Fazer o que Maduro faz é parte do DNA de qualquer ditador que precisa demonstrar força ao sentir o poder escapar entre seus dedos. No caso de Essequibo, o caudilho sabe muito bem que um país falido, ainda mais sob um governo corrupto como o seu, não tem a mínima condição de arcar com uma campanha onerosa como são as guerras de anexação territorial. Mesmo sem condição de levar a aventura adiante, ele mantém a ameaça de invadir a Guiana e grilar a região — uma área de 159 mil quilômetros quadrados, pouco maior do que o estado brasileiro do Ceará, que é rica em petróleo, ouro, cassiterita e outros minerais. E o pior é que muita gente, por conveniência ou falta de compreensão da realidade, leva a sério esse tipo de bravata.
Pode ser que a fragilidade do Exército guianense, com seus três ou quatro mil soldados, diante dos 125 mil combatentes na ativa sob seu comando, tenha levado o déspota Maduro a imaginar que, desta vez, sua aventura bélica talvez pudesse se tornar realidade com alguma chance de êxito. O mais provável, porém, é que, apesar da postura delirante que o torna capaz de qualquer loucura, Maduro jamais tenha levado a sério a ameaça de mobilizar as Forças Armadas venezuelanas contra a Guiana.
A consequência mais provável de um ataque venezuelano seria a de expor ao mundo o estado de indigência de seu Exército, que um dia até pode ter sido forte. Mas que, nos últimos anos, viu a maioria dos 514 tanques, 545 canhões e 118 caças que ele diz ter reduzidos a sucata por falta de recursos para a manutenção adequada que os manteria operacionais. Além disso, como acontece com qualquer ditador, Maduro se move pela covardia. Ele sabe muito bem que, caso transformasse as ameaças em ação, mexeria num vespeiro que, no final das contas, poderia lhe custar o cargo.
Dias atrás, numa reunião de cúpula no Rio de Janeiro, que marcou a despedida do Mercosul do inepto Alberto Fernández, que deixa a presidência da Argentina neste domingo, Lula falou da crise, mas não condenou Maduro. O presidente deixou clara sua intenção de pôr panos quentes na situação. "Coisa que não queremos na América do Sul é guerra. Não precisamos de guerra, de conflito. Precisamos construir a paz", disse.
Um recuo de Maduro justificado por um pedido de Lula teria efeitos positivos tanto para o tiranete venezuelano quanto para a fragilizada diplomacia brasileira. Para Maduro, a vantagem seria a de poder voltar atrás sem precisar admitir estar cedendo às pressões do governo norte-americano — que, na semana passada, despachou um grupo de soldados bem preparados para operações de guerra na selva para participar de um treinamento ao lado de militares da Guiana.
Para o Itamaraty, o benefício seria, depois dos sucessivos fracassos que vem colecionando desde que passou a se orientar pela diplomacia ideológica do assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Celso Amorim, ter algo para comemorar. E poder dizer ao mundo que, finalmente, teve papel decisivo na solução de um conflito internacional.
Por mais improvável que seja a guerra, é bom parar e pensar um pouco nas razões que teriam levado o caudilho Maduro a agir como agiu. A primeira impressão é a de que ele criou um foco de tensão desnecessário na América do Sul apenas por ser um bobalhão que não mede esforços para chamar a atenção do mundo. Sem desconsiderar essa possibilidade, é bom levar em conta que pode haver razões mais concretas por trás de todo esse quiproquó.
Num mundo sacudido por duas guerras que envolvem dois dos poucos aliados que lhe restam no mundo — a Rússia, que invadiu a Ucrânia, e o Irã, que está por trás da agressão covarde do Hamas a Israel —, Maduro resolveu entrar em cena para mostrar que, por mais pacóvio que seja, ainda tem poder suficiente para incomodar os inimigos de seus amigos. Ninguém se espantaria se soubesse que ele criou essa confusão toda apenas para desviar a atenção das tragédias que seus aliados criaram.
Na semana passada, enquanto ainda mostrava ao mundo o mapa que mandou desenhar já com Essequibo anexado ao território da Venezuela, Maduro anunciou que, nos próximos dias, fará uma visita ao ditador da Rússia, Vadimir Putin, em Moscou. Abandonar o próprio país em meio à crise que ele mesmo criou para se reunir do outro lado do mundo com um aliado com quem não tem assuntos urgentes a tratar não parece ser a atitude de um líder. Mas de gente como Maduro e Putin, é possível esperar tudo...
Legitimamente eleito, Chávez chegou a Miraflores em 1999 e deu início à perseguição sistemática de seus adversários e às promessas de trazer de volta o sonho de Simon Bolívar, o general que, em 1819, havia comandado a campanha vitoriosa que tornou a Venezuela, a Colômbia, o Equador e a Bolívia independentes da Espanha. O desejo de Bolívar era unir toda a América Latina numa confederação que se estendesse do Rio Grande, a fronteira do México com os Estados Unidos, até o extremo sul da Patagônia.
Chávez nunca escondeu a intenção de, em nome do devaneio de Bolívar, reunir os países da América do Sul sob uma espécie de federação de governos de esquerda. E fez o que pôde para alcançar esse objetivo. Embora esse seja um assunto delicado, sobre o qual jamais houve investigações esclarecedoras, há evidências de que ele usou um pouco do dinheiro que a Venezuela tinha de sobra nos momentos iniciais de seu governo para ajudar a financiar a campanha vitoriosa de Lula à presidência da República, em 2002. No ano seguinte, irrigou com dólares e mais dólares a campanha do peronista Nestor Kirchner à presidência da Argentina.
Com gastos desse tipo, altos investimentos militares, programas sociais implementados sem o menor planejamento e a despreocupação com a saúde das contas públicas típica dos populistas, a pujante Venezuela não demorou a entrar em declínio. Para piorar, o preço do barril de petróleo, que andava perto dos US$ 100 no início do século, sofreu uma queda vertiginosa e aumentou ainda mais as dificuldades causadas pela corrupção e pela incompetência da administração de Chávez.
O governo se manteve de pé, mas logo passou a ter dificuldades para encontrar outros países dispostos a negociar com ele. E acabou se tornado uma companhia indesejada no mundo inteiro. Governada por uma elite militar, sindical e narcoterrorista e sustentada no poder pela truculência da Milícia Nacional Bolivariana, uma guarda pretoriana que abusa da violência para manter a população sob controle, o certo é que a Venezuela enfraquecida pela crise econômica crônica e pela falta de apoio internacional não tem a mínima condição, por mais que Maduro acredite nessa ideia, de sair vitoriosa numa campanha militar pela posse de Essequibo.
Enquanto seu povo se afundava na mais absoluta miséria e 5,4 milhões de venezuelanos fugiram do país em busca de sobrevivência digna em outras partes do mundo — conforme dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados —, o país foi se tornando cada vez mais isolado. E, como sempre acontece com os ditadores embevecidos pela própria imagem, Nicolas Maduro, que assumiu o poder depois da morte de Chávez, em março de 2013, passou a procurar os culpados pela tragédia que ele mesmo causou.
Como é comum entre a esquerda latino-americana — que nunca se deu ao trabalho de abrir um livro para tentar entender o mundo para além das palavras de ordem gritadas nas assembleias sindicais ou estudantis —, o capataz Maduro passou a apontar o dedo na direção dos Estados Unidos e a acusá-lo de ser a causa de todos os seus problemas. Até que chegou o momento em que as autoridades norte-americanas perderam a paciência com o tirano falido e resolveram agir. E com base nas frequentes violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura, o Congresso dos Estados Unidos impôs sanções comerciais severas à Venezuela.
Atenção! Quem pôs o nome de Maduro na lista de figuras indesejáveis não foi o republicano Donald Trump, como muita gente acredita. As primeiras reações aos abusos do caudilho partiram do democrata Barak Obama... Na medida em que as restrições diplomáticas e comerciais dos Estados Unidos contra seu regime despótico foram se tornando mais rígidas, a Venezuela foi vendo sua lista de aliados no mundo reduzida a meia dúzia de governos que ainda levam a sério o delírio "bolivariano" criado pelo coronel Chávez. Entre os aliados, infelizmente, estão os governos petistas do Brasil.
A Guiana é o único país sul-americano que tem o inglês como idioma oficial. Se a Venezuela um dia teve algum direito sobre aquele território — que recentemente se revelou rico em petróleo e minérios —, ele ficou no passado, junto com os mapas que os colonizadores espanhóis traçaram para definir os limites de suas ex-colônias sul-americanas.
Se o Brasil tivesse o azar de ser governado por um ditador sem limites como Maduro, talvez se achasse no direito, com base no mesmo critério utilizado pelo caudilho venezuelano, de reivindicar a reanexação de sua antiga província Cisplatina — que se tornou o Uruguai depois da guerra de independência vencida pelas forças de Juan Antonio Lavalleja em 1825. Ou o Paraguai, com muito mais razão, poderia pedir de volta o pedaço do Mato Grosso do Sul que perdeu para o Brasil depois da guerra entre os dois países, que durou de 1864 a 1870. Só que o mundo não é mais assim e as decisões como essa estão acima da vontade pessoal de um déspota como Maduro.
Essa talvez seja outra razão para o recuo de Maduro: ele sabe que um passo mal dado no sentido de tentar aumentar sua popularidade pode acabar lhe custando não só o cargo, mas talvez a própria liberdade. Se ele cair, será ótimo para o povo venezuelano.
Em meio a isso tudo, é lamentável a inércia do governo brasileiro diante de uma ditadura que nada de bom tem a oferecer a quem quer que seja. Lula ganharia muito se, ao invés de ficar adulando o ditador venezuelano com palavras suaves e fechando os olhos para todos os seus desmandos e crueldades, fizesse uma condenação firme à atitude do tirano. Isso, porém, é esperar demais.
Diante das informações de que a rota mais desimpedida que as tropas de Maduro teriam que percorrer para invadir a Guiana tem cerca de 350 quilômetros no estado de Roraima, o ministro da Defesa José Múcio determinou o deslocamento de 28 veículos blindados de combate para proteger o território brasileiro. Também serão deslocados 150 militares para fortalecer a guarnição de Pacaraima. Até aí, tudo bem. O governo tem a obrigação de zelar pela integridade do território nacional e essa missão, por dever constitucional, cabe às Forças Armadas.
A questão é que esse reforço deve demorar cerca de 30 dias para se deslocar de postos militares no Sudeste até o extremo Norte do país. Isso mesmo: 30 dias ou, se preferir, um mês. Nesse período, se Maduro estivesse mesmo disposto a pagar o preço por sua insanidade, as tropas venezuelanas já teriam tido tempo de sobra para passar pelo Brasil e invadir a Guiana. Com um senso de urgência como esse, convenhamos, as medidas de dissuasão anunciadas pelo governo brasileiro correm o risco de ser confundidas com estímulo à guerra. Um pouco mais de firmeza nessa hora faria um bem enorme à imagem do Brasil e de Lula.
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