Mais do que a fragilidade do sistema elétrico, o apagão que atingiu parte do país na manhã de terça-feira passada expôs a debilidade das ideias e o despreparo de algumas autoridades diante de eventos que demandam tratamento técnico, sério e especializado. O problema foi, sem dúvida, grave e comprovou a necessidade de se aperfeiçoar a segurança e na eficiência do sistema de geração, transmissão e distribuição de energia. A forma como foi tratado por pessoas ligadas ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, comprovou que, no Brasil, a ideologia se transformou em algo superior às políticas públicas e, em nome dela, as autoridades podem dizer qualquer tolice.
O incidente, sem dúvida, foi sério e merece ser investigado em detalhes — mas, à primeira vista, pareceu menos grave do que alguns dos apagões anteriores. Em extensão, foi o que atingiu o maior número de estados: 25 e mais o Distrito Federal. Só Roraima, que ainda não foi conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), não sofreu a queda de energia.
Por todos os outros parâmetros, porém, o incidente está longe de ter sido o maior ou o mais grave da história. Pelos cálculos dos técnicos, cerca de 30 milhões de pessoas chegaram a ficar sem eletricidade. Nesse aspecto, o maior apagão de todos aconteceu em 1999 e foi causado por raios que atingiram a linha de transmissão da usina de Itaipu em 1999. Ele afetou um total de 76 milhões de pessoas. Na ocasião, o Rio e São Paulo ficaram quase seis horas sem energia. Outro exemplo: em 2009, 70 milhões de pessoas ficaram horas às escuras no Sul, no Sudeste e no Centro Oeste.
Diante desses números, e a despeito dos transtornos causados pela queda na distribuição de energia, o problema da terça-feira passada foi até modesto. E a vida teria seguido adiante se a vanguarda do atraso não tivesse entrado em ação para — veja só!!! — dar um sentido ideológico ao apagão do dia 15 de agosto. Isso mesmo! Para algumas pessoas bem postas na cena política nacional, a eletricidade no Brasil tem ideologia!
"MÃO FIRME DO ESTADO" — O humorista Millôr Fernandes — que teria completado 100 anos na quarta-feira, 16 de agosto — disse numa de suas frases antológicas que uma ideologia "quando fica bem velhinha, vem morar no Brasil". E aqui, pelo que se vê, sempre encontra abrigo em cabeças que vivem presas em conceitos do século retrasado.
Desta vez, a turma se esforçou para relacionar a queda no fornecimento de energia — um fato iminentemente técnico e, como se viu, nada inédito — com a privatização da maior companhia de eletricidade do país, a Eletrobras. A venda da companhia, só para recordar, aconteceu há mais de um ano, no dia 14 de junho de 2022, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, foi às redes sociais alardear que "a conta da privatização irresponsável da Eletrobras chegou". A presidente do PT, deputada Gleise Hoffmann, disse que "após o apagão, o presidente da Eletrobras pediu demissão".
O ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, por sua vez, fez uma análise tão rocambolesca do episódio que, "sem querer, querendo", como diria o personagem Chaves da TV, relacionou o apagão com a venda da estatal. "Eu seria leviano em apontar que há uma causa direta com a privatização da Eletrobras. O que não posso faltar é com a coerência. A minha posição sempre foi essa, e não vai deixar de ser: um setor estratégico como esse deve ter a mão firme do Estado brasileiro".
Na sequência da entrevista, Silveira foi ainda mais claro naquilo que ele mesmo havia considerado uma leviandade. "A minha posição é a de que a privatização fez muito mal, em especial no modelo em que foi feita, ao sistema", disse. E, numa demonstração de desconhecimento da área sob sua responsabilidade, chamou a Eletrobras de "braço operacional do sistema". Qualquer brasileiro tem o direito de cometer esse deslize. Ele, não!
CABIDE DE EMPREGOS — Outros parlamentares de menor expressão meteram o bedelho nessa conversa. Mas essas três opiniões — a de Gleisi, a de Randolfe e do ministro — são suficientes para demonstrar o oportunismo, a ignorância ou a má-fé dos defensores do Estado inchado na hora de defender seus pontos de vista.
Vamos aos fatos — porque das versões, todos estamos fartos. Como disse Gleise, o então presidente Wilson Ferreira Jr. de fato deixou o comando da Eletrobras. Ele entregou o cargo na semana anterior ao apagão e sua saída foi anunciada da forma correta. Um comunicado prévio à Comissão de Valores Mobiliários e ao mercado foi distribuído no dia anterior ao apagão — e não depois do episódio, como anunciou a nobre deputada.
Já as opiniões do senador Randolfe e do ministro Silveira pecam pela omissão de explicações importantes. A principal delas é a mais óbvia de todas: como e por que razão a venda de uma estatal, que era um poço de ineficiência nas mãos do Estado e sempre funcionou como um cabide de empregos para os amigos do governo, interferiu na estabilidade do sistema elétrico?
No caso de Randolfe, o melhor a fazer é deixar para lá. Qualquer ideia que parta dele é incapaz de contribuir para esse debate. Já no caso do ministro, a situação é mais séria. Sobretudo naquilo que diz respeito à Eletrobras e ao papel da empresa no sistema elétrico nacional. A empresa é uma holding que tem sob seu guarda-chuva as antigas estatais Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul e Eletropar e já deveria ter sido privatizada há muito antes de 2022. Com a reorganização do sistema elétrico brasileiro, ao longo dos anos 1990, foi incluída no Programa Nacional de Desestatização — mas a vitória de Lula, em 2003, paralisou o processo e a manteve nas mãos do Estado.
Como reflexo do antigo modelo estatal que a gerou, a companhia está presente em todas as pontas do sistema elétrico. Ou seja, atua na geração, na transmissão e na distribuição de energia. Com a privatização, a partir de um modelo que pulverizou o seu controle no mercado, a empresa ganhou fôlego e teve triplicada sua capacidade de investimento. E deu início a um programa de recuperação de suas estruturas de geração e de suas redes de transmissão depois de anos de deterioração nas mãos de um Estado que gasta tudo que arrecada na manutenção da própria máquina.
Desde o início do atual governo Lula, no entanto, a venda da Eletrobras vem sendo alvo de críticas e já houve uma série de tentativas mais ou menos explícitas, mas todas mal sucedidas, de devolvê-la à condição de estatal. Nesse sentido, o apagão da terça-feira foi uma oportunidade de ouro para se elevar o tom da cantilena.
DE PARIS A MOSCOU — A empresa cumpre, sem dúvida, um papel importante para o equilíbrio do sistema. Mas está longe (e o ministro tem a obrigação de saber disso) de ser "o braço operacional do sistema". Esse papel cabe a um órgão colegiado que existe há exatos 25 anos e que se chama, justamente, Operador Nacional do Sistema (ONS). Criado em 26 de agosto de 1998, o ONS conta com representantes do ministério de Silveira. Mas não é subordinado a ele. Suas decisões são tomadas com base nas diretrizes da Agência Nacional de Energia Elétrica — e não do ministério.
O ONS é o responsável pelo SIN, a rede que cobre todas as regiões do país e faz as conexões necessárias para que, por exemplo, a eletricidade produzida pela Usina de Xingó, na divisa de Alagoas com Sergipe, circule pelo país inteiro e supra, por exemplo, as necessidades de consumidores de Minas Gerais ou São Paulo.
Trata-se de uma rede complexa, com mais de 170 mil quilômetros de extensão e, dada a distância de algumas usinas geradoras em relação aos centros de consumo, há linhas de transmissão com extensão superior a três mil quilômetros. Para um europeu entender o que essa distância significa, basta dizer que ela é superior à que separa, em linha reta, a cidade de Paris, na França, de Moscou, na Rússia...
A vantagem desse sistema é justamente a de fazer com que todo o país possa ser abastecido com eletricidade sem depender de uma fonte específica de geração. É ele que permitirá, por exemplo, que o fantástico potencial de geração de energia renovável — notadamente solar e eólica — das regiões Norte e Nordeste venha a ser aproveitado pelos consumidores do Sul e no Sudeste depois de feitos os necessários investimentos em linhas de transmissão.
A desvantagem é justamente a que se viu na terça-feira passada. Ou seja, permitir que uma instabilidade localizada num ponto específico prejudique o país inteiro. Ao contrário de outros apagões, causados pela incidência de raios, pela queda de torres de transmissão ou até mesmo por incêndios florestais, desta vez não houve uma causa externa conhecida que justificasse o problema. O que se sabe até agora é que houve uma falha importante na linha de transmissão entre a cidade de Quixadá, no Ceará, e a capital Fortaleza — mas ainda é preciso que as investigações avancem para se saber exatamente o que aconteceu.
PROVIDÊNCIA NECESSÁRIA — As hipóteses são inúmeras, a começar por problemas causadas pelos anos e anos em que o sistema operacional da Eletrobras, ainda nas mãos do Estado, passou sem receber a manutenção e a renovação adequada. Outra hipótese, mencionada pelo próprio Silveira ao tentar minimizar os estragos causados pelo tamanho das tolices que andou dizendo, foi que pode ter havido uma sabotagem e que, por esse motivo, é necessário que a Polícia Federal entre em cena para investigar os acontecimentos.
A providência é necessária — e se o ministro estivesse preocupado em atender às demandas que recebe, ao invés de engrossar o coro dos petistas contra uma privatização bem-sucedida, já teria sido tomada há mais tempo. Logo depois de sua posse, em janeiro deste ano, foi levado ao conhecimento de Silveira um documento com números alarmantes, levantados pelas principais empresas transmissoras de energia do país.
Os números dão conta de que, entre 2019 e 2022, houve nada menos do que 650 ocorrências de atos criminosos na rede de transmissão de energia. Desses casos, cerca de 30 provocaram pequenos blecautes de extensão regional. Das concorrências, quase 500 estavam relacionadas com o furto de cabos elétricos e de outros materiais. É um problema que exige aquilo que Silveira chamou de "mão firme do Estado". Mas, ao invés de chamar a Polícia Federal para ajudar a resolvê-lo, o ministro não moveu uma palha para resolvê-lo.
Outro problema que requer firmeza do Estado, mas que nunca despertou o interesse especial de Silveira — que é delegado de polícia por formação —, é o do furto de energia por meio de "gatos" na rede elétrica. Um estudo feito no ano passado pela Fundação Getúlio Vargas dá conta de que, de cada 100 reais que o carioca paga em sua conta de luz, R$ 10 são destinados a cobrir o prejuízo das distribuidoras de energia com os "gatos".
Como este e outros jornais já cansaram de denunciar, o furto e a comercialização irregular de energia por meio de milícias que atuam em comunidades são um problema sério, que prejudica as empresas do setor e põe em risco a segurança da população. Mas o ministro, como se vê, não está nem um pouco preocupado com isso — e acha que a causa dos problemas do sistema brasileiro está, veja só, na privatização...
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