Nuno25fevARTE KIKO
Não se trata, aqui, de discutir se Lula está certo ou errado ao dizer o que disse. Muito menos de colocar mais lenha no fogo de uma discussão que sequer deveria ter começado. O assunto que será tratado será a diplomacia e seu papel em situações como essa. O conceito diz respeito ao código de conduta que deve orientar as relações entre nações e aos procedimentos a serem mobilizados para buscar o entendimento nos casos de desavenças.
Numa visão superficial, pode-se dizer que os Chefes de Governo comandam a política e apontam a direção que seus diplomatas devem seguir. Esses, por sua vez, se encarregam de defender os interesses do Estado junto a representantes dos demais Estados e, nesse trabalho, de buscar obter as maiores vantagens possíveis para seu país e de contornar os problemas que surgirem pelo caminho.
O termo foi utilizado pela primeira vez no ano de 1796, pelo filósofo e político britânico Edmund Burk. Depois dele, outros pensadores se encarregaram de aprofundá-lo e deixar claro que a diplomacia não diz respeito ao conteúdo, mas à forma de se conduzir uma questão, por mais delicada que pareça. "O objeto da diplomacia é (...) o método através do qual são conduzidas as negociações e não o conteúdo", afirma o verbete dedicado ao tema no Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio e outros estudiosos italianos nos anos 1980.
Isso significa o seguinte: um país pode ter diferenças abissais com outro. Isso, porém, não o impede de lidar com o problema sem partir para hostilidades, no ambiente adequado e com o devido respeito às posições do adversário. As diferenças entre eles podem e devem ser discutidas — de modo a que nenhum dos dois precise aderir às ideias do outro para continuarem convivendo. A função da diplomacia numa situação conflituosa não é promover a amizade entre povos e países que não se entendem. É garantir que eles não se agridam e, se possível, estabelecer termos de convivência aceitos, praticados e respeitados pelos dois.
Foi, realmente, um marco. Depois de três guerras violentas (em 1948, 1967 e 1973), os inimigos históricos chegaram a um termo de convivência que, se não era perfeito, mostrou-se o mais razoável. Ele só foi possível porque tanto Israel quanto o Egito perseguiram o entendimento e não se apegaram a detalhes desnecessários. Ao contrário, renunciaram a uma série de exigências para chegar ao fim dos conflitos. Criticado na época, sobretudo pela comunidade árabe, que nunca reconheceu a existência de Israel como país, o acordo sobrevive há quase meio século em meio às hostilidades que tomam conta da região.
Calma! Já, já falaremos da crise entre o Brasil e Israel aberta pela declaração de Lula. O que interessa, por enquanto, é apontar que, por mais profundas que sejam as divergências entre nações, é sempre bom evitar ultimatos. Pelo contrário, sempre é conveniente manter aberto um canal de diálogo. Isso é necessário, nem que seja apenas para se oferecer aos dois lados uma oportunidade de recuar de uma determinada posição sem que isso pareça capitulação.
Dito isso, e já dando um passo em direção à discussão das declarações inoportunas de Lula e da reação do governo de Israel ao que ele disse, é bom observar alguns pontos — que, por sinal, deveriam ser considerados nas negociações entre os dois países daqui por diante. Embora a relação entre eles nos últimos anos tenha oscilado entre a antipatia declarada, assumida pela ex-presidente Dilma Rousseff, e a adesão absoluta, percebida nos momentos iniciais do governo de Jair Bolsonaro, os dois países não têm motivo algum para agirem como inimigos. Da mesma forma, não há razões para que se comportem como aliados incondicionais.
Embora a relação entre o Brasil e Israel, neste momento, esteja marcada pela tensão, é importante observar que as desavenças não nasceram de nenhum dos problemas que normalmente levam dois países a um conflito. Sim! Quem analisa os fatos — e percebe os interesses que estão em jogo para um e para o outro — não encontra uma única razão para que a tensão tenha chegado ao ponto a que chegou.
Os dois países não têm, por razões óbvias, qualquer pendência relacionada com questões territoriais, como a que justificou a guerra das Malvinas entre a Argentina e a Inglaterra em 1982. Não houve entre eles o rompimento de qualquer tratado que os pusesse de lados opostos em questões relacionadas a seus próprios interesses — como o que levou à entrada da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial, depois do ataque da Alemanha nazista à Polônia. E por aí vai.
Ou seja, naquilo que diz respeito a seus interesses específicos, jamais houve qualquer fato razoável que se mostrasse forte o bastante para justificar que Brasil e Israel ajam como se um fosse o Inimigo nº 1 do outro, como fizeram na semana passada. O que houve foram declarações inoportunas e provocações que, sinceramente, não fazem bem ao Brasil, que, neste momento, enfrenta problemas sérios demais para se envolver em um bate-boca como esse.
Nesse cenário, não é segredo que, a despeito da neutralidade manifestada nos momentos iniciais do atual conflito no Oriente Médio, em outubro do ano passado, Brasília nunca procurou esconder sua simpatia pela causa palestina. E essa simpatia, como fica mais evidente a cada momento, se estende ao grupo Hamas. Nesse ponto, o país sequer admite aquilo que já está claro para o mundo inteiro — ou seja, que o grupo não passa de uma organização terrorista que rejeita a paz. Para o Hamas, a criação de um Estado Palestino é menos importante do que a destruição de Israel.
A pergunta é: o que o Brasil tem a ganhar com essa postura? A rigor, nada. A posição em relação a um conflito que deveria ser marcada por uma neutralidade real, e não apenas da boca para fora, se sustenta mais pelas afinidades puramente ideológicas do atual governo com um dos lados envolvidos no conflito e seus apoiadores — como é o caso da ditadura do Irã. Embora tenha anunciado desde o início a intenção de promover a paz, o Brasil nunca foi convincente em sua condenação aos atentados terroristas covardes que desencadearam o conflito.
Em novembro passado, com o mundo ainda horrorizado diante dos relatos dos estupros de mulheres, da degola de civis e da incineração de bebês pelos terroristas do Hamas, o assessor especial para a presidência da República Celso Amorim deu uma declaração infeliz. Sem condenar a ação terrorista do Hamas, ele classificou como "genocídio" a reação de Israel à agressão sofrida.
Num cenário como esse, a declaração de Lula no domingo passado, que foi mais infeliz ainda, em Adis Abeba, capital da Etiópia, não trouxe a menor surpresa. "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino", disse Lula, "não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus".
Se tivesse parado antes de dizer a última frase, Lula até poderia ser acusado de cometer um exagero verbal contaminado pela parcialidade. Poderia ser criticado até por não estender a mesma indignação a seus aliados — como faz ao poupar a Rússia de críticas pelas atrocidades que comete na Ucrânia. Por mais que o ditador Vladimir Putin mande assassinar seus opositores, o governo brasileiro não se manifesta em relação a isso. Seja como for, se não tivesse mencionado Hitler em sua declaração, Lula jamais poderia ser acusado de cometer uma ofensa grave a Israel.
O fato é que ele falou e o que aconteceu depois disso foi uma sucessão de fatos lamentáveis. Lula não deveria ter falado o que falou. O governo de Israel reagiu à altura e declarou o brasileiro "persona non grata". E no jogo de ação e reação que se seguiu a isso, uma situação que não deveria nem precisava ter acontecido acabou evoluindo para um incidente diplomático de grandes proporções.
O que Lula falou soou como uma ofensa ao povo de Israel e aos judeus do mundo inteiro. Ao mencionar o nazista, ele acabou remetendo à morte de pelo menos seis milhões de judeus perseguidos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial pelo simples fato de serem judeus.
Mesmo assim, a crise poderia ter sido evitada se os diplomatas tivessem entrado em campo imediatamente para alertar o presidente para os riscos da declaração e orientá-lo a esclarecer seu ponto de vista antes que a questão chegasse ao ponto a que chegou. Não foi o que aconteceu. Escolhidos a dedo para cumprir uma missão cada vez mais contaminada pela ideologia e mais distante do pragmatismo, o que a equipe de Relações Exteriores do país fez foi jogar mais gasolina na fogueira. Se o Itamaraty fez algo de concreto para evitar o conflito, não surtiu o menor efeito.
Em nome desse princípio, por exemplo, o Brasil, que na época vivia sob uma ditadura militar de direita, foi o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola. Isso aconteceu logo depois de a nação africana, em novembro de 1975, declarar sua independência de Portugal e se firmar como uma república socialista. Naquele momento, o Brasil preferiu preservar seus interesses a se guiar pela ideologia e comprometer suas relações comerciais e estratégicas em Angola. Agora, na era petista, tem acontecido justamente o contrário.
Um exemplo disso foi o destino das instalações da Petrobras na Bolívia, em 2006. Pouco tempo depois de assumir o comando do país, o cocaleiro Evo Morales, que presidia o país na época, mandou o Exército boliviano ocupar as refinarias da estatal brasileira que funcionavam em seu território. A rigor, elas não pertenciam ao governo, mas aos acionistas da empresa. Sob a batuta de Garcia, Brasília não apenas não reagiu à agressão como, ainda, entregou as instalações de mão beijada ao cocaleiro.
Uma postura como essa pode até ser aplaudida pelos apoiadores mais exaltados do governo. Afinal de contas, essa turma dá à suposta liderança que o país, sob Lula, busca exercer na América Latina uma importância superior ao bom relacionamento com os países mais desenvolvidos do mundo. E que, no esforço para justificar essa opção ideológica, acaba ignorando os riscos que o país corre ao se afastar dos Estados Unidos e da Europa para alinhar seus interesses aos de países como Rússia, China, Irã e até de ditaduras menos importantes, como Cuba e Venezuela...
É preciso alertar para o risco dessa opção. Ainda que, na imagem alardeada pelos apoiadores do atual governo, o país tenha recuperado com Lula o prestígio internacional perdido durante o governo Bolsonaro, o Brasil, por mais que tenha tentado, não conseguiu assumir o protagonismo em relação a qualquer evento importante que aconteceu no mundo de janeiro de 2023 para cá.
É triste, porém necessário, constatar que, ao seguir por esse caminho, o Brasil cria arestas desnecessárias justo no momento em que se prepara para as negociações importantes que, de fato, podem dar a ele o prestígio sonhado por Lula. Sobretudo no que diz respeito aos debates no campo da transição energética e da preservação ambiental — tema em que os principais interlocutores são justamente os países que ele rejeita para aderir às causas que tem abraçado.
O que a causa ambiental tem a ver com o conflito no Oriente Médio? À primeira vista, nada. Reparando bem, tudo. Num mercado global cada vez mais competitivo, uma declaração infeliz como essa pode obrigar os diplomatas brasileiros a tirar sua atenção da pauta que interessa para explicar ao mundo que Lula não quis ofender ninguém — embora a ofensa esteja mais do que clara.
Justamente para reduzir os efeitos da crise, a diplomacia brasileira precisa entrar em campo — e não permitir que palavras desnecessárias como as de Lula se transformem na causa de dissabores capazes de adquirir grandes proporções. Para ilustrar o cenário que pode surgir caso o país persista no erro de não se desculpar, nada melhor do que recordar o fato protagonizado pelo falecido ditador Hugo Chávez, que, em um momento tão infeliz quanto o de Lula, marcou o início do isolamento da Venezuela no cenário internacional.
Em seu discurso durante a Cúpula Ibero Americana realizada em Santiago em novembro de 2007, e fiel ao estilo boquirroto que sempre caracterizou sua trajetória, Chávez fez críticas duras e ofensivas ao ex-primeiro-ministro espanhol José María Aznar — acusado por ele de ligação com um movimento que tentara tirá-lo do poder anos antes. Nada havia fora da cabeça baldia do ditador que comprovasse tal hipótese.
Presente ao encontro, na condição de chefe do governo espanhol, o então primeiro-ministro José Luis Zapatero se viu na obrigação de defender o antecessor. Esperou sua vez de falar e, quando isso aconteceu, começou a apresentar argumentos a favor de Aznar. Nessa hora, ele passou a ser interrompido com insistência pelo déspota venezuelano, que, ao invés de recuar, aumentou o tom das ofensas.
Zapatero exigiu respeito. O outro continuou falando as estultices habituais. Até que o rei Juan Carlos, que estava ali na condição de Chefe de Estado, dirigiu-se a Chávez e o repreendeu: "¿Por qué no te callas?". Irritado, como costumam ficar os déspotas diante de quem os confronta, o caudilho não gostou de ser reprimido e, a partir dali, se voltou contra tudo o que dissesse respeito aos interesses espanhóis.
Chávez anunciou que, "em represália" ao rei, promoveria o aumento dos impostos sobre as operações de companhias espanholas na Venezuela. E deu início a uma série de atos hostis que, no final das contas, levaram à retirada de todas as companhias internacionais mais relevantes do território venezuelano.
A ousadia do ditador se apoiava na leitura errada que ele fazia do cenário e da importância da Venezuela no mundo. Num cenário em que a arrogância de Chávez crescia junto com a cotação do barril do petróleo, ele considerava que a companhia de seus aliados internacionais — em especial a Rússia, a China, o Irã e o próprio Brasil — era suficiente para compensar o afastamento das grandes democracias ocidentais.
O desenrolar dos fatos mostrou que ele estava errado. Aquela e outras atitudes que Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, tomaram acabaram por consolidar o isolamento da Venezuela e determinar seu declínio. Tomara que a diplomacia atue com eficiência e que episódios como o de domingo passado não ponham o Brasil na mesma direção.
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