Rosa PerdigãoDivulgação

Pode-se viver sem ou com reflexão. Escolhas. E o centro do Rio é uma provocação constante para que a gente faça de uma simples caminhada, por exemplo, um exercício de compreender o passado e encarar o agora.

A região do Largo da Prainha, perto do Museu do Amanhã e da Praça Mauá, foi um espaço de compras e vendas de pessoas escravizadas, de aliciamentos, de torturas e também de resistência. Quilombo foi construído ali. O samba se proliferou ali, na pedra do Sal. Ali, quituteiras vendiam diferentes produtos, entre eles acarajé. Com o que restava do pagamento ao senhor, muitas mulheres conseguiram juntar moedas e pagar pela alforria.

Com o samba ao fundo, fito o que vou fazer naquele sábado de janeiro. O calor que inveja o Deserto do Saara me deixa imediatamente com a vontade de sanar a sede com cerveja. Sento no Bafo. Ainda não está completamente abarrotado, como de costume. Após três goles, vem o olhar para o tabuleiro de Rosa Perdigão. O acarajé, além de sustento para a compra da liberdade, é alimento tradicional de contato com a fé e com a nossa trajetória negra.
Patrimônio Imaterial do Brasil desde 2005, pelo Iphan, o ofício das Baianas do Acarajé tem em Rosa Perdigão uma defensora incansável. Há 15 anos a frente do badalado “Cheirinho de Dendê”, Perdigão é procurada por uma fila de consumidores e por um séquito de gestores públicos atrás de aconselhamentos. Na prática, poucas cariocas conhecem tão bem a cultura popular e a culinária de rua como a mulher que nasceu em Sepetiba, mora no Rio Comprido e trafega de quebradas à Palácios.

No tabuleiro, uma menina ajuda Rosa no preparo da comida. A receita trazida pelos escravizados vai ganhando forma na frente de todos. Quando o bolinho abraça o óleo quente é tempo de salivar e entender que o Rio de Janeiro está incrivelmente distante de conhecer e estimular nossas raízes, nossas pegadas e até mesmo nosso turismo. Comer um acarajé naquela região, pensando em tudo que escrevo, é diferente de estar no shopping com ar a 19 graus.

Leandro Gonçalves é guia de turismo e influencer. Com mais de 40 mil seguidores só no Instagram, ele se dedica ao que chama de AfroTurismo. Contando com o sorriso largo e desenvoltura de capoeirista, trafega pelo centro explicando aos turistas – sejam de fora ou do Rio – os significados das diferentes pedras pisadas do cais. O Valongo, perto do tabuleiro de Perdigão, é mapeado por Leandro. Por Leandro, por outros bons guias, mas nem sempre esse grito de explicação chega ao Poder. Escolhas.

Membro do Conselho de Cultura do Município do Rio, de 2018 à 2023, Rosa Perdigão levou para os fóruns debates importantes sobre “como fomentar a Cultura africana no Brasil” e “como fomentar a Cultura brasileira na África”. Foi nesse período que Rosa estreitou os laços com a Nigéria, conseguindo até que lideranças, espirituais e políticas, viessem ao Rio conhecer as tais pedras pisadas do cais. Papos de investimentos foram abertos. Para alguns pode parecer pouco, mas não é.

Dei cabo do acarajé enquanto conversava com Rosa, que já conhecia de outros carnavais. Pensei na balança para não emendar em um segundo. Quase impossível resistir ao que considero o melhor do Rio. Até nesse instante pode-se viver sem ou com reflexão.



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Mestre Sala dos Mares

Na música Mestre Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc, as “pedras pisadas no cais” nos levam para a luta de João Cândido e a Revolta da Chibata, que também ocorreu no centro do Rio.

Ainda na pandemia e usando máscara, gravei esse vídeo explicando os detalhes da Revolta.