"Percebo que nos últimos anos houve uma menor estigmatização sobre o alcoolismo", atesta a psicóloga Gabriela Henrique Pedro Ivo

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o alcoolismo como uma “doença”, que atinge milhões de pessoas no mundo inteiro. O uso constante, descontrolado e progressivo de bebidas alcoólicas pode comprometer seriamente o bom funcionamento do organismo, levando a consequências irreversíveis.

Incurável, progressiva e de terminação fatal, a doença do alcoolismo pode levar seu portador à loucura ou a morte prematura, em razão de causar problemas físicos, mentais e emocionais.

Embora seja incurável, o alcoolismo tem tratamentos. O mais conhecido deles, e por muitos considerado o método mais eficiente, é praticar os 12 passos sugeridos pela irmandade de Alcoólicos Anônimos (AA), que em setembro de 2023 completou 76 anos de atividades no Brasil salvando milhares de vidas, com grupos de recuperação espalhados em todo o país.
As atividades tiveram início na cidade do Rio de Janeiro em 1947, data que marca a chegada do primeiro brasileiro à irmandade. “Quando eu cheguei em Alcoólicos Anônimos, no ano de 1977, a irmandade tinha apenas 30 anos no Brasil. AA ainda tinha uma estrutura em estágio de formação, haja vista, só tínhamos publicado 3 livros: “Alcoólicos Anônimos” (Texto básico de AA), “Os Doze Passos” e “As Doze Tradições”. Hoje, nossa publicação entre Livros, Livretos e Folhetos já são mais de 70 publicações à disposição do público, além da revista Vivência, que tem publicação bimensal e está atualmente no número 205”, explica N.C.R, membro de AA e integrante do Escritório de Serviços de Alcoólicos Anônimos (ESL) no Rio de Janeiro.

“Quando eu ingressei na irmandade tínhamos apenas uns 500 grupos em todo o Território Nacional e cerca de 6.000 membros. Atualmente, são mais de 5.000 grupos, e, imagino eu, mais de 100.000 membros, com Escritórios de Serviços de AA em todos os Estados da Federação. A minha participação na irmandade em Escritório de Serviços e Comitês de AA se deu nos primeiros meses de 1980 e, desde então, não me afastei mais dos serviços. Sou muito grato a AA por ter salvado a minha vida”, afirma N.C.R.
Ações para celebrar os 76 anos
Em comemoração à chegada de AA no Brasil, na primeira semana de setembro, houve distribuição de folhetos sobre a irmandade e a doença do alcoolismo em locais de grande circulação na cidade, como a Praça Mauá e Central do Brasil. Os eventos foram promovidos pelo escritório de AA no Rio de Janeiro.
“É interessante perceber a capacidade de permanecer na abstinência de quem
frequenta Alcoólicos Anônimos em comparação à pessoa que participa somente de
outras fontes de recursos terapêuticos. Como especialista na área das compulsões há
25 anos, sempre indico uma reunião de recuperação, encaminho os endereços de
grupos ou, se a pessoa não ouviu falar de AA, apresento com algum folheto ou os livros
da irmandade que uso como recurso”, destaca Gabriela Henrique, psicóloga e vice-presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil.
A estrutura
Atualmente no estado do Rio de Janeiro são aproximadamente 450 grupos de Alcoólicos Anônimos (250 somente na região metropolitana) e cerca de 1.700 reuniões realizadas por
semana, sendo 76 de forma remota, e mais de mil chamadas recebidas no primeiro
semestre de 2023, em apenas uma das quatro Linhas de Ajuda 24h, com atendimento telefônico ou por aplicativo de whatsapp.
“Percebo que nos últimos anos houve uma menor estigmatização sobre o alcoolismo e Alcoólicos Anônimos cresceu muito no Brasil. As pessoas entenderam que a recuperação não é só para um desabrigado ou pessoas que ganham baixo salário. O alcoolismo atinge pessoas com cargo de alta escala também. Estar em AA envolve recuperar a ação sobre a própria vida, reparar danos causados a si e a quem convive, quando possível. Presenciar a reaproximação entre familiares é um resgate humanamente valioso. A reinserção das pessoas no mercado de trabalho e a possibilidade de um novo planejamento financeiro também. O programa de AA é mais do que parar de beber. É uma transformação de vida", completa Gabriela.
Atualmente, no Brasil, AA está presente em todos os estados e no Distrito Federal.
A HISTÓRIA DE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS NO BRASIL

Início no Rio de Janeiro

Em 1946, em Chicago (EUA), o publicitário norte-americano Herb D., de 42 anos, membro de AA sóbrio há três anos, assinou contrato para dirigir a filial de uma agência de publicidade no Rio de Janeiro, por três anos.

Em junho daquele ano Herb chegou ao Rio, ao lado de sua esposa Elizabeth, que diferente do marido, conhecia bem a língua portuguesa. Herb trazia o contato de outros membros estrangeiros para tentar criar um grupo de AA, o qual viria a chamar-se “AA Rio de Janeiro Nucleous” ou “Os Desidratados de Herb”.

Por alguns meses, as reuniões eram às segundas-feiras, numa sala do recém-inaugurado prédio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro do Rio de Janeiro, por iniciativa do jornalista Herbert Moses, presidente da ABI e um dos primeiros amigos de AA no país.

Nesse mesmo prédio, a ACM-Associação Cristã de Moços, cedeu ao AA, a caixa postal nº 254, onde durante anos foram recebidas inúmeras cartas com pedidos de ajuda.

Em maio de 1949 Herb e Elizabeth retornaram aos EUA, com o fim do contrato. Deixaram um pequeno e sólido grupo de AA, cuja coordenação passou para Antônio P., o primeiro brasileiro que se integrou à Irmandade, em 5 de setembro de 1947, sendo esse dia considerado o nascimento da irmandade no Brasil.

O grupo Central do Brasil

No dia 19 de fevereiro de 1952 foi fundado, na cidade do Rio de Janeiro, o Grupo Central do Brasil, inicialmente num imóvel alugado na Rua Marechal Floriano, transferindo-se depois para a Igreja de Sant’Anna, onde permanece até hoje. Foram diversas as contribuições do Grupo Central do Brasil. Dentre elas, o primeiro Boletim Nacional de Notícias de AA, a criação da sacola da Sétima Tradição e a tradução, impressão e distribuição gratuita de 34 títulos da literatura de A.A.

Em agosto de 1952, foi fundado o segundo grupo de A.A. do Brasil, em Friburgo, ainda na Área 01. Logo após surgiram grupos em Juiz de Fora e Belo Horizonte, em Minas Gerais, e em novembro de 1953, em Salvador na Bahia.

O primeiro livro nacional

No início de 1948, Herb publicou na imprensa uma série de artigos sobre o alcoolismo. Como resultado dessa publicidade, um morador de Niterói pediu ajuda para seu irmão, o contabilista Ha rold W., neto de ingleses, nascido no Rio de Janeiro. No dia 13 de março de 1948, logo de manhã, Herb foi visitar Harold na casa do irmão, onde morava de favor. O contabilista estendeu-lhe a mão direita, muito trêmula, enquanto, com a esquerda, segurava um copo de cachaça.

Herb combinou que Harold tentaria parar de beber substituindo os goles de cachaça por água da bica, até que o copo contivesse apenas água.

Em seguida, deveria traduzir para o português um livreto que Herb entregou-lhe. Marcaram novo encontro para dali a quatro dias, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Na data marcada, Harold bebeu de manhã o seu último gole e, à tarde, entregou a Herb a tradução, ainda incompleta, daquele que seria conhecido como “Livro Branco”, devido à cor da sua capa, que continha a sigla “AA”, o título “Alcoólicos Anônimos” e o endereço “Caixa Postal 254 – Rio de Janeiro, Brasil”. Publicado sete meses depois, em outubro de 1948, foi a primeira literatura da organização no Brasil.
*Reportagem de Marco Antonio Moreira