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O Brasil não é mesmo um país para principiantes. Depois de quatro anos de desarranjos, com um governo catastrófico, fascista e corrupto que arruinou as bases democráticas e nos fez regredir várias casas, como ocorria naquele antigo jogo de ludo, um bando de lunáticos sem cérebro tentou a ruptura da estabilidade institucional com a desastrosa ocupação e depredação das sedes dos Três Poderes. Muito já escrevi sobre a pronta atuação das autoridades constituídas no repúdio à tentativa de golpe, o que preservou nossa Democracia. Agora, nossas preocupações devem voltar-se para o enfrentamento do pós “8 de janeiro”.
Parece ser quase consenso a necessidade de investigar e de punir os financiadores, os militares golpistas, sejam generais ou soldados rasos, e os políticos que usaram o levante para se perpetuarem no poder ampliando o saque aos cofres públicos. E, principalmente, o chefe de todos, aquele que alimentou por vários anos a ideia estapafúrdia de um golpe constitucional, causando instabilidade nas instituições: o presidente Bolsonaro. Ele e sua entourage. Tudo, claro, dentro da Constituição e com a óbvia preservação dos direitos fundamentais da defesa. Vamos dar a eles as garantias que eles se esforçavam para retirar da Carta Magna.
Mas, enquanto o país acompanha o desenrolar das investigações, passado o momento de perplexidade pela ousadia psicopata daquele grupo de idiotas, precisamos debater uma realidade que emergiu da tentativa de golpe e que não podemos fingir que ela não existe: temos, hoje, 922 presos preventivamente por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Todos recolhidos no caótico sistema prisional do Distrito Federal. Sem contar um grande número de terroristas usando tornozeleira eletrônica com as restrições de estilo. A imprensa deu notícia de 653 denúncias já apresentadas pelo Ministério Público Federal.
Fui um defensor, desde o primeiro dia, do inquérito instaurado pelo ministro Toffoli, então presidente do Supremo, e distribuído para o ministro Alexandre de Moraes para investigar o ataque às instituições democráticas. As tais fake news são apenas parte do arcabouço golpista. Não tenho nenhuma dúvida de que foi o Poder Judiciário que garantiu a higidez da Democracia em um momento de um Executivo fascista e de um Legislativo, em boa parte, cooptado. A história fará justiça aos ministros do STF e do TSE. Agora, a questão é discutir como serão tratados todos esses processos iniciados, as apurações que continuam e, principalmente, os presos da desastrosa operação golpista.
É necessário que esses processos sejam enviados para a primeira instância, pois o Supremo Tribunal não tem estrutura para acompanhar todas elas sem paralisar a agenda já imensamente assoberbada. Há uma questão de competência que deve ser dirimida pelo Pleno da Corte. E, principalmente, há que se determinar que os prisioneiros cujas prisões se fizerem ainda imprescindíveis - critério básico para a manutenção da prisão preventiva - sejam transferidos para suas cidades de origem. Isso possibilitará a proximidade com seus familiares, o acesso mais fácil aos seus defensores - buscando garantir a ampla defesa -, a desobstrução do falido sistema carcerário de Brasília e, enfim, a humanização do necessário processo penal.
Existem questões processuais que terão que ser enfrentadas. O Plenário do Supremo precisa decidir sobre a hipótese, inconstitucional, da conversão da prisão em flagrante em preventiva, de ofício, pelo ministro-relator, às vezes contrariando o expresso pedido de liberdade feito pelo Ministério Público. Da mesma maneira, é fundamental assegurar o pleno acesso aos advogados de todo o processo, principalmente das decisões, requisito básico e elementar do Direito Constitucional da ampla defesa. Um direito fundamental em um Estado democrático de direito. Também entendo ser o momento de voltar a discutir no Plenário sobre o direito do advogado de impetrar habeas corpus contra ato monocrático de qualquer ministro do Supremo, antiga luta da advocacia junto à Corte Suprema. Enfim, são muitas as questões relevantes que devem ser levadas à discussão.
Como não aceitei advogar para nenhum cliente dessa empreitada golpista, não conheço detalhes dos processos. Mas, como advogado garantista e preocupado com o Processo Penal democrático, tenho o dever de levantar tais questões. Até por coerência constitucional. Quando se ousa tentar romper o Estado democrático de direito, com a hipótese de fechar, inclusive, os Poderes Legislativo e Judiciário, a resposta deve ser imediata e proporcional ao golpe. Mas, feito o enfrentamento, nos limites da Constituição, a maturidade exige que voltemos à garantia da plenitude dos direitos.
Lembrando-nos de Heráclito de Éfeso: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay