Movimentação ocorre faltando pouco mais de um mês para Bolsonaro deixar a Presidência NELSON ALMEIDA/AFP

Isolado no Palácio do Planalto após a derrota eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro (PL) agiu para nomear aliados em cargos estratégicos do governo. Parte deles terá até mesmo poder de investigar a conduta do primeiro escalão durante o mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). É o caso do ministro da Secretaria de Governo Célio Faria Júnior, e do advogado João Henrique Nascimento de Freitas, chefe da Assessoria Especial de Bolsonaro, designados na sexta-feira, 18, para integrar por três anos a Comissão de Ética Pública da Presidência.
Os dois foram nomeados por decreto, faltando apenas 44 dias para Bolsonaro deixar o Palácio do Planalto. Na prática, integrantes da Comissão de Ética podem apontar conflitos de interesse envolvendo ministros e demais ocupantes da cúpula do governo. Podem até recomendar a exoneração de servidores por violação de conduta.
Na reta final do mandato, Bolsonaro descobriu um caminho para fustigar Lula. Ele também indicou diretores e ouvidores para agências reguladoras, além de diplomatas para embaixadas e consulados. Acelerou, por exemplo, a nomeação para o cargo de chefia das representações consulares em Londres, no Reino Unido, e em Orlando, nos Estados Unidos. Ambos são considerados estratégicos por integrantes da equipe de Lula.
O vice-consulado em Orlando, aberto pessoalmente por Bolsonaro em junho, foi entregue à conselheira Marcela Braga, assessora da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Ela foi uma das diplomatas promovida recentemente pela atual cúpula do Itamaraty, passando à frente de colegas mais experientes.
Gabinete do ódio
Os decretos da Comissão de Ética Pública foram publicados há quatro dias no Diário Oficial da União. Servidor civil da Marinha, o economista Célio Faria Junior é um dos mais próximos colaboradores de Bolsonaro. Chefiou a Assessoria Especial e o Gabinete do presidente no Planalto. É visto como um colaborador da ala ideológica conservadora, avesso à imprensa, e chegou a ser apontado como um dos integrantes do "gabinete do ódio".
João Henrique Nascimento de Freitas, por sua vez, é ligado ao senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), com quem trabalhou por sete anos na Assembleia Legislativa do Rio. Foi alvo de investigação sobre um suposto esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual, revelado pelo Estadão. No governo, atuou como presidente da Comissão de Anistia e assessorou o vice-presidente Hamilton Mourão, inclusive com assento no Conselho Nacional da Amazônia.
A Comissão de Ética Pública pode ser uma pedra no sapato de qualquer governo. Em dezembro de 2011, por exemplo, no primeiro ano do mandato da então presidente Dilma Rousseff, o ministro do Trabalho Carlos Lupi pediu demissão após receber uma advertência do órgão por denúncias de cobrança de propina e irregularidades em convênios com ONGs. Lupi sempre negou as acusações.
Órgão consultivo
Criada durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, a comissão é um órgão consultivo. Todos os atuais sete integrantes foram indicados por Bolsonaro. Compete ao colegiado zelar pela aplicação do Código de Conduta da Alta Administração Federal, analisar casos de potencial conflito de interesses e desvios de ocupantes de cargos de confiança, inclusive durante as eleições. O grupo tem acesso a dados sigilosos de patrimônio dos integrantes do primeiro escalão do governo.
O colegiado também vai decidir se os ministros de Bolsonaro deverão cumprir quarentena por até seis meses antes de exercer outras atividades profissionais. No caso dos novos conselheiros, há pouco o que fazer, segundo integrantes do gabinete de transição. Nomeados por decreto, eles não passam pelo crivo do Congresso e só podem ser substituídos em caso de renúncia. O mandato é de três anos.
A lei determina que a comissão seja integrada por "brasileiros que preencham os requisitos de idoneidade moral, reputação ilibada e notória experiência em administração pública". Eles não recebem remuneração, uma vez que o trabalho é considerado como "prestação de relevante serviço público".
Reformulação
No gabinete de transição, o grupo ligado aos órgãos de controle deve discutir uma reformulação da Comissão de Ética Pública. Há uma avaliação de que o colegiado perdeu protagonismo e não atuou em casos relevantes durante o mandato de Bolsonaro. A preocupação da equipe de Lula é a de que a Comissão passe a "perseguir", indo "da omissão ao excesso".
Na segunda-feira, 21, a comissão indicou haver conflito de interesses em consultas de ministros como Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência) e Daniel Duarte Ferreira (Desenvolvimento Regional), além do secretário do Tesouro, Esteves Colnago, do secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários, Diogo Piloni e Silva, do diretor-presidente da Valec, André Kuhn, e da secretária de Articulação e Promoção da Ciência, Christiane Corrêa, braço direito do ex-ministro e senador eleito por São Paulo Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovações). Eles deverão cumprir a quarentena.
Além disso, o órgão optou por instauração de procedimento de apuração contra o ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães, por denúncias de assédio sexual, e o assessor internacional da Presidência Filipe Martins, por suposto gesto racista. O ex-presidente da Fundação Cultural Palmares Sérgio Camargo, acusado de assédio moral e discriminação a religiões, recebeu censura ética.
Agências
Bolsonaro também enviou ao Senado para avaliação os nomes de sete diretores e cinco ouvidores de agências reguladoras. As indicações, fruto de apadrinhamento político, envolvem as cúpulas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Mineração (ANM), Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O Estadão apurou que, assim como fizeram com as indicações para as embaixadas, o PT avalia recorrer ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para que segure a votação de indicados de Bolsonaro. Parte das sabatinas deve ocorrer amanhã, com nomes para Antaq, ANTT e ANPD.
Relações exteriores
O Senado convocou um esforço concentrado para avaliar indicações nesta semana. Na Comissão de Relações Exteriores (CRE) há 21 sabatinas pendentes, de diplomatas já indicados por Bolsonaro. Nove ainda não foram encaminhados à comissão, o que deixa o processo em suspenso.
O Estadão apurou com integrantes do gabinete de transição que há um acordo nos bastidores com o Senado e o Itamaraty para que as sabatinas sejam destravadas a partir desta terça-feira, mas comecem por postos de menor expressão política como FAO, Unesco, Tunísia, Mauritânia, Guiné Equatorial, Sudão e Jordânia. Já embaixadas consideradas estratégicas, como Buenos Aires, Paris, Organização Mundial do Comércio (OMC), Roma e até Santa Sé, não devem ser votadas sem o aval de Lula.
"O governo possui legitimidade para indicar, é o que define a Constituição. Mas essa indicação deve observar o contexto, não é vale-tudo. Algumas, como as de embaixador, podem implicar altos custos para ajuste posterior. É importante priorizar a prudência e o diálogo", disse o senador Jean Paul Prates (PT-RN), integrante do governo de transição.