O governo "comemora" o aumento de beneficiados do Bolsa Família sem, no entanto, criar uma porta de saída para o programa que garante renda aos mais vulneráveis
O governo anunciou na semana passada, com um estardalhaço monumental, os dados do programa Bolsa Família referentes ao mês de abril e festejou que o valor do tíquete médio de R$ 670,49 — o maior da história do programa. Isso se deve, de acordo com o material distribuído pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), que é o órgão responsável pela administração do auxílio, ao acréscimo da quantia de R$ 150 por criança de até seis anos, que começou a ser pago em março. Chamado de Benefício Primeira Infância, essa nova rubrica alcançou um total de 8,9 milhões de crianças, cerca de 17 mil a mais do que no mês anterior. Existem atualmente no país um total de 21,1 milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família. O desembolso total com o programa foi de R$ 14 bilhões.
Independentemente de chamá-lo de Bolsa Família ou de Auxílio Brasil, nome que recebeu no governo anterior, o programa de apoio às famílias mais vulneráveis é essencial. Para um país em que — de acordo com os dados das Nações Unidas mostrados na semana passada neste mesmo espaço — 20,1 milhões de pessoas (ou cerca de 9,9% da população) passavam fome entre 2020 e 2022 e em que 70,3 milhões de indivíduos (ou seja, um a cada três moradores) nem sempre tiveram o que comer naquele período, esse dinheiro é mais do que bem-vindo. Ele pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Nenhuma pessoa com um mínimo de sensibilidade tem, portanto, o direito de se opor a esse tipo de iniciativa — que, justiça seja feita, começou a ganhar seus contornos atuais, com benefícios elevados para a casa de R$ 600 por mês, no governo anterior, de Jair Bolsonaro. Isso aconteceu durante o período mais crítico da pandemia da covid-19, quando já havia se iniciado a coleta de dados para a pesquisa das Nações Unidas.
Ali ficou claro que o acesso ao Bolsa Família era, em muitos casos, o único caminho para milhões e milhões de brasileiros levarem um pouco de comida para dentro de casa. O objetivo do governo com a ampliação do programa que está em curso neste momento, “é tirar novamente o Brasil do mapa da fome e da insegurança alimentar, mas também reduzir a pobreza. Somente agora, no novo Bolsa Família, nós já comemoramos (sic) 18,5 milhões de famílias, 43,5 milhões de pessoas que elevaram a renda este ano e que estão fora da pobreza”, disse o ministro Wellington Dias, responsável pelas políticas de combate à fome no país. Nas últimas semanas, Dias, mesmo sendo um petista do círculo mais próximo de Lula, foi apontado pela imprensa como um nome prestes a deixar o ministério justamente porque não estava conseguindo utilizar o vistoso Bolsa Família para melhorar os índices de aprovação do governo. Em tempo: para efeitos estatísticos, a linha de pobreza extrema é ultrapassada no momento em que a renda mensal per capita de uma família é superior a R$ 218 por mês.
“BOLSA ESMOLA” — O Bolsa Família foi, é e continuará sendo necessário ainda por muito tempo e sua importância tem que ser reconhecida por todo o país — mas daí a “comemorar”, como fez o ministro, a inclusão de mais e mais pessoas nesse benefício vai uma diferença enorme. O certo, com todo respeito, seria lamentar. Por mais alívio que traga a uma faixa da população que de fato convive com uma situação de vulnerabilidade extrema, o país precisa se preocupar com a perpetuação de mecanismos como o Bolsa Família e com a forma com que eles são manipulados por determinados políticos que, ao demonstrar uma grande preocupação com os pobres, se mostram mesmo preocupados é com a própria carreira.
Em sua clássica composição Vozes da Seca, dos anos 1950, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira agradeciam o auxílio dado pelo governo e pelos "sulistas" às famílias flageladas da região Nordeste, mas advertiam que "uma esmola a um homem que é são / ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão". Nessa linha, melhor do que comemorar a inclusão e os benefícios que esse tipo de programa traz para a parcela mais vulnerável da população brasileira seria, ao mesmo tempo (e sem desconhecer a necessidade desse recurso) tomar providências concretas que levassem o Bolsa Família a, gradativamente, perder a importância até o dia em que se tornasse desnecessário. Será que esse sonho tem chances de, um dia, se tornar realidade?
O Brasil terá, sim, motivos para no dia comemorar em que as pessoas deixarem a linha da pobreza não porque receberam uma ajuda do governo — mas porque conseguiram, num ambiente de crescimento econômico sustentável, melhorar sua renda com o salário de um emprego estável, bem remunerado e com boas perspectivas de conseguir uma moradia digna e de melhor de vida ao longo da carreira.
Mais do que comemorar a inclusão, melhor seria adotar políticas de desenvolvimento e criar programas de geração de emprego que, na medida em que apresentassem resultados, possibilitasse a exclusão do programa das pessoas que já não precisariam dele para sobreviver. Mas isso, pelo visto, parece não ser considerado pelos responsáveis pela administração desse programa social. Quanto maior for o tempo que as pessoas permanecerem dependentes do programa, pelo que parece, mais motivos eles terão para comemorar.
Esse, aliás, é um ponto importante e que precisa ser sempre mencionado para nunca cair no esquecimento: o Bolsa Família não foi, como muita gente do atual governo faz questão de alardear, uma invenção das gestões petistas. Insistir nesse ponto, com todo respeito, não passa de disseminação de fake news. Seu embrião foi um programa concebido ainda no governo Fenando Henrique Cardoso com o nome de Bolsa Escola. O objetivo, na versão original — que chegou ter quase cinco milhões de beneficiados — era combater o trabalho infantil ao condicionar o auxílio dado às famílias mais vulneráveis à matrícula e à frequência regular dos filhos na escola pública. Os recursos pagos naquela ocasião eram provenientes do orçamento do Ministério da Educação.
Um detalhe: na época, muitos militantes do PT na área da educação faziam questão de espinafrar o caráter supostamente assistencialista do programa, que era chamado pelos críticos de "Bolsa Esmola". Eles diziam que a distribuição de recursos com essa finalidade, ao invés de resolver a situação, contribuiria apenas para perpetuar a dependência das famílias beneficiadas.
Veio o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, e, com ele, a ampliação e uma mudança estratégica na gestão do programa. Uma série de iniciativas dispersas por diferentes órgãos da administração federal — e que se destinavam a subsidiar alimentos, medicamentos e até a compra de botijão de gás — foram unificados no Bolsa Família. A partir daí o programa, de fato, teve sua dimensão multiplicada e, na medida em que ganhou musculatura, se transformou numa peça importante da propaganda eleitoral petista.
A impressão que se tem hoje em dia, a partir da maneira com que ele é tratado pelos militantes do partido, é a de que o Bolsa Família é administrado com os olhos voltados muito mais para os dividendos eleitorais que podem render ao partido do que para a necessidade das famílias assistidas. Não há eleição em que candidatos do PT não se apresentem como a última linha de defesa desse tipo de benefício nem saiam acusando os adversários de perseguir os eleitores de baixa renda e pretender acabar com o programa.
DINHEIRO VIVO — É impossível negar que um programa com as características do Bolsa Família, em que uma determinada quantia em dinheiro vivo é depositada diretamente na conta do beneficiário, tem um enorme potencial de uso eleitoral. Nas mãos de uma estrutura eleitoral eficiente, profissional e azeitada, como é a máquina petista, ele pode garantir a perpetuação de grupos no poder — e os mapas das últimas disputas eleitorais parecem confirmar esse ponto de vista.
Alguns números em torno do programa são interessantes. Em 13 das 27 unidades da federação, o número de beneficiados pelo Bolsa Família supera o de trabalhadores com carteira assinada. Isso acontece no Maranhão (onde há mais de dois beneficiados do Bolsa Família para cada trabalhador com carteira assinada), no Piauí, no Amapá, no Pará, na Paraíba, no Acre, em Alagoas, em Sergipe, na Bahia, no Amazonas, em Pernambuco, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Um outro dado interessante a ser observado é o peso das famílias beneficiadas pelo Bolsa Família no universo dos eleitores que escolhem os governadores, os senadores, os deputados e, claro, votam para a presidência da República nos estados do país.
Para ficar apenas num exemplo, o ministro Wellington Dias foi duas vezes governador do Piauí. Nas últimas eleições, fez seu sucessor e foi eleito senador. O Piauí é o estado brasileiro que tem o segundo maior peso de beneficiários do Bolsa Família no conjunto dos eleitores. Com 2.573.810 cidadãos e cidadãs em condições de votar no último pleito, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral, o Bolsa Família chega ali a 625.113 famílias — ou 24,29% do total. O estado recordista nesse quesito é o vizinho Maranhão, com suas 5.042.999 pessoas aptas a votar em 2022 e 1.235.167 beneficiados. Isso significa 24,49% do total. O estado, como se sabe, é um território politicamente dominado pelo grupo do atual ministro da Justiça, Flávio Dino.
Antes que alguém comente alguma coisa, é preciso dizer que sim, esses números precisam ser analisados de forma menos superficial! O Piauí e o Maranhão são estados com baixíssimo índice de desempenho econômico e têm populações em elevada situação de vulnerabilidade. Isso, sem sombra de dúvidas, justifica o peso elevado do programa assistencial do governo para as populações locais — que muitas vezes não têm acesso a outra possibilidade de renda.
Mas também é importante não fechar os olhos para o impacto eleitoral desse programa. Levando-se em conta que um único benefício do programa muitas vezes tem influência sobre mais de um voto no mesmo domicílio é de se considerar o peso do Bolsa Família no resultado final das eleições em lugares como o Piauí e o Maranhão. Ou ainda em Sergipe (onde a taxa é de 24,05%), Amazonas (23,87%), Alagoas (23,56%), Pernambuco (23,80%) ou Bahia (22,76%).
No extremo oposto da lista que mostra a relação entre a distribuição dos benefícios e o número de eleitores está Santa Catarina. Com um total de 5.489.658 eleitores, o estado sulista tem 225.040 famílias beneficiárias. Isso significa 4,10% do total. Em São Paulo, sempre apontado no material de divulgação do Bolsa Família como o estado com o maior número de beneficiados, as 2.575.285 famílias inscritas no programa correspondem a 7,43% dos 34.667.793 eleitores cadastrados pelo TSE.
O Rio de Janeiro ocupa uma posição intermediária nessa relação e é, entre os estados das regiões Sul e Sudeste, o que tem a maior participação de beneficiados do Bolsa Família entre seus eleitores. São 12.827.296 eleitores e 1.826.673 beneficiados — ou 14,24% do total.
Mostrados assim, de supetão, esses dados não querem dizer muita coisa e oferecem o risco de conduzir a conclusões precipitadas, superficiais e até mesmo preconceituosas. É inegável, porém, que muitos políticos demonstram uma tentação evidente de utilizar o programa como uma ferramenta de manipulação. A verdade é que, quando a necessidade do auxílio se transforma em dependência, o controle sobre a máquina que distribui os benefícios pode se transformar em trunfo político desse ou daquele partido.
Esse é um ponto frequente nas discussões sobre esse assunto. Para muita gente, o melhor programa social que existe é o crescimento econômico — que aumenta a renda, gera empregos e estimula a demanda por investimentos em habitação, escolas, hospitais, saneamento básico e equipamentos de segurança que, postos numa mesma cesta, elevam a qualidade de vida da população. Este é o ponto que interessa.
O Brasil está diante de uma oportunidade importante — e, se tudo der certo e as medidas corretas forem tomadas, é possível que um novo ciclo de crescimento se inicie. Nessa hora, é importante não perder o foco e não querer, por visões populistas como as de ministros que "comemoram" a expansão de um programa que deveria ser tratado como emergencial, começar a ampliar os benefícios para além da capacidade de arrecadação de um Estado glutão e gastador como é o brasileiro.
O Brasil precisa, sim, ter mais cuidado com as pessoas que se encontram abaixo da linha da pobreza. Mas o pior a fazer neste momento é investir em políticas frouxas e tirá-las de lá por medidas artificiais que, como já aconteceu no passado recente, podem se romper e devolvê-las ao lugar de onde saíram ao menor sinal de crise.
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