Para a piscóloga Claudia Melo, "a exposição precoce tem diversos efeitos prejudiciais"Arte Paulo Márcio

Se você é pai, mãe, tia ou responsável por alguma criança, adolescente, jovem é bom ficar muito atento, principalmente quando eles não saem de casa, do computador, da rede social e de sites não confiáveis. Afinal, o perigo não está somente nas ruas, mas por trás das telas também. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos dão conta de que cada vez mais a pornografia cresce de forma preocupante. No Brasil, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado já fez um debate sobre o vício em pornografia e suas consequências.
Pastores da Assembleia de Deus, o casal César e Juliana Reis Gomes, de 34 e 36 anos respectivamente, sofreu muito com a pornografia e hoje se sente curado pela fé. Na infância e adolescência, eles tiveram uma vida conturbada em relação a essa prática. César conta um pouco de sua história.
"Eu conheci a pornografia por causa do meu pai. Presenciei uma relação sexual e eu tinha uns 11 anos e aquilo despertou o meu interesse. O meu pai tinha a Playboy e eu via escondido. Desde então fiquei viciado em pornografia e isso foi durante muito tempo até a fase adulta, com mais de 20 anos. Eu tentava parar, fazia jejum, mas depois caía de novo. Havia o processo de arrependimento e remorso", disse César, acrescentando que era muito ruim viver aquilo e não conseguir parar de vez.
"O vício em pornografia me trouxe consequências terríveis porque você se sente sujo, se sente inútil, se sente a pior pessoa do mundo. Nós somos pessoas religiosas e isso influencia muito essa questão da do sagrado com o profano. A gente acaba erotizando tudo. Às vezes é um outdoor, um comercial com duas pessoas se beijando, assim, normal, não tem nada demais, mas já começa a erotizar aquilo. Sempre fui um cara de respeitar as mulheres. Você não quer desejar aquilo, mas está tão podre na tua cabeça, no teu cérebro, que fica difícil de você tirar aquilo de você".
Hoje mais maduro, Cesar tem noção do mal que a prática fez em sua vida. "Me traumatizou muito durante muitos anos. Acho que dificultou minhas questões de relacionamento na vida amorosa, na sociedade, eu me achava um patinho feio. Isso influenciou também nas minhas questões profissionais e sociais".
Juliana também sofreu com esse problema ainda em criança. "Era muito nova, e lembro que eu ficava muito irritada,  isolada e trancada dentro de casa, não queria sair para brincar, para estar com as outras crianças. Eu queria ver revistas com a pornografia e depois acabava vivendo a masturbação, e me sentia suja, impura. Ficava com aquele turbilhão de sentimentos e passava a ter repulsa por mim", diz ela, alertando para que os pai prestem atenção no comportamento dos seus filhos.
"Pais devem prestar atenção em seus filhos quando ficam muito tempo no banheiro, ou se isolam, e prestar muita atenção nas redes sociais dos adolescentes. O meu comportamento afetou a minha fala, a minha comunicação. Eu era muito tímida e envergonhada. Acredito que isso também influenciou". Ela acredita que atualmente seja ainda mais fácil porque está tudo mais aberto principalmente com a internet.
"Hoje as coisas são muito explícitas, faladas de uma forma assim que não tem muito pudor. Então leva a criança a imaginar, a pensar e a querer buscar. Acho fundamental que os pais conversem com seus filhos para que eles possam conseguir se abrir. As pessoas normalizam, mas não é normal. É uma coisa horrenda, você se torna um escravo".
"Com o advento da internet, a preocupação dos pais com o acesso à pornografia tornou-se ainda mais relevante"
Em entrevista ao jornal O DIA, a psicóloga Claudia Melo, especialista em vícios, crianças e adolescentes, e e o mestre em psicologia clínica Matheus Karounis falam sobre a pornografia.

O Dia: Com a internet, fica ainda mais fácil acessar conteúdo de pornografia. Como os pais podem fazer para que isso não aconteça?
Claudia Melo: Eu vejo que a prevenção começa com a comunicação aberta. Acho que quando a comunicação é aberta, honesta, entre pais e filhos, isso facilita muito essa abordagem sobre pornografia. A gente sabe que é importante educar as crianças, os adolescentes, e mostrar para eles os riscos que tem a pornografia, o quanto que a gente precisa se afastar de devidos conteúdos. É claro que essa conversa sempre vai ser ajustada dentro da linguagem de cada idade, do adolescente, da criança, mas nunca os pais podem abrir mão desse lugar, dessa conversa, desse diálogo.
Introduzir esse assunto fundamental para proteger essa criança, esse adolescente e, além dessa conversa, buscar ferramentas buscar estratégias, mostrar que importante ter um tempo estabelecido é deixar sempre a criança sabendo que você está observando o que ela está fazendo. Isso tem que ser colocado mesmo, estou de olho, você ainda não sabe se defender, você ainda não é grande ou adulto o suficiente para resolver e tomar decisões em relação ao que você está vendo e ouvindo, esse é o lugar do pai.
Deixar claro que na casa dele, essa criança vai ser protegida, esse adolescente vai ser protegido. Eu acho que criar esse ambiente seguro, buscando essa conversa sobre todos os tipos de temas, sem dúvida, vai trazer para essa criança uma segurança e isso vai ser fundamental para protegê-la.

Matheus Karounis: Com o advento da internet, a preocupação dos pais com o acesso à pornografia tornou-se ainda mais relevante. É fundamental estabelecer uma comunicação aberta e honesta com os filhos desde cedo. Os pais precisam implementar medidas práticas, como instalar controles parentais em dispositivos e manter computadores em áreas comuns da casa. Ainda que existam ferramentas tecnológicas de controle, o mais importante é desenvolver um ambiente de confiança onde as crianças se sintam seguras para conversar sobre suas dúvidas e experiências online. O diálogo constante e a educação digital são as melhores ferramentas de prevenção.


O DIA: O ator Chay Suede, o Mavi da novela Mania de Você, falou recentemente sobre o quanto a pornografia é prejudicial a todos. Você acha importante esse tipo de alerta vindo de uma pessoa pública?
Claudia Melo: Eu acredito que é importantíssimo esse tipo de conteúdo de vídeo, esse alerta de uma figura pública que traz um impacto significativo, especialmente sobre os jovens, porque às vezes os jovens têm uma imagem do artista um pouco distorcida, como se o artista não fosse impactado também por esses excessos, por esse tipo de conteúdo. Um artista que se coloca nesse lugar traz ao público o quanto que isso é nocivo para a saúde mental, para a saúde física. Eu vejo que isso traz um alerta maior. Mesmo algumas pessoas acreditando que isso não é tão importante, eu vejo que é muito válido. Eu acho que quanto mais a gente fala sobre o adoecimento, conhecimento, o quanto que isso gera uma distorção na própria imagem da criança e do adolescente, o quanto que isso vai trazer prejuízos futuros nas relações desse sujeito é interessantíssimo e muito importante esse tipo de conteúdo, de vídeos, de alerta para esses jovens e crianças.
Matheus Karounis: A manifestação de figuras públicas tem um impacto significativo na conscientização social. Casos como o de Terry Crews (ator norte-americano de filmes como 'As Branquelas'), que abertamente compartilhou sua luta pessoal contra o vício em pornografia, e mais recentemente Chay Suede, que trouxe o tema para debate no Brasil, são fundamentais para quebrar tabus. Terry Crews tornou-se um importante ativista nesta causa, demonstrando que este é um problema que afeta pessoas de todas as classes sociais e backgrounds. Quando personalidades conhecidas abordam temas sensíveis como os prejuízos da pornografia, isso facilita o diálogo em famílias e escolas, além de encorajar outras pessoas a buscarem ajuda.

O DIA: Como a pornografia age em crianças e adolescentes no que tange à saúde mental?
Claudia Melo: A exposição precoce, a pornografia, ela tem diversos efeitos prejudiciais. A gente sabe que ela gera uma distorção no desenvolvimento emocional, sexual. A criança ou adolescente, por estarem nessa fase de formação cognitiva e emocional, eles podem sim interpretar de uma forma muito inadequada o relacionamento, o sexo, a relação com o outro, entendendo que o sexo é algo muito superficial e sabemos que não é assim, é uma relação que é construída também com essa base de afeto, de carinho e respeito, não só o sexo por sexo. E quando o adolescente é exposto a esse tipo de conteúdo, você sabe que ele distorce o que vê. Ele não consegue compreender que naquele momento ele está sim sentindo algum tipo de prazer, euforia, mas isso vai gerar nele, em algum tempo, ansiedade.

Matheus Karounis: A exposição à pornografia afeta profundamente o desenvolvimento psicológico de crianças e adolescentes. Um recente estudo descritivo da Universidade de León, na Espanha (2025), demonstrou que o cérebro em desenvolvimento é especialmente vulnerável a conteúdos sexuais explícitos, podendo resultar em alterações significativas nas áreas responsáveis pelo processamento de recompensa e tomada de decisão. O estudo identificou padrões preocupantes de dessensibilização emocional, dificuldades de concentração e problemas de socialização em jovens expostos precocemente a este tipo de conteúdo. Os pesquisadores também observaram correlações entre exposição precoce e desenvolvimento de quadros de ansiedade e depressão.

O DIA: Uma criança/adolescente que teve muito contato com a pornografia pode se transformar num adulto compulsivo por sexo ou em alguém assexuado?
Claudia Melo: Os impactos variam de indivíduo para indivíduo. A gente sabe que a exposição precoce, de uma forma frequente, ela traz padrões comportamentais fora daquilo que é real. Algumas pessoas desenvolvem, sim, comportamentos compulsivos relacionados ao sexo, têm dificuldade em experimentar uma relação saudável, A gente percebe que nessa fala, às vezes, do sujeito, ele tem uma diminuição no interesse sexual real, já que a pornografia tomou tanto espaço e conta das suas questões emocionais e afetivas que ele acaba não querendo mais ter um parceiro real.
Porque para ter um parceiro real isso demanda tempo, com energia, disposição, um bom conteúdo linguístico, disposição e disponibilidade para construir essa relação. A gente sabe que, infelizmente, esse tipo de conteúdo vai trazer, sim, prejuízos. E os desdobramentos, a gente vê realmente na fase adulta, o quanto que o sujeito chega na clínica sofrendo e às vezes não conseguindo manter um relacionamento saudável e duradouro, porque o vício fica ali, no meio dessa relação.-

Matheus Karounis: A exposição precoce à pornografia pode efetivamente influenciar o desenvolvimento sexual do indivíduo, mas não determina necessariamente um destino específico. A neuroplasticidade do cérebro jovem torna-o mais suscetível a desenvolver padrões problemáticos de comportamento sexual, que podem manifestar-se tanto como compulsão quanto como aversão. No entanto, é fundamental compreender que, com acompanhamento psicológico adequado e suporte familiar, é possível trabalhar estas questões e desenvolver uma relação saudável com a sexualidade. O fator determinante para o prognóstico é geralmente a rapidez com que a intervenção terapêutica é iniciada.

O DIA: Existe algum estudo que aponte aumento da pornografia infantil pós internet?
Claudia Melo: Sim, os estudos indicam um aumento no compartilhamento e no acesso à pornografia infantil. Com o avanço da internet, é claro que isso acabou aumentando muito. E a facilidade de anonimato online, isso com certeza dificultou muito, porque temos essas plataformas digitais que contribuem para esse problema. Mas, no entanto, a gente precisa distinguir que a pornografia infantil é ilegal e traz prejuízos mentais, físicos para a criança e o adolescente. E, com certeza, isso também vai aparecer nessa fase adulta.

Matheus Karounis: Uma importante revisão sistemática realizada pela Universidade de Hong Kong em 2023, intitulada "Problematic Porn Use and Cross-Cultural Differences: A Brief Review", demonstrou um aumento alarmante no consumo de pornografia, especialmente entre crianças e adolescentes, com o advento da internet e mais significativamente durante a pandemia de Covid-19. O estudo correlaciona-se com pesquisas da Universidade de León, que apontam o fácil acesso a smartphones como principal facilitador deste fenômeno. Os pesquisadores identificaram um aumento significativo não apenas no consumo, mas também na produção e distribuição de material ilegal, criando novos desafios para autoridades e profissionais de saúde mental

O DIA: Como profissional, qual a orientação para que essa prática diminua?
Claudia Melo: Então, a gente precisa ainda falar sobre esse tema, falar sobre os prejuízos e fazer essas denúncias. deixar claro que isso não é legal, isso é criminoso, trazer esse tema de uma forma aberta, educativa, nas escolas, nos locais onde tem crianças e jovens, olhar para essa faixa etária com carinho e respeito, mostrando que ainda é possível salvar essa geração, ainda é possível falar sobre isso, ainda é possível trazer esse alerta, esse tema, ele não pode ficar reservado aos adultos, tem que vir realmente de uma forma que atinja essa camada, que é uma camada muito mais frágil e sensível, que são as crianças e os nossos adolescentes.
Matheus Karounis: É altamente recomendável uma abordagem integrada que combine prevenção, educação e intervenção quando necessário. É essencial fortalecer os vínculos familiares e promover uma educação sexual adequada à idade, sempre considerando o contexto sociocultural da família. O acompanhamento psicológico preventivo pode ser benéfico, mesmo em casos onde não houve exposição confirmada.
Pais e educadores devem estar atentos a mudanças comportamentais e criar um ambiente onde crianças e adolescentes se sintam seguros para compartilhar suas experiências e preocupações. A implementação de programas de alfabetização digital nas escolas, combinada com suporte psicológico quando necessário, tem mostrado resultados promissores na prevenção e tratamento de problemas relacionados à exposição precoce à pornografia.