusão, e absolvido em um segundo julgamento, em 2007.

Adilson Saraiva da Hora foi condenado no 1º Júri a 72 anos. No 2º Júri, a 59 anos e 6 meses. Em 2007, foi absolvido, em um terceiro julgamento.

Outros três réus chegaram a ser pronunciados, mas morreram antes de serem submetidos ao Júri. Jorge Evandro Santos de Souza chegou a ser pronunciado, mas houve um recurso que o despronunciou, evitando que fosse a julgamento no Tribunal do Júri. Os demais réus foram absolvidos ou impronunciados.

Outro acusado, Leandro Marques da Costa, fugiu em 1994 e não foi mais encontrado. Ele foi pronunciado à revelia, mas seu caso não foi a Júri, porque, na época, a lei não permitia o julgamento sem a presença do réu.