No mês de abril tem o Dia Mundial da Conscientização do Autismo (2) e a intenção é quebrar estereótipos, dar voz às experiências de pessoas autistas e construir uma sociedade inclusiva. A reportagem do Jornal O DIA reuniu especialistas, psicólogos e mulheres que receberam o diagnóstico de autismo na vida adulta para ampliar a compreensão sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Além disso, entrevistou o professor Lucelmo Lacerda, que é autista, e seu filho também.
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O DIA: Muita gente ainda desconhece o que é o autismo. Como poderíamos definir de uma forma simples para o leitor?
Lucelmo Lacerda: O autismo é uma forma distinta de desenvolvimento neurológico, o que faz com que o indivíduo apresente comportamentos muito diferentes. Há um prejuízo na comunicação social, com dificuldades na comunicação, na interação e no entendimento das relações sociais. Também estão presentes comportamentos restritos e repetitivos, como movimentos repetitivos, foco muito intenso em determinados assuntos, rigidez cognitiva importante e alterações sensoriais. Tudo isso, claro, traz prejuízos ao indivíduo. Por isso, é considerado um transtorno: o Transtorno do Espectro Autista.
O DIA: Como é feita a avaliação do grau do espectro autista?
Lucelmo Lacerda: Existem vários protocolos de avaliação que podem ajudar no diagnóstico. Idealmente, ele deve ser realizado por um médico, mas também com o apoio de uma equipe multidisciplinar — pelo menos com psicólogo, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional. O médico realiza exames para descartar outras condições, enquanto os demais profissionais fazem avaliações para observar os comportamentos da criança, adolescente ou adulto. Em geral, essa avaliação multidisciplinar é mais comum em crianças. Após essa observação e possíveis exames, chega-se ao diagnóstico do autismo e se define o nível de dependência ou gravidade da condição, que pode ser classificada como nível 1, 2 ou 3.
O DIA: O que pode ser feito para quem tem TEA ter uma qualidade de vida melhor?
Lucelmo Lacerda: Primeiro, é fundamental que a sociedade seja mais inclusiva e aceite mais as diferenças e a diversidade entre as pessoas. Isso envolve tanto o comportamento pessoal — com atitudes mais compreensivas e acolhedoras — quanto mudanças institucionais. Por exemplo, é necessário haver estruturas que proporcionem conforto para pessoas autistas, como recursos que evitem estimulação excessiva, espaços sensoriais, uso de abafadores de ruído e, principalmente, o reconhecimento legal do autismo como uma deficiência, com os mesmos direitos garantidos às deficiências físicas ou visíveis. Além disso, é preciso garantir acesso à educação inclusiva de qualidade e a tratamentos baseados em evidências científicas. Isso é essencial para que essas pessoas possam se desenvolver ao máximo de seu potencial.
O DIA: O senhor, que também é autista, acredita que atualmente a sociedade entende mais sobre os autistas ou ainda é muito difícil? Lucelmo Lacerda: As duas respostas estão corretas. Ainda é muito difícil, mas, se fizermos uma análise comparativa com o que era há 15 anos, houve uma enorme mudança. Meu filho recebeu o diagnóstico há cerca de 14 anos. Comparando aquela época com hoje, a situação é completamente distinta. Estamos avançando, mas ainda há muito a ser feito.
O DIA: Nas escolas públicas do Rio de Janeiro, tem a função do mediador, mas os pais reclamam muito que, apesar de existir na teoria, na maioria dos colégios é difícil encontrar. Como essa situação pode ser revertida?
Lucelmo Lacerda: De fato, esses pais estão corretos. Existem vários problemas em torno da figura do mediador. Primeiro, é difícil encontrá-lo; segundo, na maioria das vezes, ele não tem formação ou treinamento adequados. Mesmo quando há alguma capacitação, o que é raríssimo, geralmente não existe um Plano Educacional Individualizado (PEI) a ser seguido. É uma situação caótica. Se conseguirmos garantir a presença do mediador, os outros elementos da equação — como formação e elaboração do PEI — podem ser realizados na própria escola, com o apoio da Secretaria de Educação. Ou seja, garantir o mediador já é um grande passo, e as demais ações não exigem grandes investimentos adicionais.
Superar esse cenário exige vontade política por parte dos tomadores de decisão e também conhecimento técnico — é preciso saber qual formação oferecer, como treinar esses profissionais e como construir um PEI de qualidade. Quando esses dois fatores se unem — vontade política e capacidade técnica —, conseguimos avançar. Mas isso só será possível com a luta organizada dos pais, como já temos visto nos últimos anos, com conquistas importantes sendo alcançadas.
A importância do diagnóstico e do acolhimento
Muitas pessoas tiveram o diagnóstico tardio e somente depois conseguiram entender o que se passava com elas. Estudante de Medicina na Universidade Federal de Pelotas, Dilza Dorneles da Silva, de 44 anos, relata que sua jornada começou com a investigação do diagnóstico de seu filho. "Ele tinha características que eu via em mim. A hiperlexia, o gosto por rotina, a dificuldade de interação social. Sempre fui articulada para falar, mas tinha dificuldades com linguagem funcional. Só depois entendi que isso se chama masking, viver um personagem socialmente aceito até a exaustão sensorial", conta. O diagnóstico foi um divisor de águas em sua vida. "Hoje entendo os cinco minutos que preciso me retirar para reorganizar meus sentidos. Aprendi a respeitar meus limites e conheci outras pessoas como eu. Passamos a entender nossos comportamentos e isso ajuda a performar menos", completa.
Assim como Dilza, Jenifer Mendes, 36 anos, neuropsicopedagoga especialista em superdotação, também recebeu o diagnóstico na vida adulta. "A superdotação na área verbal mascarou muito as minhas dificuldades. Quando meu filho foi diagnosticado, vi muito de mim nele. Lembro de treinar contato visual desde os cinco anos porque diziam olha pra mim. Sempre fui considerada estranha, e hoje vejo que era o autismo. Receber o diagnóstico foi um ato de amor próprio", explica. Para ela, o diagnóstico trouxe acolhimento e estratégias: "Hoje comunico meus limites, evito ambientes caóticos e aprendo a me regular emocionalmente. Ainda tenho desafios com desregulação, disfunção executiva e hipersensibilidade, mas agora sei que não é exagero. É o meu jeito de funcionar", avalia.
Desafios e caminhos para uma inclusão efetiva
A inclusão de adolescentes atípicos no ambiente escolar ainda enfrenta desafios significativos, sendo o bullying o mais preocupante. Segundo o IBGE, o Brasil tem cerca de 2 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e pesquisas indicam que estudantes autistas têm até três vezes mais chances de sofrer agressões físicas e verbais na escola. A falta de compreensão sobre suas particularidades pode levar a exclusão, isolamento e impactos emocionais graves. Além disso, a estrutura escolar tradicional, pouco adaptada às suas necessidades, contribui para a evasão e dificuldades no aprendizado.
Para garantir o desenvolvimento pleno desses alunos, é fundamental compreender os desafios que enfrentam diariamente. Segundo Fernanda King, neuropedagoga, especialista em Educação e fundadora da Petit Kids Cultural Center, muitas escolas ainda não adaptam suas metodologias para atender às diferentes formas de aprendizagem, o que pode causar uma experiência escolar frustrante e estressante.
"O bullying é um problema generalizado nas escolas brasileiras e as crianças atípicas acabam sofrendo muito mais, porque estão mais expostas e vulneráveis, algumas delas inclusive são não verbais, ou seja, têm muito pouca chance de defesa e de denunciar as agressões. O percentual de alunos atípicos que declaram já ter sofrido isso é assustador. A escola tem que trabalhar com conscientização, prevenção, esclarecimento, investir muito em palestras, trazer profissionais externos, psicólogos, advogados, que possam primeiro informar, porque o preconceito vem muito da falta de informação e de conhecimento", explica.
Além das dificuldades acadêmicas, esses jovens lidam com o impacto direto da rejeição e do preconceito. O bullying, que pode se manifestar em zombarias, agressões ou isolamento social, compromete a autoestima e o bem-estar emocional dos estudantes atípicos. "Todos têm que estar engajados no combate a essa prática, que normalmente tem três atores principais. O que sofre, o que pratica, e aquele que vê e nada faz. Se esse terceiro ator começar a denunciar, se tiver um canal confiável de denúncias anônimas na escola, a gente consegue começar a agir na conscientização de quem pratica, com conversas diretas e esclarecedoras. Então eu acredito muito em campanhas de incentivo à denúncia, com um canal de escuta muito próximo e muito aberto entre a coordenação e os alunos. Além disso, é importante realizar reuniões de pais bastante efetivas, se possível com a presença de especialistas no assunto para que as famílias entendam a gravidade do problema", destaca.
De acordo com a profissiona, outro fator crucial para a inclusão desses adolescentes é a capacitação dos educadores. "Inclusão para ser bem feita requer investimento e boa vontade. As escolas têm que investir na formação de professores e na contratação de profissionais de apoio igualmente capacitados. Inclusão só no papel de nada vale. Aceitar um aluno com deficiência na instituição e não incluir de verdade pode causar mais traumas que benefícios. Além disso, ter uma equipe multidisciplinar na gestão é fundamental. Ao menos um psicólogo para realizar a orientação de pais e alunos, além da coordenação e da direção terem boas noções a respeito de adaptação de currículo e de atendimento humanizado às famílias atípicas é o básico para que tudo corra bem. A inclusão escolar real vai além de matricular alunos com deficiência ou com necessidades específicas — ela significa garantir que todos tenham as mesmas oportunidades de aprender, participar e se desenvolver, respeitando suas individualidades. Inclusão real é quando todos os estudantes se sentem pertencentes, aprendem de forma significativa e têm suas potencialidades valorizadas. Não olhemos para o que o aluno ‘não faz’, mas sim para tudo o que ele é capaz de realizar", conclui Fernanda King.
O papel da psicologia e da escola
O psicólogo e neuropsicólogo Damião Silva, especialista em TEA, reforça que o trabalho terapêutico é essencial para ajudar pessoas autistas a desenvolverem estratégias de regulação emocional, especialmente em situações de sobrecarga sensorial. "Quando há uma sobrecarga, é preciso se afastar do estímulo – seja auditivo, visual ou tátil. Usamos técnicas de autorregulação, como objetos sensoriais, ambientes previsíveis e respiração. Além disso, trabalhamos o reconhecimento e nomeação das emoções, pois a dificuldade de comunicação está por trás da maioria das crises."
Damião também enfatiza o impacto da inclusão escolar bem feita. "Ela promove autoestima, pertencimento e desenvolvimento social. Quando a escola respeita as necessidades do aluno com TEA, isso fortalece sua saúde emocional. Por outro lado, a exclusão gera traumas. A inclusão só será possível com conhecimento, empatia e formação adequada dos profissionais."
A psicóloga escolar Camila Conceição, da Legacy School, explica que a escola tem papel crucial na identificação precoce do autismo. "É possível observar dificuldades de interação social, comunicação e comportamentos estereotipados. Ao notar esses sinais, é essencial acolher a família e encaminhar para avaliação especializada."
Ela destaca que os educadores precisam adotar estratégias específicas para promover a inclusão: "Ambientes previsíveis, comunicação clara, recursos visuais, tempo estendido e incentivo à socialização são medidas eficazes. E quando ocorrem crises emocionais, manter a calma, oferecer um espaço tranquilo e identificar os gatilhos é fundamental."
Adaptações se tornam necessárias
A psicóloga Tâmille Cristhine de Morais, especialista em atendimento infantojuvenil, explica que pessoas autistas enfrentam desafios emocionais significativos. "A regulação emocional pode ser prejudicada por alterações em funções cognitivas e hipersensibilidade sensorial. Isso pode levar a meltdowns, respostas intensas e involuntárias a estímulos excessivos. Além disso, a dificuldade em compreender pensamentos e sentimentos dos outros pode aumentar o isolamento."
A adaptação curricular, segundo Camila Conceição, deve respeitar as habilidades e necessidades do aluno autista. "Isso inclui simplificar conteúdos, usar recursos visuais, dividir tarefas em etapas menores e oferecer pausas para evitar sobrecarga", pontua. Camila ressalta ainda que a formação continuada dos profissionais da educação é essencial: "Capacitações sobre o autismo, estratégias de inclusão e empatia são indispensáveis. A parceria entre escola, família e terapeutas é o pilar para o sucesso escolar e emocional da criança", afirma a profissional.
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