O foco do noticiário no domingo passado — véspera da abertura oficial do evento — se concentrou totalmente no destempero verbal de JanjaArte Paulo Márcio

Se tudo tivesse saído conforme o planejado, a reunião de Chefes de Estado que marcou o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à frente do G-20 — o grupo dos 20 países mais ricos do mundo — teria sido um passo importante para o Brasil restaurar o prestígio internacional que vem perdendo há pelo menos dez anos. Uma oportunidade para se reaproximar de vez dos países desenvolvidos que, querendo ou não os chefes da diplomacia ideológica praticada pelo Itamaraty, são os clientes potenciais do mercado que pode abrir para o Brasil o ingresso definitivo no mundo das economias desenvolvidas: o da transição energética. Só que não...
No campo das formalidades diplomáticas, o resultado foi mais ou menos aquele que se esperava. Lula e seus assessores permitiram que suas preferências pessoais por esse ou aquele governante ficassem evidentes do início ao fim do encontro. No que se refere à repercussão do evento e à projeção da imagem e das teses defendidas pelo mandatário brasileiro ao redor do mundo, o resultado foi, na melhor das hipóteses, muito discreto para ser comemorado.
Além disso, o governo foi obrigado a apagar incêndios ateados pelo fogo amigo e por acontecimentos paralelos que, no final das contas, acabaram fazendo com que a presença dos principais líderes globais no Rio de Janeiro fosse tratada como fato secundário. Isso mesmo, num momento da passagem pelo Brasil do norte-americano Joe Biden, na última viagem de seu mandato presidencial, do francês Emmanuel Macron, do chinês Xi Jinping, do primeiro-ministro inglês Keir Stamet, do alemão Olaf Scholz e mais um monte de Chefes de Estado de primeira grandeza, quem ocupou as manchetes foi a primeira-dama Janja da Silva.

SEM TRAQUEJO — O foco do noticiário no domingo passado — véspera da abertura oficial do evento — se concentrou totalmente no destempero verbal de Janja. No sábado, em um painel do G-20 Social — evento prévio à cúpula do G-20, criado pelo Brasil para divulgar as bandeiras que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem defendido no cenário internacional —, enquanto fazia uma defesa inflamada do “controle” das redes sociais, ela tratou de trazer para a festa um nome que, se dependesse do governo brasileiro, teria disso mantido longe da cerimônia. O do multibilionário sul-africano Elon Musk.
O episódio foi bizarro do começo ao fim e serve como um ótimo exemplo de que, em ambientes oficiais, às vezes é mais conveniente deixar opiniões pessoais do lado de fora. O evento, como se sabe, aconteceu nas instalações do Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo, que fica às margens da Baía de Guanabara. Em determinada altura da fala de Janja, um barco que passava por perto, provavelmente uma embarcação da Marinha do Brasil, responsável pelo patrulhamento da área, soltou uma buzina estridente.
Ainda sem o traquejo que o marido tem de sobra para proferir anedotas em público sem causar danos a seu prestígio pessoal, Janja passou do ponto. Ela talvez tenha se esquecido de que não estava num convescote partidário — mas, sim, num encontro oficial, que tinha a chancela do governo brasileiro. “Acho que é o Elon Musk”, reagiu ao barulho do navio. “Eu não tenho medo de você. Inclusive, f*ck you, Elon Musk”. Se algum brasileiro ainda não conhecesse o significado dessa expressão chula em inglês, a repercussão da fala da primeira-dama deixou claro se tratar de um palavrão...

DESCONFORTO DIPLOMÁTICO — O que interessa, naturalmente, não é saber se a primeira-dama tem ou não tem medo de Musk. No mesmo discurso, a esposa do presidente da República se referiu de forma jocosa ao homem que, dias antes, tinha tirado a própria vida no gramado em frente ao Supremo Tribunal Federal. “E o bestão lá acabou se matando com fogos de artifício”, disse Janja, logo depois de se referir ao ministro Alexandre de Moraes como “um grande parceiro nessa questão das fake news”.
Seja lá qual tenha sido a intenção de Janja ao incluir o suicida e o ministro Moraes no mesmo raciocínio, o fato é que o governo tinha feito um esforço monumental para impedir que o atentado que houve à sede do STF diminuísse o brilho do encontro. Mas o assunto incômodo veio à tona naquele ambiente, e quem o trouxe não foi a oposição nem os adversários do Brasil. Mas a própria primeira-dama...
As palavras da primeira-dama em relação a Musk não teriam passado de uma indelicadeza com quem não estava ali para se defender se não fosse por um detalhe. A partir do próximo dia 20 de janeiro, ele deixará de ser “apenas” um bilionário desafeto da esquerda latino-americana para se tornar uma autoridade do governo dos Estados Unidos. Musk assumirá a recém-criada Secretaria da Eficiência Governamental da nova administração de Donald Trump no governo dos Estados Unidos.
Diante desse fato, as palavras da primeira-dama deixaram de chamar a atenção apenas pela descortesia para se transformar na causa de um desconforto diplomático absolutamente desnecessário. E com o qual o Brasil, ainda que o atual governo não esconda suas desavenças em relação aos Estados Unidos, nada tem a lucrar. No dia seguinte ao discurso de Janja, e certamente alertado por sua assessoria para as consequências daquela fala num momento em que o Itamaraty se esforçava para eliminar arestas no relacionamento com a futura administração norte-americana, Lula se pronunciou a respeito.
“Eu queria dizer para vocês que essa é uma campanha em que a gente não tem que ofender ninguém. Nós não temos que xingar ninguém. Nós devemos apenas indignar a sociedade”, afirmou o presidente no discurso de encerramento do G-20 Social. Lula teria preferido, naturalmente, utilizar todo seu discurso para defender a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas — objetivo que ele persegue com obstinação — e na necessidade de mais ações de combate à fome no mundo.
Pouca gente, porém, parecia interessada em ouvir o que ele tinha a falar sobre a necessidade de taxação das grandes fortunas e outros temas de seu interesse. A curiosidade geral se voltou para a forma como a fala de Janja seria recebida pela diplomacia de um presidente como Trump, que nunca procurou esconder suas divergências em relação à esquerda latino-americana e ao atual governo do Brasil.

“PRÓXIMAS ELEIÇÕES” — A reação de Musk foi a de quem não deu a menor bola para o que Janja falou. O empresário se limitou a publicar em sua própria rede social dois emojis que expressavam desdém diante das ofensas. E a fazer a previsão de que “eles” — ou seja, o atual governo do Brasil — “vão perder as próximas eleições”. A verdade, porém, é que, o fato de ele inicialmente tratar o incidente como algo sem a mínima importância não significa que tudo ficará por isso mesmo.
Por mais que Janja, a ala mais radical do PT e até mesmo os chefões da diplomacia brasileira ajam como se o Brasil não precisasse dos Estados Unidos — como é típico da visão estudantil que contamina a esquerda latino-americana desde o século passado — é óbvio que a realidade aponta para um cenário muito diferente. Seja como for, a informação que circulou nos bastidores dos círculos diplomáticos foi a de que, por via das dúvidas, o chanceler Mauro Vieira, que conduz o ministério das Relações Exteriores sob a batuta do assessor especial de Lula para assuntos internacionais, Celso Amorim, logo mandou seu pessoal entrar em campo para evitar maiores estragos.
Ainda durante o G-20, representantes do corpo diplomático brasileiro já procuraram conversar com seus correspondentes norte-americanos para tentar pôr panos quentes na situação. Se conseguiram ou não, é uma outra história. Mesmo porque, a partir do dia 20 de janeiro haverá por lá uma mudança que certamente imporá um novo padrão de relacionamento entre os dois países. Pelo que se conhece dele, a tolerância de Trump para esse tipo de cutucada é muito menor à de Joe Biden — e o que o aceno de paz feito agora terá que ser repetido no ano que vem.
As verdadeiras consequências desse tipo de provocação barata, portanto, só serão conhecidas depois do dia 20 de janeiro, quando Trump voltar a despachar do Salão Oval da Casa Branca e o senador republicano Marco Rubio assumir o comando da Secretaria de Estado — órgão que comanda a diplomacia dos Estados Unidos. Atenção! Ninguém está dizendo aqui que as rusgas entre o governo brasileiro e o futuro governo norte-americano foram criadas pelas palavras inadequadas de Janja. Nada disso! O que se pretende dizer aqui é que, num relacionamento em que o Brasil entra como a parte mais fraca, picuinhas como essa podem até ser manifestadas nas tertúlias em família, mas devem ser mantidas longe das cerimônias oficiais, ainda mais das que acontecem diante da imprensa do mundo inteiro.

AFINIDADES IDEOLÓGICAS — É provável que, pragmática como costuma ser quando o que está em jogo são os interesses de sua economia, a secretaria de Estado dos Estados Unidos até utilize o constrangimento criado por declarações com a de Janja, que recebeu aplausos de muita gente ao seu redor, seja posto a serviço dos interesses comerciais norte-americanos. Mas é certo que, pelo menos por enquanto, os diplomatas norte-americanos consideram o fato secundário, de importância muito menor do que a repercussão que teve no Brasil.
Em outras palavras, ninguém deve imaginar que a ofensa de Janja ao futuro ministro de Trump evolua para um incidente de proporções maiores, como chegou a ser especulado na semana passada. Seja como for, ele também não contribuirá para remover obstáculos capazes de dificultar o bom relacionamento entre os dois países. O que está sendo dito é que, num momento em que as forças econômicas estão se reorganizando no mundo inteiro, toda dificuldade que o Brasil criar para si mesmo pode se transformar numa facilidade que poderá ser aproveitada imediatamente por algum concorrente.
Já passou da hora de o Brasil entender que as escolhas e as afinidades ideológicas do governo não podem, de forma alguma, ditar o ritmo de sua diplomacia comercial. O caso da birra das autoridades brasileiras com Elon Musk, por exemplo, é exemplar. Sem entrar no mérito das simpatias que o empresário possa ter por ideias políticas ultraliberais, que não combinam com as do governo brasileiro, é inegável que os mais de seis mil satélites que uma de suas empresas, a StarLink, mantém girando ao redor da terra são hoje fundamentais para viabilizar a comunicação por internet em pontos de difícil acesso — como a imensidão da floresta amazônica e os mais de 15 mil quilômetros de fronteiras terrestres do Brasil com dez países sul-americanos.
A principal concorrente da StarLink, a chinesa SpaceSail, com quem o governo fechou um dos 37 acordos de cooperação que assinou com o governo de Beijing na reunião de cúpula ente Lula e o presidente Xi Jinping, após o encerramento do G-20, pode até acabar se tornando uma alternativa viável a ela. Mas ainda não é e o Brasil não dispõe de tempo para esperar que as necessidades do presente se resolvam com apostas futuras. Neste momento, nenhuma empresa do mundo é capaz de proporcionar ao Brasil um serviço tão abrangente, estável e seguro como o que é oferecido por Musk.
Em outras palavras, a primeira-dama Janja da Silva pode não ter medo de Musk, como declarou em seu discurso no Rio, antes de xingar o bilionário. Mas o serviço de controle aéreo, o serviço nacional de meteorologia, as agências que acompanham as queimadas e o desmatamento na Amazônia, a indústria brasileira de mineração, o serviço de controle do tráfego de navios no mar territorial, as pequenas povoações do Nordeste e do Norte do país (que jamais teriam cobertura de internet se ficassem à espera do governo brasileiro), e mais um monte de serviços importantes no Brasil morrem de medo de ficar de uma hora para outra sem os serviços da empresa de Musk.

TECNOLOGIA ISRAELENSE — Na semana passada, no bojo de um escândalo que ajudou a empanar o brilho da reunião de chefes de Estado no Rio de Janeiro, passou praticamente despercebida uma notícia que ajuda a expor a estupidez da diplomacia comercial conduzida por simpatias ideológicas imposta ao Itamaraty. Muita gente se recorda que, em setembro do ano passado, Celso Amorim entrou em cena e praticamente obrigou o ministério da Defesa a cancelar a compra de 36 veículos blindados produzidos em Israel. Aquilo seria, na visão da diplomacia militante que hoje comanda o Itamaraty, uma forma de deixar clara a rejeição do governo brasileiro à resposta israelense aos ataques terroristas de 7 de outubro de 2023. O que isso tem a ver com o que estamos falando aqui? Tudo!
Na semana passada, quando nem bem havia terminado o encontro dos chefes de Estado no Rio de Janeiro, o noticiário foi tomado pela descoberta de um esquema que, se for comprovado por investigações isentas, se tornará a primeira prova irrefutável de que apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro de fato tramavam um golpe para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O centro das investigações foi a recuperação de uma série de mensagens trocadas por plataformas como WhatsApp e Telegram. Nessas mensagens, os articuladores do suposto golpe trocavam informações sobre detalhes do plano que envolveria, inclusive, o assassinato do presidente. As mensagens originais tinham sido apagadas dos aparelhos celulares dos envolvidos na tramoia e foram recuperadas com a ajuda de uma tecnologia — veja só! — desenvolvida em Israel!
Já pensou se, junto com os carros de combate, o astuto Amorim tivesse proibido, também, o uso da tecnologia avançada de Israel pela Polícia Federal? A resposta para essa pergunta não poderia ser mais simples: sem a tecnologia produzida pelo país que Amorim considera inimigo, a trama não teria vindo à tona e ninguém seria investigado por impedir a posse de Lula. Se não houvesse outras, essa é a prova suficiente de que posições diplomáticas tomadas com base na ideologia do século passado jamais permitirão que o Brasil avance para o Século 21!