Nuno9julARTE KIKO

Se há uma conclusão a ser tirada após a reunião de cúpula do Mercosul, que aconteceu na semana passada na cidade argentina de Puerto Iguazu — a primeira desde 2016 —, é que bloco comercial está, hoje, mais frágil e fragmentado do que estava antes da realização do encontro. E que, caso seus integrantes queiram restaurar a importância que ele parecia ter quando foi criado, precisam recuperar a ideia que inspirou sua formação há mais de 30 anos.
O Mercosul nasceu para aumentar a importância dos países da região no comércio internacional — e não para ser uma espécie de tábua de salvação para “companheiros” em dificuldade. Caso o bloco não se livre do ranço ideológico que vem marcando sua atuação, corre o risco de desmanchar no ar sem deixar qualquer vestígio do sonho de uma união comercial próspera entre os países do Cone Sul.
Não é possível — e isso está cada vez mais claro para quem não pretende negar a realidade — alcançar sucesso no jogo pesado que marca as relações comerciais no Século 21 com a cabeça presa a conceitos e valores que dominavam o debate entre as nações da década de 1950. Infelizmente, porém, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que exercerá a presidência temporária do bloco pelos próximos seis meses, parece convencido de que este é o único caminho possível. E que os países desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos, devem ser vistos como inimigos interessados na ruína dos vizinhos mais pobres.
“Só a unidade do Mercosul, da América do Sul e da América Latina e do Caribe nos permitirá retomar o crescimento, combater as desigualdades, promover a inclusão, aprofundar a democracia e garantir nossos interesses em um mundo em transformação”, disse Lula em seu discurso de posse. Feliz ou infelizmente, ele se esqueceu de mencionar um ponto: as economias que mais evoluíram na região nos últimos anos não compartilham desse ponto de vista. São os casos, por exemplo, do México, do Chile (nunca considerou a ideia de se unir ao Mercosul) e da Colômbia (atravessa em 2023 um período de retração, depois de experimentar momentos importantes de expansão nos últimos anos).
Seja como for, Lula terá, na presidência temporária, a oportunidade de mostrar que ainda tem força e habilidade política suficientes para lograr sucesso na condução de problemas importantes e delicados que antes dele não conseguiram resolver. Ele terá pela frente, para mencionar apenas a mais visível de todos, a missão de desentravar o acordo comercial do Mercosul com a Comunidade Europeia, que vem se arrastando pelos últimos anos e sempre esbarra em novas exigências dos europeus quando parece pronto para ser assinado. Lula já deixou claro o que pensa sobre o assunto. “O Instrumento Adicional apresentado pela União Europeia em março é inaceitável”, disse o presidente. “Parceiros estratégicos não negociam com base em desconfiança e ameaça de sanções”.

ALIADOS IDEOLÓGICOS — Tomara que ele tenha sucesso! Se isso acontecer, ele merecerá todos os aplausos. É praticamente improvável, porém, que a União Europeia aceite retirar as cláusulas ambientais que apresentou na última hora depois que o pacote apresentado durante o governo anterior, de Jair Bolsonaro, parecia ser o definitivo. Para que isso aconteça, porém, Lula terá que bater de frente com o líder europeu que mais acolhe as ideias que ele apresenta sobre política internacional. Trata-se do presidente francês Emmanuel Macron — o único líder mundial de projeção que parece ter levado a sério a ideia de se criar um grupo para debater a paz entre a Rússia e a Ucrânia.
Por trás de um discurso que simula preocupação com a deterioração da Amazônia brasileira, mas que não toca na inércia de seu governo diante da depredação causada pelo garimpo ilegal na Guiana, que é a Amazônia francesa, Macron faz o que pode para impedir a abertura do mercado europeu aos produtos agrícolas brasileiros. Seu objetivo evidente, mas nunca assumido, é proteger o mercado dos agricultores franceses — que sobrevivem à custa de subsídios gordos, mercado cativo e medidas protecionistas que eles adotam para si, mas condenam para os outros. Se essa realidade não for exposta e os europeus dos outros países não tiverem noção de que pagam mais caro pelo alimento que consomem por culpa das exigências sem limites e Macron, o acordo, mais uma vez, fracassará.
O tratado comercial com a União Europeia é o mais importante e, se sair, deixará os produtos brasileiros ao alcance de uma população de quase 500 milhões de pessoas de altíssimo poder aquisitivo. Ele é apenas um dos acordos que o bloco vem negociando no momento. Há outras negociações em curso — com o Canadá, a Coreia do Sul e Singapura. Conforme o presidente brasileiro anunciou em Puerto Iguazu, novas frentes de negociação estão sendo abertas com a China, a Indonésia e o Vietnã. Como não poderia deixar de ser, Lula também acenou com avanços na direção da América Central (leia-se Nicarágua) e Caribe (ou seja, Cuba).
O hábito insistente de trazer seus aliados ideológicos para um jogo no qual eles têm tudo a ganhar e nada a oferecer é, por sinal, um dos pontos que expõem a fragilidade do Mercosul e os desvios em relação a seus objetivos iniciais. Ficou claro, para quem acompanhou o encontro com a esperança de presenciar algum avanço, que o bloco está cada vez mais distante do que se propunha a ser quando a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai assinaram, em 1991, um acordo destinado a fortalecer a posição dos países da região no relacionamento comercial com o mundo.
O início foi promissor, mas não demorou para que a falta de coerência e as confusões conceituais contaminassem a atuação do bloco. Isso aconteceu com mais clareza quando governantes passaram a confundir seus interesses políticos imediatos com os objetivos estratégicos de longo prazo dos países que comandam. O Mercosul se reduziu, então, a um joguete perdido em divergências que variam de acordo com os interesses de quem está no poder em cada um dos países, em cada ocasião.
VEXAME MUNDIAL — Antes da reunião, Lula e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, pensaram, inclusive, em convidar o ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, para participar da cúpula. O presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, não se opôs à ideia. A reputação do bloco, no entanto, foi salva pela posição firme do presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou. Crítico da atuação recente do Mercosul e da postura ideológica que seus pares vêm defendendo para o bloco, Lacalle Pou rejeitou a ideia de se sentar na mesma mesa do verdugo venezuelano. E ainda lembrou que a presença de ditaduras é rejeitada pelo bloco desde o Acordo de Ushuaia, em 1988.
A propósito, o próprio ingresso da Venezuela no bloco, em 2012, já reflete a decadência o desvio de propósitos do bloco comercial de seus objetivos originais — e deixou claro para o mundo inteiro que o Mercosul havia deixado de ser um grupo comercial sério e se reduzido a uma espécie de clube de “companheiros” interessados em fazer negócios entre si.
A história é interessante e merece ser rememorada. A possível adesão da Venezuela ao Mercosul começou a ser discutida ainda no tempo em que o antecessor de Maduro, o coronel Hugo Chávez, estava vivo. A ideia, no entanto, nunca evoluiu. Por um detalhe importante: pelo acordo que criou o Mercosul, a admissão de novos integrantes ao bloco precisa ser decidida por unanimidade — e o Paraguai sempre se opôs à presença da Venezuela.
A chegada do padre esquerdista Fernando Lugo à presidência Paraguai, em 2008, deu a impressão de que a última barreira que impedia a admissão da Venezuela no bloco comercial havia caído por terra. Acontece, porém, que, pela Constituição do país, as decisões estratégicas com relação à política externa necessitam do endosso do Congresso — que continuou resistindo ao ingresso na Venezuela.
O tempo passou e os nomes foram se alternando no poder nos três países. Mesmo com os sinais de que a Venezuela avançava a passos acelerados para se tornar uma ditadura tão cruel e opressora quanto a cubana, os presidentes Dilma Rousseff, do Brasil, Cristina Kirchner, da Argentina, e José Mujica, do Uruguai, estavam dispostos a receber o sucessor Chávez, Nicolas Maduro, de braços abertos.
A oportunidade veio em 2012, quando o Congresso paraguaio tomou a decisão soberana, constitucional e, portanto, democrática, de decretar o impeachment de Lugo. Foi então que Dilma, Cristina e Mujica se uniram e, alegando desrespeito do país ao Protocolo de Ushuaia, aplicaram uma suspensão ao Paraguai. Com o único opositor à ideia afastado, a turma abriu as portas e trouxe a Venezuela para dentro do Mercosul.
PÁRIA — Com a economia esfrangalhada pelos erros e pela corrupção sem limites do regime “bolivariano”, a Venezuela em nada contribuiu para o fortalecimento do bloco e, para piorar a situação, ainda colocou o Mercosul em rota de colisão com as principais economias do mundo. De 2014 para cá, o governo dos Estados Unidos adotou nada menos do que 62 medidas contra a ditadura de Maduro. A União Europeia foi pelo mesmo caminho e adotou nove medidas com restrições duras às relações comerciais com a Venezuela. O Canadá adotou cinco e o Reino Unido, duas.
A Venezuela havia se tornado um pária mundial — condição que mantém até hoje — e estar do lado dela significava estar contra as principais economias do mundo. Foi necessário, no entanto, que Dilma, Cristina e Mujica deixassem o poder para que o bloco finalmente se convencesse da necessidade de afastar a Venezuela do bloco, o que aconteceu no dia 5 de agosto de 2017. Agora, Lula e o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, que age como se fosse um garoto de recados do mandatário brasileiro, querem porque querem trazer Nicolás Maduro de volta.
Em Puerto Iguazu, Lula continuou insistindo na defesa de seu amigo ditador. Mas, diante dos desgastes gerados pelo fiasco que foi a visita do ditador venezuelano ao Brasil em maio passado e das críticas que vem recebendo ao dizer que a Venezuela vive uma “democracia relativa”, terceirizou para Fernández a árdua tarefa de negar o óbvio e defender as virtudes do regime chavista.
O argentino bem que se esforçou. Culpou os bloqueios comerciais aplicadas pelas democracias ocidentais contra a ditadura de Maduro pela crise humanitária que, de acordo com as Nações Unidas, já expulsou 7 milhões de venezuelanos de seu país. Não mencionou, porém, que antes que a primeira sanção fosse adotada, o povo da Venezuela, que no passado foi um dos países mais prósperos da região e foi levado à miséria pelas mãos populistas de Hugo Chávez, de Nicolas Maduro e de seus seguidores, já revirava as latas de lixo de Caracas e de outras cidades em busca de restos de comida para matar a fome. Esta é a realidade e querer negá-la é, como disse o presidente do Uruguai Lacalle Pou no encontro de Brasília, “tapar o sol com o dedo”.

ECONOMIA DOLARIZADA — Lacalle Pou, por sinal, tem sido o responsável pela posição divergente na região — e tem apresentado seus argumentos com uma clareza que nos obriga a perguntar se ele não está do lado certo enquanto os outros estão errados. Lula e Fernandez, por exemplo, defendem medidas protecionistas para as transações comerciais entre os países do bloco. Lacalle Pou, no entanto, considera que seu país —que tem balança comercial negativa com os demais países do bloco — nada tem a ganhar com essa orientação e defende acordos que assegurem condições de acesso privilegiado da carne, do trigo e de outros produtos uruguaios a outros mercados consumidores.
Além da afinidade ideológica, Lula e Fernández batem com insistência na tecla da criação de uma moeda comum, que livre os países do bloco da dependência do dólar. Esse, aliás, é um ponto interessante. Chega a parecer piada ouvir Fernandez, que preside uma das economias mais dolarizadas do mundo, onde a moeda americana circula sem restrições no comércio e é tão utilizada nas transações do dia a dia quanto o próprio peso argentino moeda local, defender que os negócios com os vizinhos sejam feitos em moeda local.
Lacalle Pou defende que o Mercosul se fortaleça como um bloco de livre comércio, como estava previsto desde a criação, e que feche os acordos com países que possam trazer vantagens para todos — sem dar bola para a ideologia do parceiro comercial. Tanto assim que vem negociando por sua conta um acordo comercial com a China, com quem não tem afinidades ideológicas. “O Uruguai luta para conseguir mercados”, disse Lacalle Pou. “O Mercosul precisa avançar e, se não formos juntos, faremos bilateralmente”, disse. A sorte está lançada e agora cabe a Lula decidir se será o presidente que salvou o Mercosul, com o acordo com a União Europeia, ou o presidente que sepultou o bloco ao dar mais importância à ideologia do que aos interesses dos países membros.