Antes de qualquer comentário a respeito das responsabilidades pela fuga, na terça-feira passada, de dois criminosos de altíssima periculosidade, que estavam recolhidos ao presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, é preciso destacar um detalhe importante. O espantoso, neste caso, nem é o fato dessa dupla de condenados ter escapado sem a menor dificuldade de uma das unidades de um sistema prisional até então considerado inexpugnável.
Isso mesmo: o sistema de prisões federais de segurança máxima — que, além de Mossoró, tem penitenciárias em Catanduvas (PR), Campo Grande (MS), Porto Velho (RO) e Brasília (DF) — era visto até aqui como inexpugnável! Desde que começou a ser implantado, 18 anos atrás, ninguém jamais havia conseguido fugir de qualquer unidade do sistema. E isso durou até a terça-feira de Carnaval, na semana passada.
O espantoso, nesse caso, nem é a fuga, mas o tempo que o sistema conseguiu manter a fama. Diante da sucessão de falhas, omissões e equívocos que se vê por todo o sistema brasileiro de segurança pública, o curioso é que esses presídios tenham atravessado 18 longos anos sem que ninguém tenha conseguido sair de lá sem autorização das autoridades. Para os padrões brasileiros, é um feito e tanto. Mas que, infelizmente, ficou no passado.
Para se ter ideia do tipo de preso que cumpre suas penas nessas prisões federais, basta dar uma olhada nas folhas corridas dos fugitivos. Um deles, Rogério Silva Mendonça, responde a um total de 50 processos por homicídios, roubos e outros crimes. Os casos que já foram julgados o condenaram a penas que, somadas, alcançam 74 anos em regime fechado. O outro é Deibson Cabral Nascimento. Dono de uma ficha criminal tão extensa quanto a do comparsa, já foi condenado a 81 anos de prisão.
Os dois são velhos companheiros de crimes e integram a facção narcoterrorista Comando Vermelho, que tem como um dos chefes o criminoso Fernandinho Beira-Mar, que cumpre pena em Mossoró. Antes, eles estavam numa penitenciária considerada de segurança máxima no Acre até serem transferidos para Mossoró, em setembro do ano passado, depois de liderarem uma rebelião que terminou com a morte de cinco criminosos de organizações rivais — três deles, decapitados.
O HELICÓPTERO DE ESCADINHA — Não é o caso de se detalhar, aqui, os passos de uma fuga que, nesses últimos dias, vem sendo relatada em detalhes pelo noticiário da TV. O fato é que a ação pareceu fácil demais para ter se desenrolado num dos presídios mais seguros do país. Pelo que se sabe, os dois saíram de suas celas por buracos abertos em espaços de luminárias, ganharam o pátio e romperam a proteção de arame com ferramentas que encontraram pelo caminho. Depois, ganharam o mundo. Até a noite de sexta-feira, embora tenham deixado pistas pelo caminho e tivessem uma força policial considerável em seu encalço, ainda não tinham sido recapturados.
Seja como for, a história do sistema prisional brasileiro registra fugas muito mais cinematográficas do que a dos dois bandidos. No dia 31 de dezembro de 1985, por exemplo, o assaltante José Carlos dos Reis Encina, conhecido como Escadinha, fugiu de helicóptero de um presídio na Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro.
O mesmo meio de transporte seria utilizado, 17 anos depois, por Dionísio de Aquino Severo. No início de 2002, em plena luz do dia, um helicóptero sequestrado por bandidos foi utilizado par tirá-lo de uma penitenciária no município de Guarulhos, em São Paulo. Severo, um dos executores do assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, voltaria para a cadeia logo depois e seria morto numa rebelião de presos, em 2005.
Outras escapadas entraram para a história e ajudaram a expor a fragilidade de um sistema prisional que, às vezes com a cumplicidade de funcionários do sistema de segurança, ao invés de manter a sociedade protegida dos que a ameaçam, sempre se mostrou incapaz de manter os criminosos mais perigosos atrás das grades. Em novembro de 2001, 108 presos utilizaram um túnel para escapulir da penitenciária do Carandiru, na Zona Norte de São Paulo. Foi uma obra complexa e construída sem que os funcionários do sistema percebessem que havia algo errado. Depois da fuga, uma varredura na região mostrou outras 37 escavações parecidas em andamento.
Exemplos de situações grotescas como essas nunca faltam. Em setembro de 2000, para citar um último exemplo, um caminhão entrou carregado de leite pela porta da frente do presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Sem ser importunado por um único guarda, saiu minutos depois levando três fugitivos na carroceria.
Num sistema em que casos como esses são considerados normais, a sensação de que os presídios federais seriam seguros o bastante para manter os presos mais perigosos atrás das grades chegava a representar um alento para a população. Eles foram criados pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos em 2005, justamente como uma resposta às críticas que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu primeiro mandato, recebia pela omissão do governo federal diante dos ataques das facções criminosas às populações das grandes cidades. Infelizmente, a sensação de segurança que eles ofereciam no princípio já não é mais a mesma depois da fuga da última terça-feira.
VÍCIOS DO SISTEMA — Conforme um cálculo que consta de um documento publicado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano passado, cada preso no sistema federal custa aos cofres públicos cerca de R$ 35 mil por mês. O custo médio por preso nos sistemas estaduais é de algo entre R$ 1.300 e R$ 1.400 por mês. Calma! Não há nada de errado com os números em si.
Enquanto os cinco presídios federais abrigam pouco menos de mil presos (todos perigosíssimos), os 1384 presídios estaduais existentes no país tinham uma população de 642.178 presos em 31 de dezembro do ano passado — entre os presos em regime fechado e semiaberto. Os números são Relatório de Informações Penais, com dados preliminares referentes ao segundo semestre de 2023, editado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça.
Diante desses números, é aceitável, pela própria natureza e finalidade do sistema, que o custo das penitenciárias federais seja mais elevado. O que é inaceitável, porém, é que ele, pelo que se viu no episódio de Mossoró, comece a reproduzir alguns dos piores vícios do sistema estadual.
A exemplo do que acontece na maioria das fugas dos presídios estaduais, o que houve no presídio federal de Mossoró, à primeira vista, foi uma ação que jamais teria acontecido sem a conivência de funcionários do sistema. A primeira hipótese é a de alguém de dentro da máquina — ou seja, um servidor público que tinha por obrigação cuidar para que os presos permanecessem isolados até ajustar suas contas com a Justiça — colaborou, foi omisso ou, no mínimo, descuidado. E, ao fechar os olhos, permitiu que facínoras voltassem a ameaçar a sociedade do lado de fora da cadeia. Infelizmente, os indícios iniciais apontam muito mais para a incompetência dos responsáveis pelo sistema do que para o excesso de competência dos dois fujões.
Seja como for, o caso não pode ficar sem uma explicação razoável. E quando ela vier, após uma investigação que exponha as falhas que houve, até para que elas não voltem a ser cometidas mais adiante, que seu resultado seja mais convincente do que as explicações iniciais das autoridades. Para elas, tudo não teria passado de uma sucessão de descuidos e de coincidências infelizes. “É como uma queda de avião. Quando cai, não é uma causa única”, disse o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski em suas primeiras declarações sobre o fato que levou sua gestão, em pouco mais de duas semanas, a conviver com a primeira crise.
O ministro prosseguiu: “Primeiro, a fuga ocorreu numa terça-feira de Carnaval, onde as pessoas estão mais relaxadas. Outro fator que contribuiu para isso é que o presídio estava passando por uma reforma interna e, então, havia operários lá dentro. E, infelizmente, as informações que temos é que as ferramentas não estavam aprisionadas (sic) de forma correta. Estavam espalhadas”.
SUJEITO A CRÍTICAS — Trata-se, é evidente, de uma declaração típica de uma autoridade que ainda não compreendeu os limites de sua nova função. Ministro do Supremo Tribunal Federal ao longo de 17 anos, Lewandowski estava habituado e ser acatado em tudo o que dizia e a ver cumpridas, sem questionamento, todas as decisões que tomava. Entre elas, a que mais deu o que falar foi aquela que envolveu o julgamento da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Na condição de presidente do Superior Tribunal Eleitoral, cargo que ocupava àquela altura, Lewandowski comandou o julgamento e foi obrigado a acatar a cassação de mandato, imposta a Dilma por decisão do Senado Federal. Ao final, porém, ele acabou encontrando uma forma de contornar o rigor da lei, que determinava com clareza a suspensão por oito anos dos direitos políticos da presidente cassada. Com isso, ela pôde se candidatar ao Senado por Minas Gerais em 2018. Julgada pelo eleitor, foi derrotada nas urnas.
A nova função é diferente. Como ministro da Justiça, tudo o que Lewandowski diz está sujeito a críticas e questionamentos. E todas as decisões que toma, por sua vez, devem ser submetidas a debates e negociações. O ministro, talvez por não estar adaptado às necessidades do novo cargo, talvez não tenha atentado para as dificuldades que criaria para si mesmo ao se referir ao episódio da forma como se referiu.
É muito pouco provável que Lewandowski tenha se preocupado, por um momento sequer, com a reação dos adversários do governo diante da menção singela e desnecessária que ele fez aos efeitos relaxantes do Carnaval sobre o ânimo das pessoas. A impressão que ficou foi a de que ele estava querendo eximir de responsabilidades os agentes penitenciários federais, que são pagos, e, por sinal, muito bem pagos, para permanecer atentos durante todos os dias do ano.
Evidentemente, Lewandowski sabe desde o início que a sociedade espera por respostas. E a melhor das respostas, além da captura imediata dos fugitivos, deve vir na forma de ações efetivas, que ajudem a restaurar a credibilidade do sistema.
Tanto assim que, junto com as explicações iniciais, ele anunciou providências destinadas a fazer com que a sociedade volte a confiar nos presídios federais como os únicos capazes de mantê-la a salvo do convívio com os criminosos mais violentos e perigosos do país. A primeira dessas providências foi o afastamento imediato do diretor do presídio, Humberto Gleydson Fontineli Alencar, que havia assumido o cargo no dia 17 de abril do ano passado, na gestão de Flávio Dino no ministério da Justiça.
FUNCIONÁRIOS DE CARREIRA — O fato de Fontinelli ter assumido a direção do presídio por nomeação do atual governo bastou para que, logo após a fuga, começassem a surgir boatos e insinuações que tentavam estabelecer alguma vinculação de natureza política ou partidária entre o funcionário nomeado e os superiores que lhe confiaram o cargo. Isso, até que se prove o contrário, não existe.
Agente Federal de Execução Penal — nome de sua carreira no serviço público —, aprovado em concurso público, Fontineli passou por vários postos desde que, no ano de 2006, foi nomeado Responsável de Plantão do Setor de Monitoramento Eletrônico do presídio federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
Embora seja difícil acreditar que, num governo federal com as características do atual, onde até as diretorias mais técnicas da Caixa Econômica são objeto de barganha política, alguém galgue postos elevados sem ter um padrinho forte, que o conduza na escalada profissional. Esse, até segunda ordem, não parece ser o caso de Fontineli. O agente, que se transferiu para Mossoró em 2009, exerceu várias funções, inclusive na área de inteligência. Fez uma série de cursos de aperfeiçoamento e tem uma série de programas de qualificação no currículo.
Nada indica que ele tenha tomado direta ou indiretamente qualquer decisão que possa ter facilitado a fuga dos criminosos. Mesmo assim, seu afastamento foi necessário e se deu por imposição das circunstâncias. Por uma única razão: assim como o comandante é o responsável por tudo de bom ou de ruim que acontece dentro de um avião durante o voo, o diretor precisa dar conta de tudo o que se passa dentro da unidade prisional que ele comanda. A escala de responsabilidades, nesse caso, precisa ser respeitada e o primeiro a pagar pelo erro é aquele que ocupa o posto mais elevado.
Essa, aliás, é uma das vantagens de preencher os cargos públicos com funcionários de carreira, que demonstrem qualificação técnica para o posto, ao invés de seguir a tendência predominante no Brasil, que faz das afinidades políticas o critério preferencial para preenchimento dos cargos na máquina pública. Se, no exercício da função, o técnico de carreira em posição de comando fizer tudo certo e obtiver um desempenho acima da média, o bônus político por suas ações certamente será dado ao superior que o nomeou. Se, ao contrário, algo sair errado, esse funcionário poderá ser substituído com facilidade, sem que o problema gere qualquer constrangimento político para o responsável pela nomeação. Simples assim.
Além do afastamento de Fontineli e da nomeação de um interventor para dirigir o presídio, Lewandowski anunciou uma série de ações destinadas a resolver o problema. Entre elas estão a contratação de mais agentes, a implantação de um sistema de reconhecimento facial para todos os funcionários, presos, parentes, advogados e prestadores de serviço com acesso ao presídio e a construção de muralhas que dificultem as fugas.
São, sem dúvida, providências importantes e seu anúncio certamente pode ter um efeito positivo. Daí, porém, a acreditar que elas serão suficientes para manter o sistema penitenciário federal a salvo de problemas vai uma distância quilométrica. O Brasil precisa aprender que as decisões a respeito da Segurança Pública não podem ser tomadas de afogadilho, no calor dos fatos.
Em outras palavras, ações como as anunciadas por Lewandowski podem até passar a impressão de que as autoridades estão atentas ao problema e dispostas a agir para resolvê-lo. Mais cedo ou mais tarde, e mesmo que a decisão se mostre eficaz no primeiro momento, a falta de planejamento acaba expondo seus limites. O governo precisa entender que segurança se tornou um gênero de primeira necessidade no Brasil e que, sem um planejamento de médio prazo e sem ações de inteligência, nada ajudará a colocar tudo em seu devido lugar. E que é fundamental prender e tratar como presos os criminosos que ameaçam a sociedade e aumentar a liberdade de quem está do lado de fora.