Havia abismos debaixo daquele mesmo teto, mas também um afeto que ainda reunia aquelas duas primasArte de Kiko com fotos de divulgação

O convite veio de uma jornalista com quem já dividi a mesma redação de jornal, a Sara, que tem Paixão no sobrenome. A proposta era conferir o filme 'Criadas', dirigido por Carol Rodrigues, que homenageia sua família e, em especial, sua avó, por meio dessa obra. Aceitei o chamado e logo ganhei a companhia da minha irmã naquele programa dominical no cinema Estação Botafogo 5. Em cartaz no Festival do Rio, o longa trata a questão do colorismo e racismo por meio do reencontro de Sandra (Mawusi Tulani) e Mariana (Ana Flávia Cavalcanti), duas meninas negras, sendo a primeira retinta e a outra de pele clara, que voltam a morar juntas na vida adulta. Como engenheira civil, Sandra retorna à casa em que cresceu, já que a sua mãe foi empregada residente da família de sua prima Mariana, agora uma chef de cozinha bem-sucedida.
No entanto, os contrastes ficam evidentes assim que Sandra revê aquele cenário em busca de uma foto da sua mãe. Mariana só encontra uma imagem da tia. Em algum momento do filme, ela até questiona a sua própria mãe sobre isso, pelo fato de se lembrar de muitos cliques da vida naquela casa. Sandra, inclusive, lamenta por quase não conseguir ver o rosto da mãe na imagem. Tudo ali ainda lhe parece familiar, mas não necessariamente feliz, tanto que logo ressurgem feridas de sua época de menina. Através de memórias bem distintas guardadas pelas primas, a obra revela duas infâncias que se desenvolveram juntas e com realidades bem diferentes. Havia abismos debaixo daquele mesmo teto, mas também um afeto que ainda reunia aquelas duas primas.
Apostando em um realismo fantástico, com direito a poderes sobrenaturais atuando na casa, o filme mostra como histórias distintas guardam perspectivas e sentimentos também diversos. Inclusive, guardei na memória a cena em que Mariana relembra a forma como a mãe de Sandra se iluminava quando cozinhava, contando ter aprendido muito com ela. A chef, então, questiona a prima o motivo de ela não ter estado presente nesses momentos. E Sandra responde que a casa era muito grande para ela e a mãe limparem e, por isso, não dava para as duas ficarem tomando conta de Mariana. Uma resposta que revela como os espaços eram bem delimitados, não necessariamente por cômodos, mas por uma hierarquia. Fiquei pensando que Sandra talvez enxergasse sacrifício quando a mãe cortava temperos, ao contrário da imagem poética guardada pela prima. O que era trabalho para uma era lazer para a outra.
O longa ainda traz à tona uma reflexão sobre o registro de sua própria história por meio de fotografias ou vídeos. Filha da empregada da casa, Sandra se depara com a ausência de imagens da mãe e da sua infância. Suas raízes não saíram impressas em nenhum álbum, mas sua memória as manteve vivas ao longo do tempo. Mariana chega a encontrar um vídeo de uma festinha de Carnaval, mas, ao vê-lo, se dá conta de que a prima, mais uma vez, não era o foco dos cliques. 'Criadas' é uma obra que rebobina a trajetória de vida dessas duas mulheres, com um final impactante e simbólico. E ainda tem na trilha sonora a canção 'Comigo', de Rômulo Fróes e Alberto Tassinari, famosa na voz de Elza Soares: "Levo minha mãe comigo. Embora se tenha ido". Aliás, a mãe de Sandra se faz presente na obra, mesmo estando em outro plano.
Para completar o percurso do longa no Festival do Rio, Mawusi Tulani e Ana Flávia Cavalcanti ganharam o troféu de Melhor Atriz da Mostra Novos Rumos do evento. Dividiram um prêmio que seria individual, mas que agora será partilhado por elas. A trajetória de 'Criadas' tem sido mesmo de compartilhamentos: de memórias, debates, reflexões e até de uma estatueta.