Falar de impostos é sempre muito chato. O tema é árido e sua discussão envolve detalhes técnicos, siglas incompreensíveis e cálculos para lá de complexos. Por essa razão, não costuma chamar atenção nem despertar aquele entusiasmo que leva as pessoas às ruas para participar de manifestações sobre questões muito menos importantes. Acontece, porém, que a situação tributária do país chegou a um ponto tão crítico que, neste momento, o contribuinte brasileiro — que trabalha cerca de 150 dos 365 dias do ano só para pagar impostos — deveria prestar mais atenção ao debate sobre a reforma tributária sobre o consumo, que vem sendo travado no Congresso e deve esquentar nos próximos dias.
Não existe neste momento, entre todos os temas que os parlamentares têm a tratar, outro que seja mais sério, importante e impactante do que esse. Os impostos são essenciais para manter os serviços públicos funcionando e o país em ordem. Ocorre, porém, que, no Brasil, esse debate é travado com os olhos voltados apenas para um dos lados da questão: o da necessidade incontrolável que o Estado, em todas as suas esferas, tem de gerar caixas para cobrir despesas que aumentam a todo instante. O outro lado, ou seja, o das empresas e dos cidadãos que pagam os impostos, é simplesmente ignorado.
Se os parlamentares demonstrassem um mínimo de preocupação com o transtorno que a bagunça tributária brasileira causa na vida dos contribuintes, já teriam enfrentado esse debate há mais tempo — mas em todas as decisões que foram tomadas sobre esse assunto nos últimos anos serviram apenas para piorar algo que já era ruim há muito tempo.
A discussão em torno da necessidade de uma reforma mais ampla, que imprimisse um pouco de racionalidade ao sistema tributária, passou a fazer parte do debate político no governo do ex-presidente Michel Temer, mas cresceu depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva — que inclusive nomeou um dos maiores especialistas do país nesta matéria, o economista Bernard Appy, para o posto de Secretário Extraordinário da Reforma Tributária. E, na quinta-feira passada, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) apresentou na Câmara o texto preliminar do relatório que deverá ser levado ao plenário ainda esta semana.
TRÊS ALÍQUOTAS — O texto de Ribeiro, ou algum outro parecido com ele, já poderia ter sido apresentado há pelo menos quatro anos — mas o senso de urgência que o Legislativo demonstra diante de temas de interesse dos parlamentares não costuma se estender aos assuntos que são caros à sociedade. Trata-se de um substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi em abril de 2019 e que só começou a andar para valer neste momento.
Nem a PEC nem o substitutivo tocam em dois pontos que darão o que falar no momento em que forem levados ao debate — os impostos sobre a renda e sobre o patrimônio. O foco da discussão agora está voltado exclusivamente para os impostos sobre o consumo — mas, por menor que pareça esse esforço, ele já representa uma tentativa importante no sentido de se imprimir racionalidade a um sistema tributário que o próprio vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, costuma chamar de “Manicômio Tributário”.
A ideia é transformar cinco tributos (IPI, PIS, Confins, ICMS e ISS) em um só — que deverá se chamar Impostos Sobre Bens e Serviços (IBS). Da forma como está no texto, será um imposto dual. O dinheiro arrecadado alimentaria um fundo que, depois, seria repartido entre a União, os estados e os municípios. Não é preciso ter bola de cristal para imaginar a confusão que haverá em torno da gestão e da divisão desse bolo. Mas isso não acontecerá agora. Mesmo que seja aprovada agora, a mudança começará a vigorar em 2026 e só estará concluída em 2033.
GUERRA FISCAL — Conforme o texto de Ribeiro, esses impostos que hoje têm uma infinidade de alíquotas — que variam de acordo com o produto ou com a região do país — passarão a ter, depois de agrupados, no máximo três. A primeira será a alíquota padrão — valerá para o país inteiro e será a mesma para a maioria dos produtos e serviços.
A segunda será de 50% da alíquota padrão e valerá para os setores de transportes, saúde, -educação, produtos agropecuários, alimentos, higiene pessoal, atividades artísticas e culturais. Finalmente, haverá a alíquota zero para medicamentos, Prouni e produtor rural pessoa física. As pessoas de renda mais baixa e as socialmente vulneráveis terão, como medida compensatória, uma parte do tributo devolvido pelo sistema cashback.
A alíquota do novo imposto, que é inspirado no Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) que vigora em vários países desenvolvidos, ainda não foi proposta. Isso deverá acontecer depois que a PEC (que exige quórum de dois terços para aprovação na Câmara e no Senado) passar pelo plenário e for sancionada pelo presidente da República. Pelo que vem sendo discutido nos últimos dias, no entanto, ela deve ficar entre 23% e 25%. Esse cálculo é feito com base na soma das alíquotas médias dos impostos que serão substituídos.
Um detalhe: nos países em que é adotado, a alíquota do IVA, com as variações de praxe, é de 10% a 12% ao preço do bem adquirido. Isso significa o seguinte: como não poderia deixar de ser, o Brasil terá o maior IVA do mundo.
A questão, agora, é saber se o texto de Ribeiro sobreviverá e não será desfigurado antes de ser levado à votação no plenário da Câmara. Depois, será preciso avaliar sua evolução no Senado. O certo é que, antes mesmo de ser publicado, ele já vem recebendo críticas de políticos e de setores da economia que, como é comum no Brasil, defendem com ardor a necessidade de se mexer no sistema tributário — desde que a mudança não toque nos privilégios nem nas exceções que foram concedidos nos últimos anos e que, no fundo, são a causa da confusão em que se transformou o sistema tributário no Brasil.
O agronegócio — que, a despeito de sua pujança, recolhe tributos insignificantes quando comparados a outros setores da economia — já se manifestou contra e, certamente, mobilizará o poder de sua bancada para tentar alterar o texto. Os prefeitos das grandes cidades, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, também não gostaram. A unificação dos tributos tiraria das mãos desses políticos o controle sobre uma de suas principais fontes de arrecadação, o ISS. O mesmo vale para os governadores em relação ao ICMS.
Talvez venha daí, ou seja, dos governos estaduais, a maior resistência. O ICMS, além de ser o principal tributo sobre consumo no país, é a arma mais utilizada na guerra fiscal que alguns governadores costumam mover para atrair investidores para seus estados. Em nome da necessidade de estimular a economia local, alguns estados costumam renunciar aos tributos que a empresa que se instala em seu território deveria recolher — e essa conta, no final, acaba sendo rateada entre todos os estados.
PACTO FEDERATIVO — Essa prática é defendida abertamente por alguns governadores e sempre que ela é criticada pelo desequilíbrio que gera nas relações de concorrência entre as empresas, aparece alguém para dizer que o “pacto federativo” justifica a decisão. “Pacto federativo”, para quem ainda não parou para pensar no significado dessa expressão, é o nome que se dá à autonomia que os estados têm para agir dentro da federação. Seus efeitos têm se resumido nos últimos anos ao direito de tomar decisões em benefício próprio sabendo que a conta, no final, será bancada pelo Tesouro Nacional.
Esse, aliás, é um aspecto importante do atual modelo brasileiro, que o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega costuma chamar de “o pior sistema tributário do mundo”. E é mesmo. Nenhum outro país importante do mundo um sistema tão confuso e abrangente quando o Brasil. Entre os federais, estaduais e municipais, estão em vigor atualmente pouco mais de 90 impostos diferentes. Isso mesmo: mais de 90!
Os mais pesados são os federais — que hoje em dia englobam o imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas, o IOF, o IPI a Contribuição Social Sobre o Lucro, as taxas do INSS e vários outros. Juntos, eles correspondem a mais de 60% de tudo o que o brasileiro desembolsa para pagar o Estado. Os impostos estaduais, entre os quais se destacam o ICMS e o IPVA, vêm em segundo lugar, com mais de 30% da arrecadação total. Finalmente, os impostos municipais como o IPTU e o ISS são responsáveis por menos de 10% do total.
Um dos pontos críticos dessa questão — e que já ajuda a antever a briga que haverá quando os tributos forem unificados — é o modelo de distribuição dos tributos federais. O dinheiro arrecadado é destinado ao Tesouro Nacional e é utilizado, junto com os recursos levantados com a colocação de títulos da dívida pública no mercado, para pagar os salários do funcionalismo e cobrir outras despesas de custeio da máquina pública — restando um percentual mínimo para os investimentos em infraestrutura de que o país necessita para ativar sua economia. Outra parte é rateada entre os estados e é aí que o “pacto federativo” começa a mostrar sua verdadeira face.
GRITARIA GENERALIZADA — Veja, por exemplo, o caso do estado do Rio de Janeiro. De acordo com uma reportagem publicada neste jornal no dia 16 de junho, com base em dados do Ministério da Fazenda, a arrecadação de tributos federais no estado alcançou R$ 449,9 bilhões em 2022. A parte que coube ao estado na hora de receber de volta parte desse dinheiro para pagar suas contas foi de R$ 38,1 bilhões. Conforme observou a reportagem, “isso significa que a cada R$ 100 em impostos recolhidos, o Rio teve restituídos R$ 8,50”.
Não é um caso único. Por maiores que sejam seus problemas e suas necessidades, e ainda que seja o estado que mais recebe dinheiro federal, o Rio é um dos que ajudam a sustentar os aqueles não têm arrecadação própria sequer para cobrir suas principais despesas. Esses são, basicamente, os estados das regiões Norte e Nordeste — e seus governadores e parlamentares são os que mais esperneiam quando alguém sugere que cortem gastos para tornar a carga mais leve para os contribuintes das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
Esse, aliás, é um ponto crucial que surge sempre que alguém se propõe, como está acontecendo neste momento, a melhorar a qualidade do sistema de arrecadação e melhor o sistema. O problema é que, sempre que se fala em mexer nos tributos, tem início a gritaria generalizada de políticos para que, pelo que parece, quanto mais elevadas estiverem as despesas, melhor. Nessa hora, ninguém olha para o lado do elo mais fraco dessa corrente: o contribuinte, seja pessoa física ou jurídica, que paga a conta e já não suportam mais falar em aumento de impostos (ideia que surge sempre que alguém aponta a necessidade de se equilibrar as contas públicas).
MUITO IMPOSTO, POUCO SERVIÇO — Este é o ponto. A reforma tributária é tão importante que é impossível consertar a economia brasileira, fazer com que ela atraia investimentos e passe a gerar a renda e os empregos que hoje nega ao cidadão sem antes dar um jeito no sistema de impostos. E a reforma que será discutida agora será apenas o primeiro passo. O país só tomará jeito no dia em que, além de se alterar o modelo de arrecadação, se mexer, também, na estrutura de gastos.
Todos os estudos sérios que tratam do tema apontam para uma realidade muito parecida. De acordo com eles, a carga tributária (ou seja, o total de tudo o que se arrecada no Brasil em impostos federais, estaduais e municipais) é de aproximadamente 35% do PIB. Há no mundo países que têm carga de tributos bem maior do que essa. É o caso, por exemplo, da Dinamarca, onde os impostos arrecadados correspondem a cerca de 45% do PIB, para citar apenas um exemplo. Outras são muito parecidas com a do Brasil. A Alemanha, por exemplo, arrecada o equivalente a 36% do PIB. Se esses países suportam essa carga, por que o Brasil não haveria de suportar.
A questão é que, enquanto o Brasil gasta quase tudo o que arrecada para bancar os salários do funcionalismo e custear a máquina pública, a Dinamarca, a Alemanha e outros países que levam o contribuinte a sério usam o dinheiro dos impostos para garantir saúde, educação, segurança e transporte público de qualidade para seus cidadãos. Não é, infelizmente, o caso brasileiro.
O Brasil tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os países que praticam uma carga tributária mais elevada. Esse indicador, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) combina variáveis relacionadas com a saúde, a educação e a renda da população para estabelecer o grau de qualidade de vida da população. O levantamento mais recente, de 2022, mostra o Brasil com 0,754 ponto na 87ª posição entre os 191 países avaliados. A Dinamarca, só para ficarmos restritos aos exemplos citados ainda há pouco, aparece com um IDH de 0,948, o 6º maior do mundo. E a Alemanha, com 0,942 ponto, está na 9ª posição.
A conclusão diante desses números não precisava ser mais clara. O Brasil não devolve à população, na comparação com outros países marcados pela voracidade tributária, serviços públicos universais e de boa qualidade. Por aqui, os recursos arrecadados, como já se falou mais de uma vez, mas não custa insistir nesse ponto, são gastos exclusivamente para financiar uma máquina pública lenta, balofa, ineficiente e injusta — que suga tudo o que pode dos que estão do lado de fora para assegurar os privilégios dos que estão do lado de dentro.
A questão é que, enquanto não se olhar para esse problema com seriedade, nenhuma mudança proposta — por melhores que sejam as intenções dos técnicos que se debruçam sobre o assunto — terá efeito duradouro. E logo haverá necessidade de outras medidas feitas a toque de caixa para evitar que o rombo fiscal pressione a taxa de inflação, eleve a taxa de juros à estratosfera e desestimule os investimentos na economia do país —exatamente como acontece hoje em dia.
Em meio a esse cipoal de confusão tributária, um fato merece atenção. Até a Receita Federal, que por definição existe para levar ordem ao sistema de arrecadação, acaba concentrando tanto poder em suas mãos que, ao invés de ajudar, acaba dificultando a vida do contribuinte. Em nenhum outro país do mundo moderno se vê tanto poder concentrado no órgão de arrecadação de impostos quanto no Brasil — tornando o cidadão praticamente indefeso na hora de se defender dos equívocos e da superposição de normas que acontecem a todo instante.
É apenas um exemplo de que, no Brasil, não é o Estado que existe para servir ao cidadão. É o cidadão que existe para sustentar o Estado.