Antes de prosseguir, é bom avisar que essa percepção nada tem a ver com a disputa ideológica rasteira que tem marcado as discussões sobre as eleições no país vizinho desde a divulgação dos resultados, na semana passada. As razões que indicam o aspecto positivo do resultado para o Brasil são pragmáticas e se baseiam apenas nas posições críticas de Milei em relação ao Brasil.
Sendo assim, e sem levar em conta aquilo que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pensa sobre Milei e vice-versa, o resultado foi bom para o Brasil. E isso se deve justamente ao fato dele prometer orientar a relação entre os dois países na direção contrária daquela que seu oponente, o peronista Sergio Massa, pretendia. Enquanto Massa queria proximidade, Milei quer distância. Se ele acha que o problema da economia argentina é a proximidade excessiva com o Brasil, ótimo para nós.
A apuração dos votos e a vitória de Milei com 55,7% dos votos válidos, contra 44,3% dados a Massa, desencadeou uma série de comparações entre os cenários dos dois países — como se aquilo que está acontecendo em um deles pudesse ser transportado sem retoques para o outro. Há, sem dúvidas, semelhanças a ser observadas. A principal delas é a força que o populismo de esquerda acumulou nos dois países nos últimos anos. As experiências nesse sentido, tanto na Argentina quanto no Brasil, estão enraizadas a ponto de muita gente ver o populismo de direta como a única saída dessa armadilha. O problema é que, seja de direita ou de esquerda, o populismo sempre leva ao atraso. Um e outro prometem mundos e fundos para atrair votos, mas acabam sempre por frustrar o eleitor por não conseguir cumprir os compromissos.
Até onde a memória alcança, Milei foi o primeiro político argentino capaz de ganhar uma eleição com um discurso que não faz concessões ao populismo. Se seu governo vai se manter coerente com as promessas de campanha, é outra história. Mas voltando às comparações entre os dois países e falando das semelhanças que vêm sendo atribuídas entre a vitória de Milei e a de Jair Bolsonaro, em 2018, é bom prestar atenção em algumas peculiaridades importantes.
Bolsonaro, na campanha vitoriosa de cinco anos atrás, sustentou seu discurso na promessa de combate à corrupção e na pauta de costumes, mas deixou a economia a cargo do economista Paulo Guedes. Já Milei, até por ser economista de formação, pôs o dedo na ferida. Prometeu combater a inflação e eliminar o drama cambial argentino fazendo do dólar a moeda oficial. Prometeu também enxugar a máquina pública.
Não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma ousada de seu discurso, acabou ganhando fama de doido. Agia como se fosse aquela "mescla rara de penúltimo vagabundo e primeiro clandestino numa viagem a Vênus", mencionada no tango Balada Para um Louco, de Astor Piazzola. Tudo bem. Em um país que, na primeira metade do século 20, era um dos mais ricos do mundo e viu sua fortuna corroída pelo populismo, pela demagogia e pela corrupção, talvez, só mesmo um maluco consiga fazer as mudanças capazes de deixar a situação em ordem. Se esse maluco é Milei, só o tempo dirá.
Seja como for, a postura ousada, as propostas diferentes e as alianças com a direita tradicional argentina garantiram os votos que deram a Milei mais de 11 pontos percentuais de vantagem sobre o candidato peronista. Para se ter uma ideia de como o resultado é representativo, basta lembrar que a vantagem de Lula sobre Bolsonaro nas eleições do ano passado foi pouco abaixo de dois pontos percentuais.
Além de ajudar a destruir a economia de seu país, pesa contra Cristina a acusação de estar por trás do assassinato do promotor Alberto Nisman. Ele foi morto em janeiro de 2015, na véspera de denunciá-la criminalmente por acobertar os iranianos do Hezbollah que, em 1994, praticaram o atentado a bomba que matou 85 pessoas num centro judaico em Buenos Aires. O grande feito de Fernández foi, na economia, conseguir ser mais inepto do que Cristina e se tornar o pior presidente da Argentina desde Bernardino Rivadavia, que assumiu o poder em 1826. Isso é facilmente comprovado pela comparação dos números que ele recebeu de Macri com os que ele está entregando agora a Milei.
A dívida pública, que andava pela casa de US$ 35 bilhões em 2019, saltou para US$ 447 bilhões. A inflação, que era de 34,3% ao ano, hoje está por volta de 150%. A taxa de juros, de 33% ao ano com Macri, pulou para 140% com seu sucessor. O dólar valia 38 pesos argentinos pelo câmbio oficial. Hoje, está cotado em 358 pesos e todos os economistas sabem que esse valor é irreal e terá que ser corrigido com urgência. Em 2019, 9,7% da população argentina viviam em estado de pobreza. Hoje, 40% vivem nessa situação.
Num cenário como esse, uma eventual vitória do peronista Sergio Massa certamente significaria um estreitamento ainda maior dos laços entre os dois países. Isso, em outras palavras, significaria que o Brasil continuaria fazendo o papel do avalista que assumiu ao longo de 2023. E a Argentina, por sua vez, continuaria agindo como aquele cunhado estroina e caloteiro, que não tem o menor pudor de dilapidar o patrimônio amealhado pelo outro para seu próprio benefício.
Desde que tomou posse, em janeiro deste ano, Lula fez em direção ao vizinho do sul uma série de concessões perigosas que, mais cedo ou mais tarde, se voltariam contra o Brasil. Sem cobrar qualquer correção de rota na política econômica de um governo habituado a gastar o que não tem para se garantir no poder, o presidente brasileiro já tomou posse prometendo salvar a Argentina.
Foi para Buenos Aires que o presidente brasileiro fez a primeira viagem internacional de seu terceiro mandato. Isso aconteceu ainda no primeiro mês de sua nova administração. Fernández não perdeu tempo e retribuiu a visita em maio. Em Brasília, ele ouviu as promessas de ajuda que Lula fez questão de cumprir nos meses seguintes.
"Eu e meu governo estamos solidários à luta que o governo argentino, do nosso amigo Alberto Fernández, faz com relação à situação econômica dentro da Argentina, agravada por uma seca que causou muito prejuízo às exportações", disse Lula. Ou seja, debitou na conta do clima a culpa pela irresponsabilidade crônica de um governo que nunca moveu uma palha para deixar as contas públicas em ordem.
Lula, além disso, determinou que seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, intercedesse junto ao FMI e pedisse ao organismo internacional para "tirar a faca do pescoço da Argentina". Por "faca no pescoço" entenda-se a cobrança pelos compromissos que a Argentina assumiu com o FMI e, como sempre teve o hábito de fazer sob governos peronistas, nunca se deu ao trabalho de cumprir.
Foi Lula quem interferiu junto ao Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), um organismo multilateral dos países da região, para descolar um empréstimo de US$ 1 bilhão, ou cerca de R$ 5 bilhões, e ajudar a Argentina a aliviar suas pendências junto ao FMI. Detalhe número 1: o empréstimo foi liberado em plena campanha eleitoral em que Massa, ministro da Economia de Fernández, se apresentava como a solução para os problemas que ele ajudou a criar. Detalhe número 2: se a Argentina não pagar, quem pagará? Uma dica: um vizinho, cujo nome tem seis letras. A primeira é B e a última, L.
Não foi só. Lula também abriu para a Argentina as portas do Brics, o bloco econômico dos países emergentes. Mais do que isso, já estava assumindo a condição de avalista em um empréstimo do NDB — o banco do Brics, que é comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff. E sempre é bom insistir nesse ponto: em momento algum o Brasil cobrou que a Argentina abandonasse a gastança e desse garantias reais de que honraria os compromissos.
Ainda não terminou. Em agosto deste ano, o Brasil assinou com a Argentina um acordo de US$ 600 milhões, destinado a financiar as exportações brasileiras ao país vizinho. Pelo acordo, se a Argentina comprar alguma mercadoria do Brasil e der calote, o Banco do Brasil, o BNDES e o CAF cobrirão o prejuízo. Acordos como esse não são novidades no mundo e muitos países mantém acordos bilaterais como esse. O problema, no caso, não é a modalidade do negócio e, sim, fazê-lo com um mau pagador contumaz.
No calor da campanha eleitoral, o novo presidente da Argentina baixou o nível ao ponto de dirigir ofensas pessoais a Lula e chegou ao absurdo de prometer romper relações diplomáticas com o Brasil. Isso, ainda que a fama de lunático que ele pretendeu passar ao eleitorado fosse verdadeira, ele não fará em hipótese alguma. Não porque não queira, mas porque ele sabe que isso é impossível.
Seja como for, o certo é que, por iniciativa tanto de Milei quanto de Lula, as relações entre os dois países ficarão mais frias e distantes do que seriam com Massa. O afastamento servirá, no mínimo, para pôr um freio numa relação que vinha se tornando perigosa e para e evitar que o Brasil receba da Argentina o abraço do afogado que poderia levá-lo para o fundo do poço. Se Massa tivesse vencido, o abraço seria inevitável e os dois acabariam afundando juntos.
É aí, portanto, que está o maior benefício da vitória de Milei. Ele consiste, justamente, em romper os laços perigosos que vinham sendo atados entre os dois países. E, com isso, evitar que as relações perigosas que vinham sendo estabelecidas entre o governo petista de Brasília e o comando peronista de Buenos Aires ultrapassassem os limites que devem pautar as relações entre dois parceiros importantes.
Com Milei na Casa Rosada, é provável que as relações entre os vizinhos se limitem àquilo que é razoável entre países que não precisam ser amigos para tirar o melhor proveito possível de suas afinidades comerciais. Em março deste ano, por exemplo, o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-Yeol, visitou o Japão, país próximo com quem mantém divergências seculares. "Devemos encerrar o ciclo vicioso de hostilidade mútua e trabalhar juntos para buscar os interesses comuns de nossos dois países", disse Yoon.
Esse exemplo comprova a possibilidade de que relações comerciais podem ser mantidas além das divergências e que os governos, mesmo não compartilhando os mesmos pontos de vista, são capazes de encontrar interesses comuns e tirar o melhor proveito deles. Eles podem até ter rusgas diplomáticas, mas isso não os impede de fechar acordos nem de definir os termos que pautarão o acesso de um ao mercado do outro. E de evitar que tomem decisões equivocadas que, no final das contas, podem se voltar contra seus próprios trabalhadores.
No caso das relações do Brasil com a Argentina, um solavanco mais sério prejudicaria as empresas que fizeram investimentos vultosos com base nos acordos existentes. Um rompimento desses acordos faria com que os dois passassem a ser evitados pelos investidores internacionais. E acabaria com um acerto bom para os dois lados. No caso do setor automotivo, por exemplo, o Brasil importa carros feitos na Argentina e manda para lá outros modelos, que são fabricados aqui. O mesmo acontece com as autopeças e com motores.
Um caso emblemático é o da picape Ranger, produzida pela Ford na fábrica de Pacheco, província de Buenos Aires. Em 2021, como se sabe, a montadora americana fechou todas as fábricas que mantinha no Brasil. Mas não apenas manteve em funcionamento sua operação na Argentina como tratou de modernizá-la. Só este ano, a Ford argentina recebeu da matriz US$ 600 milhões em novos investimentos.
É aí que está o xis da questão. A Ford, que saiu do país por problemas relacionadas com o custo trabalhista elevado, nunca abriu mão do mercado brasileiro. Por conveniências, preferiu explorá-lo a partir de suas fábricas argentinas, onde a lei, por mais protecionista e atrasada que seja, foi considerada mais suportável do que a nossa CLT.
Isso é um exemplo de que a Argentina, por mais danos que tenha sofrido nos últimos anos, ainda oferece aos investidores vantagens que poderão se tornar maiores caso Milei consiga colocar o país minimamente em ordem. Seja como for, a parceria entre o Brasil e a Argentina é sólida e não pode ser rompida num estalar de dedos em razão da simpatia que um presidente sente pelo outro.
A Argentina, que importou 13,1 bilhões de dólares do Brasil no ano passado, é o terceiro maior comprador de produtos brasileiros do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. O Brasil, por sua vez, é o maior comprador de produtos argentinos, com US$ 13,1 bilhões importados em 2022. Esses números têm tudo para aumentar e certamente aumentarão caso a economia da Argentina volte a crescer e a inspirar confiança nos parceiros. Tomara que isso aconteça.
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